Estudo sobre João 5:1-47

Estudo sobre João 5:1-47



O desamparo do homem e o poder de Cristo - 5:1-9
O significado interior - 5:1-9 (cont.)
Cura e ódio - 5:10-18
O Pai e o Filho - 5:19-20
Vida, juízo e honra - 5:21-23
Aceitação significa vida - 5:24
Morte e vida - 5:25-29
O único juízo verdadeiro - 5:30
Testemunha de Cristo - 5:31-36
O testemunho de Deus - 5:37-43
A condenação final - 5:44-47


O DESAMPARO DO HOMEM E O PODER DE CRISTO
Estudo sobre João 5:1-9

Havia três festas judaicas que eram festas para guardar. Todo homem judeu adulto que vivesse a trinta quilômetros de Jerusalém tinha a obrigação legal de assistir a elas. Eram três festas: Páscoa, Pentecostes e a Festa dos Tabernáculos. Se supusermos que o capítulo 6 deve ir antes do 5, podemos considerar que esta festa é Pentecostes, porque os eventos do capítulo 6 ocorreram quando se aproximava a Páscoa (João 6:4). A Páscoa tinha lugar em meados de abril, e Pentecostes era celebrada sete semanas depois. Pentecostes seria a próxima festa oficial no calendário judaico. João sempre mostra Jesus assistindo às festas judaicas, porque não deixava de observar as obrigações que impunha o culto judaico. Para Jesus, adorar com seu povo não era uma obrigação mas um prazer.
Aparentemente, quando Jesus chegou a Jerusalém estava sozinho.

Nesta seção não se menciona absolutamente a seus discípulos. Encaminhou-se a um lago famoso. O nome do lago era ou Betesda, que significa Casa da Misericórdia, ou, o que é mais factível, Betzatha, que significa a Casa da Oliveira. Todos os melhores manuscritos mencionam o segundo nome, e sabemos por Josefo que em Jerusalém havia um bairro que se chamava Betzathe. A palavra que significa estanque é kolumbethron, que vem do verbo kolumban, que significa mergulhar. O lago era o suficientemente profundo para nadar. A passagem que está entre chaves [depois do movimento da água, sarava de qualquer doença que tivesse”] não aparece em nenhum dos manuscritos maiúsculos e mais importantes; é provável que foi agregado depois como explicação do que faziam as pessoas que estavam ali. Por baixo do estanque havia uma corrente subterrânea que de vez em quando se agitava e movia as águas do estanque. Cria-se que quem agitava as águas era um anjo, e que a primeira pessoa que entrasse no estanque depois da agitação das águas ficaria curada de qualquer doença que a afligisse.

É-nos apresentado como uma mera superstição, e de fato o é. Mas era o tipo de crenças que estava espalhado por todo mundo antigo e que ainda hoje existe em alguns lugares. Naquela época o povo cria em todo tipo de espíritos e demônios. Consideravam que o ar estava cheio desses seres. Esses espíritos e demônios tinham suas casas e moradas em lugares determinados. Cada árvore, cada rio, cada arroio, cada serra, cada lago, tinha seu espírito. Além disso, o povo do mundo antigo se sentia impressionado em forma especial com o caráter sagrado e santo da água e, particularmente, dos rios e vertentes. A água era algo tão prezado, os rios enfurecidos podiam ser tão poderosos, a água podia ser tão perigosa, que não é surpreendente que se sentissem tão impressionados. Pode acontecer que no Ocidente imaginemos a água só como algo que sai de uma torneira, mas no mundo antigo, e ainda hoje, em determinados lugares, a água é a coisa mais apreciada, e pode ser a mais perigosa de todas as coisas.

Sir J. G. Frazer, em Folklore in the Old Testament (ii, 412-423). (Folclore no Antigo Testamento), cita vários exemplos desta reverência pela água. Hesíodo, o poeta grego, dizia que quando um homem está por cruzar um rio deve orar e lavar as mãos, porque quem cruza uma correnteza com as mãos sujas provoca a ira dos deuses. Quando Xerxes, o rei da Pérsia, chegou a Estrimom, na Trácia seus magos ofereciam cavalos brancos e praticavam outras cerimônias antes de que o exército se animasse a cruzar. Lúculo o general romano, ofereceu um touro para o rio Eufrates antes de cruzá-lo. Ainda hoje, no sudeste da África algumas tribos dos bantu crêem que os rios estão habitados por demônios e espíritos malignos e que devem ser aplacados lançando um molho de trigo ou alguma outra oferta antes de cruzá-los. Quando alguém se afoga em um rio se diz que foi "chamado pelos espíritos". Os baranda, da África Central, não tentariam salvar um homem a quem o rio levou porque consideram que são os espíritos aqueles que o levaram.

Esta crença no caráter sagrado dos rios, arroios e vertentes alguma vez foi universal e existe até o dia de hoje. Os que no estanque de Jerusalém esperavam que se empilhassem as águas, eram filhos de sua época que criam nas coisas de sua época. Pode ser que enquanto Jesus caminhava ao redor do lago, alguém lhe apontasse o homem desta história como um caso crônico e digno de compaixão, visto que sua doença tornava pouco provável e até impossível que alguma vez chegasse a ser o primeiro em entrar no estanque depois do movimento da água. Não havia ninguém que o ajudasse a entrar, e Jesus sempre foi o amigo dos que não tinham amigos, e aquele que ajuda a quem carece de ajuda terrena. Jesus não se tomou o trabalho de dar uma conferência a este homem a respeito da estéril superstição de esperar até que se agitassem as águas. O único desejo de Jesus era ajudar, e com sua palavra poderosa curou o homem que tinha esperado durante tanto tempo.

Nesta história podemos ver com toda clareza sob que condições o poder de Jesus operava. Devemos notar que Jesus fala com imperativos. Dava suas ordens, seus mandamentos aos homens, e na medida em que estes buscassem obedecê-los recebiam esse poder.

(1) Jesus começou perguntando ao homem se queria ser curado. Não é uma pergunta tão parva como pode parecer. O homem tinha esperado durante trinta e oito anos e bem poderia ter perdido as esperanças, deixando em seu lugar um passivo e triste desespero. Poderia ter ocorrido que no mais íntimo de seu coração se sentisse satisfeito de continuar sendo um inválido porque, se ficasse curado, teria que enfrentar-se com todo o peso de ganhar a vida e assumir novamente todas as suas responsabilidades. Há inválidos para quem sua doença não é tão desagradável, visto que outra pessoa faz todo o trabalho e assume todas as responsabilidades.

Mas a resposta deste homem foi imediata. Queria curar-se, embora não via como poderia curar-se, visto que não havia ninguém que o ajudasse. A primeira coisa que se necessita para receber o poder de Jesus é um desejo intenso desse poder. Jesus vem a nós e diz: "Você realmente quer mudar?" Se no mais recôndito de nosso coração estamos contentes sendo como somos, não pode haver nenhuma mudança. O desejo das coisas superiores deve inflamar nossos corações.

(2) Jesus, pois, disse-lhe ao homem que se levantasse. É como se lhe tivesse dito: "Homem, use sua vontade! Faça um esforço supremo e você e eu conseguiremos!" O poder de Deus nunca prescinde do esforço do homem. Nenhum homem pode apoltronar-se, relaxar-se, e esperar que aconteça um milagre. Não há nada mais certo que o fato de que devemos tomar consciência de nosso desamparo; mas em um sentido muito real, também é certo que o milagre acontece quando nossa vontade e o poder de Deus cooperam para fazê-lo possível.

(3) De fato, Jesus estava ordenando ao homem que tentasse o impossível. Ele disse: "Levante-se!" O homem poderia haver dito, com ressentimento e dor, que isso era exatamente o que não podia fazer. Sua cama deve ter sido uma simples estrutura semelhante a uma maca. A palavra grega é krabbatos, que é uma palavra da linguagem coloquial — quer dizer maca — e Jesus lhe disse que a levantasse e a levasse. O homem poderia ter dito que durante trinta e oito anos a cama tinha estado levando a ele e que não tinha muito sentido dizer a ele que levasse a cama. Mas uma vez mais o homem fez o esforço ao mesmo tempo que Cristo — e aconteceu o milagre.

(4) Aqui temos o caminho para obter o que nos propomos. Há tantas coisas neste mundo que nos vencem, nos derrotam e se apoderam de nós. Quando a intensidade do desejo está em nós, quando nos propomos fazer o esforço, embora possa parecer sem esperanças, então o poder de Cristo tem sua oportunidade, e com Cristo conquistamos aquilo que durante tanto tempo nos conquistou .


O SIGNIFICADO INTERIOR
Estudo sobre João 5:1-9 (continuação)

Antes de abandonar esta passagem devemos assinalar que alguns estudiosos do tema consideram que se trata de uma alegoria. Crêem que o homem e a cena têm um significado interior. A verdade interior que aparece na alegoria seria a seguinte.

O homem representa o povo do Israel. Os cinco pórticos representam os cinco livros da Lei. Nos pórticos jazia o povo doente, que ainda não se curou. A Lei era aquilo que podia apontar ao homem seu pecado mas que não podia fazer nada por solucioná-lo; podia descobrir a debilidade de um homem, mas não podia fazer nada para curá-la. A Lei, assim como os pórticos, dava refúgio à alma doente mas jamais podia curá-la. Os trinta e oito anos representam os trinta e oito anos durante os quais os judeus vagaram no deserto antes de entrar na terra prometida; ou representam a quantidade de séculos durante os quais os homens esperaram o Messias. Os homens tinham esperado durante todo este tempo, e agora tinha chegado o poder de Deus. A agitação das águas representa o batismo. De fato, na arte cristã primitiva se está acostumado a representar a um homem surgindo das águas batismais levando uma cama sobre as costas.

Pode ser que agora se possam ler todos estes significados no relato; mas é muito improvável que João o tenha escrito como uma alegoria. Todo o relato tem o selo da verdade e da realidade. Mas faremos muito bem em recordar que toda história bíblica contém muito mais que os atos que relata. Há verdades mais profundas por baixo da superfície e até as histórias mais simples se propõem a nos deixar frente a frente com as coisas eternas.


CURA E ÓDIO
Estudo sobre João 5:10-18

Um homem foi curado de uma doença que, em termos humanos, era incurável. Qualquer um pensaria que era uma ocasião para a alegria e o agradecimento. Mas havia aqueles que o olhavam com maus olhos. O homem que foi curado ia pelas ruas com o leito à costas; os judeus ortodoxos o detiveram e lhe recordaram que estava quebrantando a Lei ao carregar e levar uma carga no sábado. Já vimos o que tinham feito os judeus com a Lei de Deus. A Lei tinha sido uma série de grandes princípios gerais que cada um devia aplicar e obedecer por sua conta. Através dos anos, converteram-se em um montão de pequenas regras e regulamentos. A Lei só dizia que o sábado devia ser um dia diferente de outros, e que, durante esse dia, nenhum homem, nem seus servos nem seus animais deviam trabalhar. Os judeus se dedicaram a definir o que era o trabalho.

Tinham estabelecido trinta e nove classificações diferentes do trabalho. Uma destas classificações dizia que o trabalho consistia em carregar algum volume. Baseavam-se de maneira especial em duas
passagens. Jeremias havia dito: “Assim diz o SENHOR: Guardai-vos por amor da vossa alma, não carregueis cargas no dia de sábado, nem as introduzais pelas portas de Jerusalém; não tireis cargas de vossa casa no dia de sábado, nem façais obra alguma; antes, santificai o dia de sábado, como ordenei a vossos pais” (Jeremias 17:19-27). Neemias ficou preocupado pelo trabalho e o comércio que se fazia no dia sábado, e havia posto servos nas portas de Jerusalém para controlar que não se tirassem cargas no dia de sábado (Neemias 13:15-19).

Agora, a passagem de Neemias (Neemias 13:15), deixa perfeitamente claro que o que se questionava era o fato de comercializar no dia de sábado como se fosse qualquer outro dia. Mas os rabinos da época de Jesus sustentavam que quem levasse uma agulha em sua roupa estava cometendo um pecado. Inclusive discutiam a respeito de se podia levar seus dentes postiços ou uma perna de madeira. Não tinham dúvida que não se podia levar nenhum tipo de alfinete nesse dia. Para eles, todos estes detalhes insignificantes eram questão de vida ou morte — e não restava a menor dúvida de que este homem estava desobedecendo a Lei rabínica ao carregar seu leito no dia de sábado.

O homem se defendeu dizendo que quem o tinha curado lhe havia dito que carregasse seu leito, e não sabia quem era esse homem. Mais tarde Jesus o encontrou no Templo. Assim que o homem descobriu quem era Jesus se apressou a dizer às autoridades quem lhe havia dito que carregasse o leito. Sua intenção não era comprometer a Jesus, mas a Lei dizia: "Se alguém carga algo de maneira intencional de um lugar público a uma casa particular no dia de sábado será apedrejado até a morte". A única coisa que tentava fazer era ver-se livre da situação em que se encontrava. Só tentava explicar que não era culpa dele se tinha desobedecido a Lei.

De maneira que as autoridades elevaram suas acusações contra Jesus. Era acostumado a desobedecer a Lei do sábado. Os verbos do versículo 18 estão no passado imperfeito. Este tempo não descreve uma só ação, mas sim ações reiteradas no passado. É evidente que este relato não é mais que um exemplo do que Jesus estava acostumado a fazer com freqüência.

A defesa de Jesus foi surpreendente. Alegou que Deus não deixava de trabalhar no dia de sábado, e ele tampouco. Tratava-se de um argumento que qualquer judeu culto podia compreender em toda sua
magnitude. Filo havia dito: "Deus nunca cessa de agir. Como é próprio do fogo queimar e da neve gelar, é próprio de Deus agir". Deus sempre agia. Como disse outro autor: "O Sol brilha; os rios fluem; os processos de nascimento e morte continuam durante o dia de sábado como durante qualquer outro dia; e essa é a obra de Deus".

É certo que, segundo o relato da criação, Deus descansou no sétimo dia; mas descansou da criação; suas obras supremas, o juízo, a misericórdia, a compaixão e o amor, não cessaram. Só descansou da obra de criação. De maneira que Jesus disse: "O amor, a misericórdia e a compaixão de Deus agem até no dia de sábado; e as minhas também".Foi esta última frase que escandalizou os judeus, porque queria dizer nada menos que a obra de Jesus e a obra de Deus eram uma e a mesma coisa. Para eles significava que Jesus estava se colocando no mesmo nível que Deus.

Em nossa próxima seção veremos o que Jesus quis dizer em realidade; no momento devemos destacar o seguinte: Jesus ensina que sempre é preciso oferecer ajuda se alguém a necessitar; que não há tarefa maior que a de aliviar a dor e a tristeza de outro; que nenhum dia em particular pode servir de desculpa para negar a ajuda que se poderia dar; que a compaixão do cristão deve ser como a compaixão de Deus: incessante e interminável. Pode-se deixar de lado outra tarefa, mas a tarefa de compadecer-se do próximo não se pode deixar de lado. Há outra crença judaica que forma parte desta passagem. Quando Jesus encontrou o homem no templo lhe disse que não pecasse mais para que não lhe acontecesse algo pior. Para o judeu, pecado e sofrimento estavam íntima e inevitavelmente unidos. Se um homem sofria, não cabia dúvida que tinha pecado. E não se podia curar até que lhe tivessem sido perdoados seus pecados. Os rabinos diziam: "O doente não pode sair de sua enfermidade até lhe serem perdoados seus pecados". Agora, o homem podia sustentar que tinha pecado e que tinha sido perdoado e que se libertou do problema, por assim dizer; e podia continuar argumentando que, já que tinha encontrado alguém que podia libertá-lo das conseqüências do pecado, bem podia continuar pecando e voltar a ser curado. Na Igreja havia aqueles que usavam sua liberdade como desculpa para a carne (Gálatas 5:13). Havia aqueles que pecavam confiando na abundância da graça (Romanos 6:1-18). Sempre houve gente que usou o amor, o perdão e a graça de Deus como desculpa para pecar. Basta-nos pensando no que custou o perdão de Deus, basta-nos olhar à cruz do Calvário, para saber que sempre devemos odiar o pecado com um ódio perfeito, porque cada um de nossos pecados volta a destroçar o coração de Deus.


AS AFIRMAÇÕES TREMENDAS

Aqui nos deparamos com o primeiro dos extensos discursos do quarto Evangelho. Quando lemos passagens como esta devemos ter em mente que João não se propõe tanto a dar as palavras que Jesus pronunciou, como o significado que deu a essas palavras. Escrevia ao redor do ano 100 d. C. Durante setenta anos tinha estado pensando em Jesus e nas coisas maravilhosas que Ele fizera. Não terminou de compreender muitas dessas coisas quando as ouviu pela primeira vez dos lábios de Jesus. Mas depois de pensar durante mais do meio século guiado pelo Espírito Santo, João tinha descoberto significados cada vez mais profundos nas palavras de seu Mestre. De maneira que nos oferece, não só o que Jesus disse, mas também o que quis dizer. À luz de seu próprio pensamento, e à luz da orientação do Espírito Santo, revela e amplia as palavras de Jesus.

Esta passagem é tão importante que primeiro devemos estudá-la em sua totalidade e logo devemos dividi-la em seções mais breves e meditar sobre cada uma delas. Em primeiro lugar, pois, analisemos a passagem em sua totalidade. Quando nos encontramos com uma passagem como esta não devemos pensar só em como se nos apresenta, mas também em como se apresentou aos judeus que a ouviram pela primeira vez. Eles tinham um pano de fundo de pensamentos e idéias; tinham um pano de fundo de teologia e crenças; um pano de fundo de literatura e religião que não é o nosso, e que de fato é muito diferente do nosso. E para compreender uma passagem como esta é necessário que nos remontemos à mentalidade de um judeu que ouvia estas palavras pela primeira vez. Quando o fazemos, esta passagem se torna surpreendente porque está entretecida com pensamentos, afirmações e expressões, cada uma das quais representa uma afirmação por parte de Jesus de que ele é o Messias prometido, o Ungido de Deus. Nós não vemos com clareza muitas destas afirmações porque não vivemos na mesma atmosfera e ambiente em que viviam os judeus; mas eram muito evidentes para qualquer judeu e o deixavam pasmado ao ouvi-las.

(1) A afirmação mais clara é a asseveração por parte de Jesus de que ele é o Filho do Homem. Já sabemos que esse estranho título é muito comum nos Evangelhos e nas palavras de Jesus. Tem uma longa história. Nasceu no Livro de Daniel em Daniel 7:1-14. Daniel foi escrito em dias de terror e perseguições e é a visão da glória que um dia ocupará o lugar do sofrimento no meio do qual se encontra o povo. Em Daniel 7:1-7 o vidente descreve os grandes impérios pagãos que exerceram o poder sob o aspecto e o simbolismo de bestas: o leão com asas de águia (7:4), que representa ao império babilônico; o urso com três costelas entre os dentes, como alguém que devora um cadáver (7:5), que representa ao império dos medos; o leopardo com quatro asas e quatro cabeças (7:6), que representa ao império persa; a besta, espantosa e terrível, com dentes de ferro e dez chifres (7:7), que representa ao império macedônio.

Todos estes terríveis poderes passarão e o poder e domínio serão dados a um como um filho de homem. Significa que os impérios que exerceram o poder foram tão selvagens, cruéis, sádicos, destrutivos e terríveis que só é possível descrevê-los em termos de bestas selvagens. Mas virá um poder ao mundo que será tão generoso, tão amável, tão tenro, que será um poder humano e não bestial. O novo poder será humano e amável, não selvagem e bestial. Em Daniel esta frase descreve o tipo de poder que regerá o mundo. Mas, como é natural, alguém deve introduzir esse poder; alguém deve exercê-lo; e os judeus tomaram este título, esta descrição, e a atribuíram ao escolhido de Deus que um dia traria a nova era de generosidade, amor e paz; e assim foi como chegaram a chamar Filho de Homem ao Messias. Entre o Antigo e o Novo Testamento surgiu toda uma literatura que tratava sobre a era de ouro que estava por vir. Um dos livros que exerceu uma influência muito especial foi o Livro de Enoque.

Nele aparece vez por outra uma figura chamada Esse Filho de Homem, que está esperando no céu até que Deus o envie à Terra para introduzir seu Reino e governar sobre ele. De maneira que quando Jesus se denominou a si mesmo Filho do Homem não estava fazendo outra coisa senão chamar-se o Messias, o Escolhido, o Ungido de Deus. Tratava-se de uma afirmação tão clara que não se podia cometer nenhum engano de interpretação.

(2) Mas esta afirmação a respeito de que era o Messias de Deus não se explicita só nessas palavras, está implícita em cada uma das frases. O próprio milagre que tinha experimentado o paralítico era um sinal de que Jesus era o Messias. A imagem que dá Isaías da nova era diz que “os coxos saltarão como cervos” (Isaías 35:6). A visão de Jeremias afirma que os cegos e os coxos seriam reunidos (Jeremias 31:8-9). O mesmo milagre, mediante o qual o coxo caminhou, era nada menos que um sinal
messiânico.

(3) A reiterada pretensão de Jesus de levantar os mortos e de ser seu juiz ao ressuscitarem. Agora, no Antigo Testamento, o único que pode ressuscitar aos mortos e logo julgá-los é Deus. “Vede, agora, que Eu Sou, Eu somente, e mais nenhum deus além de mim; eu mato e eu faço viver” (Deut. 32:39). “O Senhor é o que tira a vida e a dá” (1 Sam. 2:6). Quando Naamã, o sírio, foi ser curado de sua lepra, o rei do Israel disse com desespero: “Acaso, sou Deus com poder de tirar a vida ou dá-la” (2 Reis 5:7). O matar e dar vida era uma função inalienável de Deus. O mesmo acontece com o juízo. “O juízo é de Deus” (Deuteronômio 1:17). No pensamento posterior esta função de ressuscitar os mortos e depois atuar como juiz se tornou parte do dever do escolhido de Deus quando trouxesse a nova era de Deus. Enoque diz sobre o Filho do Homem: "A soma do juízo foi posta em suas mãos" (Enoque 69:26-27).

Em nossa passagem, Jesus diz que aqueles que praticaram o bem serão ressuscitados à vida e aqueles que praticaram o mal serão ressuscitados à morte. O Apocalipse de Baruque diz que quando vier a idade de Deus: "O aspecto daqueles que agora são cruéis será pior do que é, e padecerão torturas", enquanto que aqueles que tiveram confiança na Lei e atuaram segundo ela, serão rodeados de formosura e esplendor (Baruque 51:1-4). Enoc diz que esse dia: "A terra se partirá por completo, e tudo o que está sobre a terra perecerá, e sobrevirá o juízo para todos os homens". (Enoque 1:5-7). O Testamento de Benjamim diz assim: "Ressuscitarão todos os homens, alguns para ser exaltados, e
alguns para ser humilhados e envergonhados".

O significado da passagem é-nos obscuro até que a lemos no pano de fundo judaico, e até que nos perguntamos como pareceria ao judeu que o ouvia pela primeira vez. Para os judeus não ficava dúvida que Jesus estava atribuindo-se funções que só pertenciam a Deus; que estava declarando que tinham começado a suceder as coisas que apontavam a proximidade da era de Deus; que se estava adotando privilégios, funções e poderes que pertenciam ao Messias e a nenhum outro. Quando chegamos a compreender o significado desta passagem vemos que não se trata mais que de uma série de afirmações nas quais Jesus declara ser o Escolhido de Deus.

E quando compreendemos isso, esta passagem se converte em algo mais que um discurso de Jesus. Transforma-se num ato da coragem mais extraordinária e única. Jesus deve ter sabido muito bem que falar deste modo representaria uma absoluta blasfêmia para os líderes ortodoxos judeus de sua época. Deve ter sabido que falar assim era aproximar-se da morte. Afirma ser o Filho de Deus; e sabia muito bem que o homem que ouvia estas palavras só tinha duas alternativas — aceitá-lo como Filho de Deus, ou odiá-lo como um blasfemador e tentar destruí-lo. É difícil encontrar outra passagem em que Jesus apele ao amor dos homens e desafie seu ódio na forma em que o faz aqui.

Agora devemos passar a analisar esta passagem seção por seção.


O PAI E O FILHO
Estudo sobre João 5:19-20

Este é o princípio da resposta de Jesus à acusação dos judeus de que se estava fazendo igual a Deus. Nesta passagem Jesus afirma três coisas sobre sua relação com Deus.

(1) Estabelece sua identidade com Deus. Ver Jesus em ação é ver Deus em ação. As coisas que faz Deus são as coisas que faz Jesus; e as coisas que Jesus faz são as coisas que Deus faz. A grande verdade fundamental a respeito de Jesus é que nele vemos Deus. Se queremos ver o que Deus sente com relação aos homens, se queremos ver como Deus reage diante do pecado, se queremos ver como Deus vê a situação humana, devemos dirigir nosso olhar a Jesus. A mente de Jesus é a mente de Deus; as palavras de Jesus são as palavras de Deus; as ações de Jesus são as ações de Deus.

(2) Mas esta identidade não se baseia tanto na igualdade como na obediência total. Nada do que Jesus faz surge de si mesmo. Jesus nunca fez o que Ele quis; sempre fez o que Deus queria que fizesse. Pelo fato de a vontade de Jesus estar completamente submetida à vontade de Deus é que vemos Deus nele. A identidade de Jesus com Deus não se baseia na independência de Deus, mas sim na dependência total dele. Sua identidade não está baseada na independência e sim na submissão. Jesus é para com Deus como nós devemos ser para com Jesus.

(3) Mas esta obediência não se baseia na submissão ao poder, mas sim no amor. A unidade entre Deus e Jesus é uma unidade de amor. Falamos de duas mentes que têm um só pensamento, de dois corações que pulsam em uníssono. Em termos humanos, esta é uma descrição perfeita da relação entre Jesus e Deus. O amor entre Pai e Filho é tão íntimo, tão estreito, que Pai e Filho são um. Há uma compreensão tão total, uma identidade tão completa de mente, vontade e coração, que Pai e Filho são um só.

Mas esta passagem nos diz algo mais a respeito de Jesus.

(1) Fala-nos de sua confiança absoluta. Estava muito seguro de que o que os homens viam nesse momento não era mais que um começo; estava completamente seguro de que veriam coisas ainda maiores. Do ponto de vista meramente humano, tudo o que Jesus podia esperar razoavelmente era a morte. As forças da ortodoxia judaica se estavam unindo contra Ele e o fim já era algo iniludível. Mas Jesus se sentia seguro de que o futuro estava em mãos de Deus e não em mãos dos homens. Não sentia o mais mínimo temor pelo que pudessem lhe fazer os homens, e jamais imaginou que os homens pudessem evitar que fizesse o que Deus lhe tinha mandado fazer.

(2) Fala-nos de sua absoluta falta de temor. Não havia dúvida que o interpretaram mal. Estava fora de discussão que suas palavras não fariam mais que inflamar as mentes de seus interlocutores e pôr em perigo sua própria vida. Não existia nenhuma situação humana na qual Jesus estivesse disposto a reduzir suas afirmações ou a adulterar a verdade. Expressaria seus direitos e diria sua verdade apesar de todas as ameaças dos homens. Para ele era mais importante ser fiel a Deus que respeitar ou temer os homens.


VIDA, JUÍZO E HONRA
Estudo sobre João 5:21-23

Aqui vemos três grandes funções que pertencem a Jesus como Filho de Deus.

(1) Ele é o doador de vida. João diz isto em dois sentidos. Significa a vida no tempo. Nenhum homem está realmente vivo até que Jesus entra nele, e ele entra em Jesus. Quando descobrimos o reino da música ou da literatura, da arte ou das viagens, estamos acostumados a dizer que nos abre um mundo novo. O homem em cuja vida Jesus Cristo entrou descobre que sua vida é algo novo. Ele próprio mudou; suas relações pessoais mudaram; sua concepção do trabalho, do dever e do prazer mudou; sua relação com Deus mudou. A vida é recriada, redirecionada, refeita. Significa a vida na eternidade. João quis dizer que depois que termina esta vida, ao homem que aceitou a Jesus Cristo se abre uma vida ainda mais plena, mais maravilhosa. Enquanto que para o homem que rechaçou a Jesus Cristo, depois que terminou a vida, chega essa morte que é separação de Deus. Para João — como também para nós — Jesus Cristo é Aquele que dá vida neste mundo e vida no mundo por vir.

(2) É quem traz o juízo. João diz que Deus deixou todo o processo do juízo nas mãos de Jesus Cristo. O que quer dizer é o seguinte: o juízo de um homem depende de sua reação para com Jesus. Se o homem encontrar em Jesus o totalmente digno de ser amado; se, apesar dos fracassos, encontra em Jesus a pessoa a quem amar, obedecer, adorar e seguir, esse homem está no caminho que o levará à vida. Mas se não ver em Jesus mais que um inimigo, se não encontrar em Jesus nada digno de ser amado nem desejado, esse homem se condenou. Jesus é a pedra de toque mediante a qual prova todos os homens; a reação para com Ele é a prova que divide os homens. Pelo simples fato de ser Ele como é e de confrontar os homens consigo mesmo, submete os homens a juízo.

(3) Jesus é quem recebe a honra. O mais alentador do Novo Testamento é sua esperança indestrutível e sua inesgotável confiança. Relata a história de um Cristo crucificado mas jamais alenta a menor dúvida de que no final dos tempos todos os homens se dirigirão para essa figura crucificada e que todos o conhecerão, o aceitarão e o amarão. Em meio da perseguição e o rechaço, apesar da exigüidade de números e a falta de influência, diante do fracasso e da infidelidade, o Novo Testamento e a Igreja primitiva jamais duvidaram do triunfo final de Cristo. Mesmo quando odiado, Jesus nunca pôs em dúvida o triunfo final do amor. Mesmo quando enfrentou a cruz, não duvidou da conquista final. Quando diante do desespero conviria recordarmos que o plano e propósito de Deus é a salvação dos homens, e que, em última instância, não há nada que possa frustrar a vontade de Deus. A má vontade do homem pode retardar o propósito de Deus; mas não pode vencê-lo.


ACEITAÇÃO SIGNIFICA VIDA
Estudo sobre João 5:24

Aqui Jesus diz simplesmente que aceitá-lo significa a vida; e negá-lo significa a morte. O que significa ouvir a palavra de Jesus e crer no Pai que o enviou?

Em poucas palavras significa três coisas.

(1) Significa crer que Deus é como Jesus diz que é. Significa crer que Deus é amor e nessa forma entrar em uma nova e íntima relação com Ele, relação na qual desapareceu o medo e descansamos em Deus.

(2) Significa aceitar o modo de vida que Jesus nos oferece, por mais duro e difícil que seja, e por mais sacrifícios que implique, na confiança e segurança de que ao aceitá-lo entramos no caminho para a paz e a felicidade, e que rechaçá-lo é ir para a morte e o juízo.

(3) Significa aceitar a ajuda que nos dá o Cristo ressuscitado e a guia que nos oferece o Espírito Santo, e assim achar forças para tudo o que implica o caminho de Cristo.

Uma vez que fazemos isso, entramos em três novas relações.

(1) Entramos em uma nova relação com Deus. O juiz se converte em pai; o distante se converte em próximo; o estranho se converte em algo íntimo e o temor se converte em amor.

(2) Entramos em uma nova relação com os homens. O ódio se converte em amor; o egoísmo em serviço; o rancor em perdão.

(3) Entramos em uma nova relação conosco mesmos. A debilidade se converte em fortaleza; a frustração em êxito; a tensão em paz. Aceitar o oferecimento de Cristo significa encontrar a vida. Em um sentido, pode afirmar-se que todos estamos vivos; mas só se pode dizer que um escasso número de pessoas conhecem a vida no verdadeiro sentido da palavra. A maioria das pessoas existem, mas não vivem. Em uma oportunidade em que Grenfell escrevia a uma religiosa enfermeira a respeito de sua decisão de transladar-se ao Lavrador para ajudá-lo em sua obra, disse que não lhe podia oferecer muito dinheiro mas que se decidia ir, descobriria que no trabalho de servir a Cristo e às pessoas do lugar viverá os momentos mais felizes de sua existência. Browning descreve o encontro de duas pessoas em cujos corações tinha entrado o amor. Ela o olhou; ele a olhou como só pode fazê-lo um apaixonado, e "de repente despertou a vida".

Um novelista contemporâneo faz um personagem dizer dirigindo-se a outro: "Nunca soube o que era a vida até que a vi em seus olhos". A pessoa que aceita o oferecimento e o caminho de Cristo passou
da morte para a vida. A vida neste mundo se converte em algo novo e emocionante; a vida eterna com Deus no outro mundo se torna uma certeza.


MORTE E VIDA
Estudo sobre João 5:25-29

De todas as seções desta passagem é nesta onde aparecem mais clara e inconfundivelmente as afirmações messiânicas de Jesus. Ele é o Filho do Homem. Ele é quem dá a vida e quem traz a vida; ressuscitará os mortos à vida e, quando tiverem ressuscitado, ele será o Juiz que sentenciará seu destino. Jesus afirma sem rodeios que pode exercer todas as funções próprias do Messias, do Escolhido de Deus e que é o Ungido de Deus que trará uma nova era, a era de Deus. Nesta passagem João parece empregar a palavra morto com dois sentidos.

(1) Ele a emprega para referir-se àqueles que estão mortos no espírito. Cristo trará nova vida aos que estão espiritualmente mortos. O que significa estar morto no espírito?

(a) Estar morto no espírito significa ter deixado de esforçar-se. É ter-se aceito a si mesmo tal como é. É ter chegado a considerar que todas as falhas são inevitáveis e impossíveis de corrigir e que todas as virtudes são inalcançáveis. É ter renunciado a toda esperança de progresso. A vida cristã não pode permanecer imóvel. Deve progredir ou retroceder. E deixar de esforçar-se significa abandonar até a próprio vontade de progredir e portanto retroceder para a morte.

(b) Estar morto no espírito significa ter deixado de sentir. Há muita gente que em um momento experimentou um sentimento profundo ante o pecado, a dor e o sofrimento que existem no mundo. Mas pouco a pouco se foi acostumando; tornou insensível. Pode contemplar grandes injustiças e não experimentar indignação; pode contemplar sofrimentos e não sentir que uma espada de dor e tristeza a atravessar-lhe o coração. Quando morre a compaixão, é porque o coração está morto.

(c) Estar morto no espírito significa ter deixado de pensar. J. Alexander Findlay nos relata uma frase de um amigo dele —"Quando a gente chega a uma conclusão, está morto". Quer dizer que quando a mente de um homem está tão fechada que não pode aceitar uma nova verdade, esse homem pode estar fisicamente vivo mas sua mente e seu espírito estão mortos. No dia em que o desejo de aprender nos abandona, o dia em que uma verdade nova, métodos novos, idéias novas se tornam um estorvo, esse dia se produz nossa morte espiritual. Para o cristão, a vida e o descobrimento de verdades novas são sinônimos.

(d) Estar morto no espírito significa ter deixado de arrepender-se. O dia em que um homem pode pecar em paz, é o dia de sua morte espiritual. O dia em que não se importa se peca ou não, quando o pecado perde seu aspecto horrível, quando pratica o mal sem o menor arrependimento ou luta interior, nesse dia morre sua alma. Nesse dia se petrifica seu coração. A primeira vez que fazemos algo mau nós o fazemos com temor e apreensão. Se o fizermos pela segunda vez, fica mais fácil. Se o fizermos pela terceira vez, fica ainda mais fácil. Se continuamos fazendo-o chega um momento em que nem sequer refletimos a respeito de nossa ação. Para evitar a morte espiritual o homem deve manter-se sensível ao pecado, coisa que consegue mantendo-se sensível à presença de Jesus Cristo.

(2) Mas nesta passagem João também emprega a palavra morto em sentido literal. Jesus ensina que virá a ressurreição, e que o que acontecer ao homem na outra vida está profundamente ligado ao que tenha feito esse homem nesta vida.

Há um aviso publicitário muito conhecido que diz: "Como você vai se sentir amanhã depende do que fizer hoje". A importância fundamental desta vida é que determina a eternidade. Durante todo o curso desta vida nos estamos preparando, ou não, para a vida que está por vir; nos estamos fazendo dignos ou indignos de nos apresentar perante Deus. Nesta vida podemos escolher o caminho que conduz à Vida ou o que conduz à morte. A tremenda verdade é que cada ato que executamos nesta vida está fazendo ou arruinando um destino, obtendo ou perdendo uma coroa. Nesta vida o homem pode fazer-se digno de ganhar a Vida, ou pode cometer o ato mais terrível e trágico que se possa imaginar — o suicídio espiritual.


O ÚNICO JUÍZO VERDADEIRO
Estudo sobre João 5:30

Na passagem precedente Jesus reclamou para si o direito a julgar. Não é estranho que alguém lhe perguntasse com que direito se propunha julgar a outros. A resposta de Jesus foi que seu juízo era verdadeiro e final porque sua intenção não era outra senão fazer a vontade de Deus, e pronunciar as palavras que Deus lhe dava para falar, e pensar os pensamentos que Deus lhe dava a pensar. O que Jesus afirmava era que quando Ele julgava, tratava-se do juízo de Deus. O que lhe dava o direito a julgar era a base sobre a qual assentava seus juízos, porque essa base não era outra senão a mente de Deus.

Para qualquer homem é difícil julgar com justiça outro homem. Se nos analisarmos com sinceridade e franqueza veremos que há muitos atos que afetam nossos juízos, e que este se baseia sobre uma quantidade de coisas. Nosso juízo pode ser injusto porque nos sentimos feridos em nosso orgulho. Pode ser cego e desonesto devido a nossos preconceitos. Pode ser severo e inflamado pela inveja. Pode ser arrogante devido ao desprezo. Pode ser duro pela intolerância. Pode ser condenatório por nosso farisaísmo. Pode ver-se afetado por nossa vaidade e basear-se na inveja e não na justiça. Pode resultar inválido porque não conhecemos, e jamais buscamos conhecer, as circunstâncias em que age a pessoa que julgamos. Quer dizer, pode estar viciado por uma ignorância cega ou insensível ou deliberada. Só um homem de coração puro e cujas motivações são muito claras e sem nenhuma influência externa pode julgar outro homem, que é o mesmo que dizer que nenhum homem pode julgar a ninguém. Por outro lado, o juízo de Deus se baseia no caráter de Deus e deve ser perfeito.

Só Deus é santo e portanto só Deus conhece as pautas segundo as quais se deve julgar todos os homens e todas as coisas. Só Deus é perfeitamente amoroso e seu juízo é o único que pode fazê-lo na caridade pela qual deve se feito todo juízo autêntico. Só Deus possui o conhecimento absoluto, o conhecimento da mente de um homem determinado, suas penúrias, seus problemas, suas tentações. O juízo é perfeito só quando toma em consideração todas as circunstâncias e Deus é o único que pode fazer algo semelhante.

A afirmação de Jesus de que Ele pode julgar, baseia-se na afirmação de que nele está a mente perfeita de Deus. Ele não julga com a inevitável mistura de motivações humanas; julga com a santidade perfeita, o amor perfeito e a perfeita compreensão de Deus.


TESTEMUNHA DE CRISTO
Estudo sobre João 5:31-36

Mais uma vez Jesus responde às acusações de seus inimigos. Estes lhe perguntam: "Que prova você pode oferecer de que suas afirmações são verdadeiras"? De fato, o que dizem é o seguinte: "Você faz as afirmações mais surpreendentes e ambiciosas a respeito de si mesmo. Que provas você tem para sustentá-las?" Em toda esta passagem Jesus expõe seus argumentos em uma forma que os rabinos eram capazes de compreender muito bem. Emprega seus próprios métodos e suas próprias
regras para discutir.

(1) Jesus começa por reconhecer o princípio universal segundo o qual o testemunho sem fundamento de uma pessoa não se pode tomar como prova. Antes de que se pudesse dar algo por provado se necessitavam pelo menos duas testemunhas. “Por depoimento de duas ou três testemunhas, será morto o que houver de morrer; por depoimento de uma só testemunha, não morrerá” (Deuteronômio 17:6). “Uma só testemunha não se levantará contra alguém por qualquer iniqüidade ou por qualquer pecado, seja qual for que cometer; pelo depoimento de duas ou três testemunhas, se estabelecerá o fato” (Deuteronômio 19:15). Quando Paulo ameaça ir ver os Coríntios com admoestações e disciplina diz que todos as acusações se decidirão pela boca de duas ou três testemunhas (2 Coríntios 13:1). Jesus ensina que quando alguém tenha uma acusação legítima contra seu irmão leve a outros para que corroborem a acusação (Mateus 18:16).

Na Igreja primitiva se mantinha como regra que não se aceitaria nenhuma acusação contra um ancião a menos que fora sustentada por duas ou três testemunhas (1 Timóteo 5:19). Jesus começou por reconhecer com toda clareza a lei judaica do testemunho. Além disso, sustentava-se de maneira universal que não se podia aceitar o testemunho de alguém sobre si mesmo. A Mishnah dizia: "Um homem não é digno de confiança quando fala sobre si mesmo". Demóstenes, o grande orador grego, afirma como princípio de justiça: "As leis não permitem que um homem dê testemunho sobre si mesmo".

A lei antiga sabia muito bem que o interesse e o amparo pessoais exerciam certo efeito sobre as afirmações de alguém a respeito de si mesmo. De maneira que Jesus aceita as pautas e regras judaicas normais e reconhece que seu próprio testemunho, sem apoio de outros, não tinha por que ser verdadeiro.

(2) Mas há outros que dão testemunho dele. Diz que Outro é sua testemunha, e ao dizer Outro se refere a Deus. Voltará sobre isso, mas no momento cita o testemunho de João Batista. Em muitas ocasiões João tinha dado testemunho dele (João 1:19-20, 26, 29, 35-36). Então Jesus rende tributo a João e lança uma acusação contra as autoridades judaicas. Diz que João era a tocha que ardia e iluminava. Essa era a comemoração mais perfeita que podia fazer a João.

(a) Uma tocha porta uma luz emprestada. Não ilumina por si mesmo; acende-a.

(b) João tinha calor humano; sua mensagem não era a mensagem fria do intelecto, mas a mensagem ardente do coração aceso.

(c) João tinha luz. A função da luz é a de guiar, e João apontava aos homens o caminho para o arrependimento e para Deus.

(d) Por sua própria natureza, uma tocha se queima. Ao dar luz se consome. João devia decrescer enquanto Jesus crescia. A verdadeira testemunha se consome por Deus.

Mas Jesus, ao render homenagem a João, acusa às autoridades judaicas. Agradaram-se ao ouvir a João durante algum tempo. Em realidade, nunca o levaram a sério. Eram como "mosquitos que esvoaçam ao Sol", ou como meninos que brincam enquanto brilha o Sol. Era uma sensação agradável ouvir a João, enquanto dizia coisas agradáveis mas o abandonavam tão logo ficava sério. Ainda há muita gente que ouve a verdade de Deus dessa maneira. Vivem um sermão como se fosse uma peça de teatro.

Um famoso pregador relata que depois de ter pronunciado um sermão muito sombrio sobre o juízo, vieram cumprimentá-lo com um comentário de agradecimento: "Esse sermão foi seriamente simpático!" A verdade de Deus não é algo que deve nos entreter; não é algo para nos alegrar; em geral se trata de algo que deve receber-se em meio das cinzas do arrependimento e da humilhação. Mas Jesus nem sequer apelou ao testemunho de João. Disse que não se remeteria ao testemunho humano de nenhum homem falível para sustentar suas afirmações.

(3) Jesus apresenta pois, o testemunho de suas obras. Já o tinha feito quando João tinha mandado perguntar da prisão se Ele era o Messias ou se devia buscá-lo em outra parte. Falou aos mensageiros de João que voltassem e relatassem a seu mestre as coisas que viram (Mateus 11:4; Lucas 7.22). Mas Jesus apelou ao testemunho de suas obras não para apontar para si mesmo, e sim para o poder de Deus que estava operando nele e através dele. Cita suas obras, não para glorificar-se a si mesmo, mas para glorificar a Deus, a quem pertencem tais obras. Assim, pois, Jesus passa a citar a sua testemunha suprema, e essa testemunha é Deus.


O TESTEMUNHO DE DEUS
Estudo sobre João 5:37-43

A primeira parte desta seção se pode interpretar de duas maneiras.

(1) Pode referir-se ao testemunho invisível de Deus que está dentro do coração de cada homem. Em sua Primeira Epístola João escreveu: “Aquele que crê no Filho de Deus tem, em si, o testemunho (de Deus)” (1 João 5:10). O judeu teria sustentado que nenhum homem viu jamais a Deus nem o pode ver jamais. Até na entrega dos Dez Mandamentos “a voz das palavras ouvistes; porém, além da voz, não vistes aparência nenhuma” (Deuteronômio 4:12). De maneira que isto pode significar: "É verdade que vocês jamais viram a Deus; é verdade que vocês jamais ouviram sua palavra em forma direta; é certo que Deus é invisível, e também o é seu testemunho; porque seu testemunho é a resposta que brota do coração humano quando o homem se confronta com Cristo". Quando nos confrontamos com Cristo vemos o totalmente amoroso e o totalmente sábio; essa convicção é o testemunho de Deus em nossos corações. Os estóicos afirmavam que a forma superior de conhecimento não surge pelo pensamento; surge a partir do que eles chamavam "impressões surpreendentes". O homem é invadido por uma convicção que se apodera dele como se fosse uma mão que o toma pelo ombro e o detém. Crê com todo seu coração, embora não pode dizer como nem por que. Pode ser que o que nesta passagem Jesus quer dizer é que a convicção que temos em nossos corações a respeito da supremacia de Cristo é o testemunho que Deus dá sobre Ele.

(2) Pode ser que o que João queira dizer é que o testemunho de Deus a respeito de Cristo se pode encontrar nas Escrituras. Para os judeus as Escrituras eram tudo. "Quem adquiriu as palavras da Lei adquiriu a vida eterna". "Quem tem a Lei tem um anel de graça a seu redor neste mundo e no mundo vindouro." "Quem afirma que Moisés escreveu um só versículo da Lei por seu próprio conhecimento, despreza a Deus." “Ela é o livro dos preceitos de Deus e a Lei que subsiste para sempre: todos os que a ela se agarram destinam-se à vida; e os que a abandonarem perecerão” (Baruque 4:1, BJ). "Se a comida que é sua vida só por uma hora requer uma bênção antes e depois de comê-la, quanto mais a requererá a Lei em que reside o mundo por vir?"

O judeu tinha a Lei, procurava a Lei, e entretanto, não reconheceu a Cristo quando veio ao mundo. O que é que acontecia? Aqui nos deparamos com o fato assombroso de que os melhores estudiosos da Bíblia que existiam no mundo, o povo que sentia o maior respeito pelas Escrituras, o povo que lia as Escrituras continuamente, com meticulosidade e consistência, rechaçou a Jesus Cristo. Como pôde acontecer algo semelhante? Há algo evidente: liam as Escrituras em forma incorreta.

(1) Liam-nas com as mentes fechadas. Liam as Escrituras, não para buscar Deus nelas e ouvi-lo, e sim para encontrar argumentos que apoiassem suas próprias posições e para encontrar defesas para suas crenças. Em realidade não amavam a Deus; amavam suas próprias idéias a respeito de Deus. É por isso que a Palavra não habitava neles. A água tinha tantas probabilidades de penetrar o cimento como a Palavra de Deus de penetrar nas mentes desses homens. Não foram às Escrituras; traziam as Escrituras a eles. Não aprendiam humildemente uma teologia nas Escrituras: usavam as Escrituras para defender uma teologia que eles mesmos tinham produzido. Ainda continua sendo o supremo perigo na leitura da Sibila o empregá-la para dar provas de nossas convicções e não para pô-las a prova.

(2) Mas cometiam um engano ainda mais grave. Consideravam que Deus tinha dado aos homens uma revelação por escrito. Agora, a revelação de Deus é uma revelação na história. A revelação não é um Deus que fala, mas um Deus que age. E a própria Bíblia não é a revelação de Deus e sim o registro de sua revelação. Rendiam culto às palavras. Esqueciam por completo que a revelação de Deus se manifesta nos acontecimentos. Há uma só maneira de ler a Bíblia: lê-la como apontando a Jesus Cristo e à luz de Jesus Cristo.

Então, muitas das coisas que nos intrigam e que às vezes nos desesperam, vêem-se com toda clareza como etapas do caminho; então vemos um acontecimento após outro como uma escalada, um apontar a Jesus Cristo, que é a revelação suprema, e sob sua luz terá que serem analisadas todas as demais revelações.

Os judeus adoravam a um Deus que tinha escrito e não a um Deus que agia e portanto, quando Cristo veio não o reconheceram. A função fundamental das Escrituras não é dar vida, e sim apontar Àquele que é o único que pode dar vida aos homens.

Aqui há duas coisas muito reveladoras.

(1) No versículo 34 Jesus havia dito que expressava todo seu ensino “para que sejais salvos”. Aqui diz: “Eu, porém, não aceito humano testemunho”. O que está expressando é o seguinte: "Não discuto como o estou fazendo porque queira ganhar a discussão. Não falo com severidade porque queira fazê-los calar e para demonstrar o inteligente que sou e humilhá-los. Não falo assim para superar e ganhar o aplauso dos homens. Falo assim porque amo vocês e quero salvá-los". Isto implica algo tremendo.

Quando as pessoas se levantam contra nós, quando se opõem a nós, quando discutem conosco, quando lhes respondemos, o que é o que sentimos? O orgulho ferido? O presunção que odeia todo fracasso? Ira? Incômodo? É um desejo de enrolar a outros com nossas opiniões porque os consideramos tolos? Jesus falava assim simplesmente porque amava os homens. Sua voz nunca se elevou até converter-se em um som estridente; nunca tentou obrigar os outros a emudecer; sua voz podia ser severa, mas nessa severidade se notava o acento do amor. Seus olhos podiam lançar fogo, mas a chama era a chama do amor.

(2) Jesus disse: "Se outro vier em seu próprio nome, certamente, o recebereis". Os judeus tinham tido uma sucessão de impostores que asseguravam ser o Messias e cada um deles teve seus seguidores (Marcos 13:6, 22; Mateus 24:5,24). Por que é que os homens seguem aos impostores? Fazem-no porque — como disse alguém — os impostores são homens "cujas afirmações correspondem aos desejos dos homens". Os impostores chegavam prometendo impérios, triunfos, o fulgor da glória, e prosperidade material; Jesus chegou oferecendo uma cruz. O que caracteriza ao impostor é que oferece o caminho mais fácil O impostor oferece aos homens o caminho mais fácil para satisfazer seus próprios desejos; Jesus oferecia aos homens o caminho difícil que os conduziria a Deus. Mas os impostores morreram e Cristo continua vivo.


A CONDENAÇÃO FINAL
Estudo sobre João 5:44-47

Era próprio dos escribas e fariseus desejar o louvor dos homens. Vestiam-se de tal maneira que qualquer um pudesse reconhecê-los. Oravam de maneira que todos os vissem. Sempre escolhiam os primeiros assentos nas sinagogas. Encantavam-se com as saudações respeitosas que as pessoas lhes fazia na rua. E era justamente por isso que não podiam ouvir a voz de Deus. Por que? Enquanto o homem se julgue a si mesmo em comparação com os outros homens, ele se sentirá muito satisfeito. Enquanto o homem se fixe como meta receber o respeito e o louvor humanos, alcançará seu objetivo. Mas a questão não é: "Sou tão bom como meu próximo?" mas "Sou tão bom como Deus?" A questão não é perguntar-se "Meus conhecimentos e minha piedade são maiores que os de outras pessoas que eu poderia nomear?" e sim "Como apareço perante os olhos de Deus?"

Enquanto nos julgamos com pautas humanas há muitas possibilidades de que nos sintamos satisfeitos conosco mesmos, e a satisfação própria mata a fé, porque a fé surge a partir do sentimento de necessidade. Mas quando nos comparamos com Jesus Cristo e, através dele, com Deus, sentimo-nos humilhados até o pó, e então nasce a fé, porque não fica mais remédio que confiar na misericórdia de Deus. Assim, pois, Jesus termina com uma acusação que seus interlocutores sem dúvida compreenderiam. Já vimos o que pensavam os judeus a respeito dos livros que criam que Moisés lhes tinha dado; criam que era a própria palavra de Deus. Jesus disse: "Se tivessem lido bem esses livros, teriam visto que apontavam para mim". E prosseguiu: "Vocês crêem que por terem a Moisés como mediador estão salvos; mas será Moisés mesmo quem os condenará. Possivelmente não se possa pretender que me escutem, mas devem ouvir as palavras de Moisés que tanto valorizam, e essas palavras falam de mim".

Aqui está a grande e perseguidora verdade. O que fora o grande privilégio dos judeus se tornou sua condenação. Ninguém condenaria homem que jamais teve uma oportunidade; ninguém poderia condenar homem que sempre esteve sumido na ignorância. Mas os judeus receberam o conhecimento; e o conhecimento que não empregaram bem se tornou sua condenação. Sempre devemos lembrar que quanto maior seja nosso privilégio, maior será a condenação. Quanto mais oportunidades tenhamos para aprender, maior será a condenação se não aprendermos. A responsabilidade sempre é a outra cara do privilégio.