Estudo sobre a PÁSCOA

Estudo Sobre a Páscoa
Estudo Sobre a Páscoa

PÁSCOA. Essa antiga festa que acontece na primavera está associada ao episódio histórico da saída de Israel do Egito. Êxodo 12.13 explica nos etimologicamente: “passando sobre” as casas dos hebreus que exibiam o sinal do sangue, quando o Senhor feriu a terra do Egito. O sangue do cordeiro morto no décimo quarto dia do primeiro mês deveria ser colocado sobre a verga da porta e em ambas as ombreiras, para proteger os primogênitos dos hebreus (Êx 12.15ss.).

1. A Festa da Libertação
2. Ordenanças Relacionadas ao Pesah
3. O Tema Êxodo no AT
4. O Tema Páscoa no NT e na igreja
5. A Última Ceia
a. A Data da Crucificação
b. A Ceia Memorial
c. A Última Ceia e a Páscoa
d. O Êxodo Cristão

Alguns estudiosos questionam o sentido etimológico de nos e apontam para a Assíria onde a palavra significa “suavizar” ou “acalmar” (i.e., os deuses; cp. BDB s.v). Em heb. o verbo também pode significar “mancar”, “pular” ou “parar” (lRs 18.21). Sugeriu-se, portanto, que originalmente a festa provinha de uma origem diferente e tinha algo a ver com o costume pagão de “saltar”, realizado por profissionais do luto. Tal dança do pulo seria realizada em sinal de lamento ao deus agonizante relativo ao ciclo anual (cp. T. H. Gaster, Passover [1949], 23ss.). Isso é, porém, mera especulação.

Outra complicação é o fato da Páscoa parecer uma combinação de dois rituais separados, um relacionado ao cordeiro pascal e o outro ao pão asmo. Isso se toma aparente nos textos do AT que tratam desses dois rituais numa ordem sequencial, mas de maneira separada (cp. Lv 23.5s.; Nm 28.16s.; 2Cr 35.1,17; Ed 6.19ss.; Ez 45.21). Sugere-se, portanto, que essas duas festas eram originalmente distintas (cp. J. Jeremias KNTW s.v.). Ocasionalmente, o AT utiliza duas frases diferentes — cf. Êx 34.25; Ez 45.21 e Nm 28.16; 2Cr 30.13,21; Ed 6.22 — para descrever a mesma festa. Esta dupla designação sobreviveu nos tempos do NT (cp. Mt 26.2,17; Lc 2.41; 22.1; no Evangelho de João, aparece apenas πάσχα, cp. 2.13,23; 6.4; 11.55; etc. Por outro lado, Josefo utiliza ambos os termos: “a festa dos pães asmos... que nós chamamos de Páscoa” (Jos. Ant. XIV. ii. 1; cp. Jos. War VI. ix. 3; V. iii. 1).

Alguns estudiosos especuladores sugerem que o ritual original estava ligado ao medo supersticioso de espíritos malignos, apontando à frase “uma noite de vigia” (Êx 12.42) contra o “destruidor” (12.23). Sugere-se, então, que a festa foi assumida pelos israelitas a partir do culto pre-Yahwístico de Cades e era um rito originalmente realizado para a proteção contra o demônio noturno (cp. C. A. Simpson, The Early Traditions of Israel [1948], 437f.). Essas superstições que se anexaram ao ritual da meia-noite podem ser encontradas nas observações do Rab Nahman, que as chama de “a noite da proteção, i.e. dos espíritos malignos” (cp. Pes 109b). No entanto, o significado de Páscoa no AT, qualquer que seja sua pré-história, está totalmente associado a um evento histórico na vida do povo hebreu.

Há uma razão para se suspeitar que o sacrifício do cordeiro e a festa dos pães asmos também eram de origem agrícola e representavam as ofertas anuais do rebanho e do campo. A Festa dos Pães Asmos coincide com a época da colheita de cevada e a ordenança de mover “o feixe diante do Senhor” no dia seguinte ao Sábado (o dia seguinte a 15 de Nisã?) confirma a ligação agrícola com a Páscoa (cp. Lv 23.11). Essa conexão tem sido preservada na liturgia da sinagoga até o dia de hoje. No primeiro dia da Páscoa, na liturgia vespertina, insere- se uma oração comprida pelo orvalho (cp. D. A. Sola, Passover Service [1860], 153ss.; também L. N. Dembitz, Jewish Service in Synagogite and Home [1898], 124; cp. também Pes 2.5).

Correspondendo ao pão asmo está o cordeiro macho, sem defeito, com um ano de idade (Êx 12.5). Essa festa agrícola é pré-mosaica e pertence à mais antiga tradição israelita. Quando Moisés apareceu perante Faraó no nome de YHWH (5.1) pedindo: “Deixa ir o meu povo, para que me celebre a festa” (um), a não era uma invenção, mas uma tradicional festa da primavera (12.3).

1. A festa da libertação. A Páscoa oferece um vasto campo para especulação por causa da grande variedade de características: mancha de sangue, saltos, “uma noite de vigia”, o cordeiro sacrificial, as primícias da cevada, a ceia sagrada, etc. Essas características se assemelham a rimais praticados fora de Israel. Não é de se admirar que os estudiosos a considerem uma festa enigmática. Alguns não consideram Êxodo 1-14 como um registro dos eventos, mas como uma lenda cúltica que tenta glorificar a saída do Egito (Pederson, Israel: Its Life and Culture, III-IV, 726ss.). A suposição repousa sobre um equívoco: o verdadeiro propósito da Páscoa era glorificar o Deus de Israel. Seria inútil esperar dados históricos fora dos próprios termos do escritor. No centro de Êxodo 1-14 está o Deus de Israel, que realiza feitos poderosos em favor do seu povo (cp. G. von Rad, The Problem of the Hexateuch [1965], 52). A história bíblica é escrita com um propósito, e o propósito é atestar os atos graciosos de Deus. Israel compreende sua liberdade como um milagre operado por YHWH que, com “poderosa mão e com braço estendido” levou seu povo para fora do Egito (Dt 26.8). Para compreender o significado da Páscoa deve-se procurar a interpretação bíblica; é inútil indagar qual era a festa nos tempos pré-mosaicos. É possível que a Páscoa e a Festa dos Pães Asmos fossem festas agrícolas (cp. Êx 23.15s.).

Alguma evidência da ligação cúltica entre a Páscoa e as primícias está preservada (Js 5.10-12; cp. C. W. Atkinson, AthR [Jan 1962], 82). Mas a festa passou por uma reinterpretação radical como resultado do grande evento na história de Israel, conhecido como a libertação do Egito, a casa da escravidão. Os estudiosos não sabem explicar como um rimai primitivo enraizado na superstição se tomou a festa da libertação. Está de acordo com a prática do AT reinterpretar antigas tradições à luz da própria história de Israel. Assim, a lei do Sábado é associada à história da criação (Gn 2.3) e aparece também (Dt 5.15) como o sinal da libertação de Israel da escravidão (cp. P. R. Ackroyd, The People of the OT[1959], 48). O mesmo deve ter acontecido com a festa da primavera original: à luz do Êxodo adquiriu uma nova dimensão, isto é, a dimensão da liberdade unida a um evento histórico.
2. Ordenanças relacionadas ao Pesa h. O AT refere-se a um conjunto de estatutos (nosn npn) que são obrigatórios para a observância da festa (Êx 12.43; Nm 9.12,14; 2Cr 35.13). Estes estatutos definem em detalhes a data, o período, a duração da festa e a forma de se comer o cordeiro pascal, etc.

Os preparativos para a festa deveriam começar no décimo dia do primeiro mês (i.e. Abibe, cp. Dt 16.1; o nome babilônico foi substituído mais tarde por Nisã, cp. Ne 2.1; Et 3.7). O cordeiro pascal era escolhido de acordo com o número de pessoas na família. O cordeiro deveria ser sem mancha, de um ano de idade e macho. O animal deveria ser tratado de maneira especial até o décimo quarto dia do mês quando seria morto “entre as noites” (Êx 12.6mg.; Lv 23.5mg.). Isto quer dizer “à noite no por do sol” (Dt 16.6). O sangue do animal deveria ser colocado em ambas as ombreiras e na verga da porta. Posteriormente o sangue passou a ser borrifado sobre o altar e derramado em suas bases (cp. 2Cr 35.11; Jub 49.20; Pes 5.6). A carne deveria ser assada no fogo com a cabeça, pernas e partes internas e nenhum osso deveria ser quebrado (Êx 12.46; Nm 9.12). Não deveria ser comido cru ou cozido em água (Êx 12.9; Dt 16.7 parecem contradizer essa regra; mas cp. 2Cr 35.13; o verbo bissel pode significar “cozer” tanto quanto “ferver”). A carne assada deveria ser comida com pão asmo e ervas amargas, e deveria ser consumida de forma que nada sobrasse para o dia seguinte; qualquer sobra deveria ser queimada (Êx 12.10; 34.25). A refeição deveria ser comida às pressas, com os lombos cingidos, sapatos calçados e a vara na mão. A festa da Páscoa era um dia de memorial e, portanto, para ser comemorada por todas as gerações como uma ordenança eterna (Ex 12.14). A Festa do Pão Asmo, como distinta do cordeiro pascal, deveria ser observada durante sete dias (Ex 12.15; 13.6; 34.18; Lv 23.6; Nm 28.17; Dt 16.3; a única exceção está em Deuteronômio 16.8, mas a diferença deriva do modo de se contar os dias, cp. S. B. Hoenig, JQR [Abril 1959], 271 ss.). Os israelitas que eram impedidos de participar da Festa por causa da impureza levítica ou por viagem deveriam celebrá-la um mês depois (Nm 9.10s.; cp. Pes 9.3).

A responsabilidade de explicar o significado da Páscoa estava sobre o pai da família: “Naquele mesmo dia contarás a teu filho, dizendo: E isto pelo que o Senhor me fez, quando saí do Egito” (Ex 13.8; cp. 12.26). Somente os israelitas e aqueles que, através da circuncisão, estavam unidos à comunidade podiam comer o cordeiro pascal. Estrangeiros e viajantes, i.e., estrangeiros residentes, eram excluídos (Ex 12.45), mas a regra não era aplicada aos estrangeiros circuncidados e viajantes que demonstrassem um real interesse em se identificar com Israel. A eles era permitido participar da celebração da Páscoa (Nm 9.14). O cordeiro deveria ser comido dentro da casa e não deveria ser levado para fora dela.

3. O Tema Êxodo no AT. Com a mudança de circunstâncias, as antigas leis tiveram que ser modificadas. Os cultos centralizados em Jerusalém dificultaram algumas práticas. A mancha de sangue nos umbrais da porta deveria ser completada com o borrifar do sangue no altar (cp. 2Cr 30.16; 3 5.11). A regra de comer o cordeiro na casa foi, de acordo com o Talmude, modificada para as casas em Jerusalém apenas (cp. Pes 9.12; mas cp. Jub 49.20). As características originais agrícolas da festa abriram caminho para aspectos mais cúlticos. Uma característica peculiar sobrevive até hoje: era e continua sendo um rito público. Os rabinos consideram a regra de que o cordeiro pascal não pode ser morto para uma única pessoa (apesar do Rabino José permitir; cp. Pes 8.7). Outra característica provinda de tempos antigos era que a morte do cordeiro era feita por israelitas comuns agindo em favor de seus familiares e não por sacerdotes como no caso dos outros sacrifícios (cp. Pes 6.5). Tudo o que os sacerdotes tinham que fazer era recolher o sangue e derramá-lo nas bases do altar. A Páscoa era a única ocasião em que o israelita realizava uma função sacerdotal (a partir de 2Cr 30 e 35 não está claro se era o povo ou os sacerdotes que matavam o animal). Outras características permanecem obscuras, por exemplo, a queima das sobras: Êxodo 12.10 ordena que o que fosse deixado até pela manhã deveria ser queimado, ao passo que Êxodo 23.18; 34.25 e Deuteronômio 16.4 especificam que deveria ser terminado antes do amanhecer. Pode não ter havido uma tradição uniforme em alguns assuntos; alguns “comeram a Páscoa, não como está escrito” (2Cr 30.18). Uma tradição uniforme evoluiu gradualmente, mas os fatos principais relacionados ao Êxodo nunca variaram.

O AT é repleto de referências ao milagre da redenção do Egito. Os Salmos, em especial, se deleitam em enfatizar o tema do Êxodo com todos os seus milagres. O Salmo 78 repete a história de Israel tendo o Êxodo como o tema central. O ato redentor de Deus consistiu em tirar uma videira do Egito e plantá-la na Terra Prometida (SI 80.8). Alguns salmos contrastam a fidelidade de Deus para com seu povo com o comportamento rebelde de Israel no deserto (cp. SI 95; 106). O propósito principal de recontar a história da redenção era louvar a Deus por seus atos poderosos (cp. SI 135; 136). Os velhos cantores exultavam no privilégio de Israel ser chamado povo de Deus e de ter saído do Egito (SI 114.1).

Os profetas fazem alusões freqüentes à história da redenção do Egito e da longa viagem pelo deserto. A aliança de Israel com o Egito por conveniência política era muito abominável uma vez que parecia contradizer o propósito original de Deus (cp. Jr 2.18s.; Os 11.5). Em tempos de perigo, quando a Assíria pressionou duramente Israel, o profeta trouxe à memória o que Deus fez por seu povo no Egito: “não temas a Assíria” (Is 10.24,26s.; cp. 52.4). Jeremias lamenta o fato de Israel falhar ao perguntar: “Onde está o Senhor que nos trouxe da terra do Egito, que nos guiou no deserto” (2.6ss.). Ele os faz lembrar que desde o dia em que seus pais saíram da terra do Egito até então, o Senhor persistentemente enviou profetas ao seu povo de dura cerviz (7.25,26), advertindo- os (11.4), mas eles não quiseram ouvir (vv. 7,8).

Esta referência a YHWH que tirou Israel do Egito é um refrão freqüente nos escritos proféticos (cp. Jr 16.14; 23.7; 31.32; 32.21; 34.13; Ez 20.6,9s.,36; Dn9.15, Os 2.15; 11.1; 12.9,13; Am 2.10; 3.1; 9.7). Para os profetas, o Êxodo é um fato central na história de Israel. Israel conhece YHWH principalmente como aquele que seu povo da escravidão do Egito, o guiou pelo deserto e lhe deu estatutos e ordenanças (Ez 20.9-11). Ezequiel parece associar a instituição do sábado à história da redenção do Egito (20.12), e a “lascívia e... prostituição” de Israel é uma triste herança trazida da casa da escravidão (23.27). Os livros históricos estão igualmente cientes do significado do Êxodo para a relação entre Israel e YHWH. Deus se fez conhecido a seu povo ao libertá-lo da casa da escravidão e ao estabelecê-lo na terra prometida (ISm 8.8,2Sm 7.23; lRs 8.53; etc).

O Êxodo domina num senso real a perspectiva do AT, e a Páscoa é a lembrança do que Deus fez por seu povo. A libertação do Egito e o estabelecimento na terra de Israel são considerados como o selo da lealdade de YHWH para com as promessas da aliança (cp. Mq 6.3s.). O tema da Páscoa como a festa da libertação é transportado para o NT.

4. O tema Páscoa no NT e na Igreja. A atividade messiânica de Jesus alcança seu clímax nos eventos de sua Ultima Páscoa. De acordo com João, a crucificação aconteceu no primeiro dia da “Páscoa” (usado aqui aparentemente como uma designação da Festa dos Pães Asmos). Os sinópticos deixam claro que foi no primeiro dia da festa. João que parece estar interessado especialmente em dados cronológicos registra duas, ou até mesmo três Páscoas (João 2.13; 6.4; 12.1; cp. W. F. Howard, The Fourth Gospel, revisado por C. K. Banet [1955], 122). Contrário a C. H. Dodd (The Interpreter of the Fourth Gospel [1953], 234), há um bom motivo para se acreditar que João dedicou importância especial ao tema da Páscoa. Seu evangelho, que enfatiza ser o Messias o verdadeiro pão da vida, se ajusta notavelmente bem ao contexto pascal (cp. Jo 6.3 lss. cp. V. Ruland, INT [Out., 1964], 451 ss.). A Páscoa é igualmente importante para os evangelhos sinópticos; tanto que se pode vislumbrar o evangelho de Marcos como uma Haggadah da Páscoa Cristã escrita com o propósito de reinterpretar o tema pascal em termos messiânicos como o Novo Êxodo (cp. John Bowman, The Gospel of Mark [ 1965]). Um caso um pouco semelhante é 1 Pedro, que faz tantas alusões à Páscoa que alguns estudiosos se sentem justificados em considerá-la como uma liturgia pascal. Sugere-se que 1 Pedro é uma liturgia ligada à vigília pascal em preparação ao batismo pascal, um costume amplamente praticado na igreja primitiva (cp. F. L. Cross, 1 Peter I [1954]; Roger Le Déaut, La Nuit Pascale [1963], 297; A. R. C. Leaney, NTS, X [1964], 238ss.). Isto pode provar, de maneira muito restrita, um conceito que tem sido contradito por alguns (C. F. C. Moule; T. C. G. Thomton), mas não mostra, todavia, quão profundamente o tema da páscoa está embutido no NT. Outros livros do NT fazem alusões similares à Páscoa em conexão com a mensagem cristã. Paulo claramente associa o Messias à Páscoa e compara a vida cristã com o símbolo do pão asmo que permanece em sinceridade e verdade (ICo 5.7 s.).

Uma associação similar entre o Messias e a Páscoa existe no Judaísmo rabínico. O dia 15 de Nisã é declarado como um tempo de alegria para todos os israelitas, porque Deus realizou um milagre (sinal) naquela noite, mas na era que virá (i.e., no tempo do Messias) ele transformará a noite em dia (cp. SBKIV, 55). Na Haggadah shelpesah, a expectativa messiânica está ligada ao seder tanto pela referência direta ao Messias como pela parte que Elias representa a tradição pascal. O costume de abrir a porta à meia-noite, na primeira noite da Páscoa, já era praticada no Templo de Jerusalém (cp. Jos. Ant.. XVIII. ii.2), e tem implicações messiânicas definidas. Déaut mostrou a íntima associação entre o ritual pascal e as expectativas messiânicas no Judaísmo rabínico do séc. le. Isto se aplica até mesmo aos samaritanos que esperavam a aparição de seu Taheb (Messias) no dia de Páscoa (cp. Déaut, op. cit. 281, 283).

O tema pascal do NT, e em especial de João (cp. A. Guilding, The Fourth Gospel and Jewish Worship [1960], 58ss.), foi assumido pela igreja gentílica. A liturgia da vigília pascal e a tradição Quartusdecimus (décimo quarto) de fazer a Páscoa coincidir com a Páscoa judaica persistiu na igreja por séculos (cp. B. Lohse, Das Passafest der Quartodecimaner [1953]; Diepassa-Homilie des Bischofs Meliton von Sardes [1958]). A expressão “a Páscoa da salvação” entrou no vocabulário da igreja e foi usada abertamente na liturgia (cp. Déaut, 296; apesar de Lohse ter contradito). A identificação de Cristo com a Páscoa cristã foi aceita como premissa teológica: “a festa da Páscoa do Salvador”, (Euseb. Hist. V. 23.1), significa tanto a Última Páscoa que Jesus celebrou, como a Páscoa cristã quando a igreja celebra a ressurreição de Cristo. Num jogo de palavras, que somente é possível em grego, πάσχα é interpretado com o significado de πάσχῶ: “E no dia seguinte nosso Salvador sofreu, aquele que era a Páscoa — sacrificado de modo propício pelos judeus” (Ante-Nicene Christian Library XXIV, 167). Portanto, a Páscoa judaica e a Páscoa cristã conservadas juntas de modo que o tema da páscoa do AT perdurasse embora centrada na ressurreição de Jesus Cristo.

5. A Última Ceia. A tradição que Paulo recebeu e registrou pertence ao mais primitivo registro do que aconteceu na noite em que Jesus foi traído (1 Co 11.23-26). Este registro afirma que foi à noite que houve uma refeição, que Jesus tomou o pão, o partiu e disse, “Isto é o meu corpo, que é dado [partido] por vós; fazei isto em memória de mim”. O mesmo com o cálice: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim.” Não há menção da Páscoa no registro de Paulo, exceto de uma forma circunstancial: o partir do pão de forma solene, o beber do vinho no cálice, a referência à aliança tem implicações pascais. O registro sinóptico não se diferencia em essência do paradosis paulino, exceto por ser apresentado como uma ceia pascal (cp. Mt 26.17; Mc 14.12; Lc 22.7).

a. A data da crucificação. Se a referência de João ao sacrifício do cordeiro pascal, em 18.28, refere-se à verdadeira ceia pascal, então a Ultima Ceia não poderia ter sido a ceia pascal. Os sinópticos são explícitos ao declarar que a crucificação aconteceu no primeiro dia da Páscoa (15 de Nisã). Há dois possíveis problemas relativos a isto: os eventos descritos na história da paixão teriam que ser comprimidos num curto período de tempo; o envolvimento das autoridades judaicas no negócio sórdido de uma crucificação no primeiro dia de uma grande festa é difícil de aceitar. J. Jeremias rejeita as dificuldades que se levantam em relação a crucificação em 15 de Nisã (The Eucharistic Words of Jesus [1955], 46ss.), mas pelo lado judaico isto é considerado pura impossibilidade (cp. J. B. Sega, The Hebrew Passover [1963], 244 n 8; cp. também D. Daube, The NT and Rabbinical Judaism [1956], 312). D. Chwolson tentou resolver a dificuldade pressupondo duas datas para a Páscoa, uma para se ajustar ao calendário farisaico e a outra para ao saduceu (Das letzte Passamahl Christi under-Tag seines Todes [1892, rev. 1908]). Através da literatura de Qumran sabemos que as diferenças no calendário eram causa de dissensão (cp. M. Black The Scrolls and Christian Origins [1961], 199ss.). Não há evidência de que os saduceus, que tinham a superintendência do Templo, tivessem se comprometido em tão importante assunto como permitir duas datas distintas. Mlle. Annie Jaubert trabalhou sobre a premissa de dois calendários diferentes: um velho calendário sacerdotal baseado no sistema solar e o calendário lunar oficial da época. De acordo com o sistema solar, a Páscoa cairia sempre numa quarta-feira; o sistema lunar tomaria a festa móvel. Sugere-se então que a discrepância nos evangelhos deriva-se do duplo sistema (cp. La Date de la Céne [1957]). De acordo com uma antiga tradição da igreja/ Jesus foi preso na quarta-feira (cp. Epifânio, de fide XXII, 1), o que significa que a Ultima Ceia teria acontecido numa terça-feira. A teoria de Mlle. Jaubert foi grandemente aceita (cp. G. R. Driver, The Judaean Scrolls [1965], 330ss.; John Bowman, op. cit. 257ss.; Norman Walker, “Conceming the Jaubertian Chronology of the Passion”, Nov Test III [1959], 317ss.). Mas a teoria fica de pé e cai com a suposição de duas celebrações pascais. Se os sinópticos e João estão falando da mesma Páscoa “a discrepância não pode ser reconciliada” (Driver, op. cit. 331). George Ogg mostrou porquê a teoria é insustentável (cp. Historicity and Chronology in the NT [1965], 82s.). Ao mesmo tempo há um grande consenso de que a Ultima Ceia foi a ceia pascal: nem a teoria do kiddush ou do haburah são adequadas (cp. Bowman, op. cit. 274s.). Jeremias sugere 14 aspectos de uma ceia pascal (op. cit. págs. 136ss.) e admite que a partir das evidências do NT nenhuma resposta uniforme é possível (TWNT, V, 895ss.). Uma solução para o dilema seria aceitar que a Ultima Ceia foi a ceia pascal, mas em antecipação à festa, o que significaria que não havia cordeiro pascal; pelo menos o cordeiro pascal nunca é mencionado no NT (apesar de Bowman admitir sua presença, op. cit. 266). Tão simples solução toma possível a reconciliação das duas tradições: João estava certo, pois a Páscoa começou na sexta-feira à noite; os sinópticos estavam corretos, pois a Ultima Ceia foi a ceia pascal mesmo sem o cordeiro (cp. J. Jocz, A Theology of Election [1958], 37; G. Ogg, op. cit. 85s.).

b. A ceia memorial. Anamnesis é a idéia fundamental da Páscoa: Israel traz à memória o que Deus tem feito pelo seu povo (cp. Hans Kosmala, Nov Test, IV [1959], 81ss.). No contexto pascal, as palavras da instituição da Ultima Ceia se encaixam bem ao propósito da festa. Mas está faltando o convite para “lembrar” nos sinópticos, com exceção da VS mais longa de Lucas (cp. Lucas 22.17-19mg.). Isto levanta a questão sobre qual texto é o original. A questão é complicada pelo fato de que a VS mais longa está sob suspeita de ter assimilado o texto de 1 Coríntios 11.24s. Depois de um estudo cuidadoso, Jeremias escolheu a VS mais longa de Lucas e atribui as similaridades verbais ao fato de que ela deriva da fórmula litúrgica (op. cit. 91,102). Isto coincide com o próprio testemunho de Paulo de que ele recebeu a tradição (cp. Birger Gerhardsson, Memory and Manuscript [1961], 321 ss.). A favor da VS mais longa de Lucas está a menção de dois cálices, um antes e um após a refeição. Isto está de pleno acordo com os costumes judaicos de ter o cálice kiddush no começo da festa.

O fato de anamnesis não ser mencionado em Marcos não significa que a instituição da Última Ceia era desconhecida naquele evangelho, como deduz Bowman (op. cit. 266). Sendo admitido o contexto pascal, o anamnesis já está automaticamente incluído — toda a festa é lezikkaron (Ex 12.14). As palavras interpretativas que acompanham os atos manuais estão em conformidade com a obrigação de explicar o significado do “ritual” — (Ex 12.26; Pes 10.4). Jesus seguiu o costume mas reinterpretou a Páscoa sob o ponto de vista do evento messiânico: o Messias assumiu o papel do cordeiro pascal. É, portanto, correto dizer que a Ultima Ceia proporciona à Páscoa um novo conteúdo (cp. J. Steinbeck, Nov Test III [1959], 73). Daqui em diante o pão e o vinho do seder se tomam os sinais do sacrifício do Messias na cruz. A ceia pascal se toma uma ceia messiânica.

Os estudiosos suspeitam que Paulo tenha recebido influências helênicas em vista das práticas das refeições cúlticas nas religiões pagãs. O contexto pascal da Ultima Ceia toma tais suspeitas infundadas (cp. E. Kãsemann, Exegetische Versuche und Besinnungen [1960], 11). Sverre Aalen nega qualquer ligação com rituais não judeus e aponta para o fato de que na Ultima Ceia não há indicação de uma ceia compartilhada entre Deus e o homem (Nov Test VI, 151).

c. A Ultima Ceia e a Páscoa. Na época do Templo, a ceia pascal consistia não apenas do cordeiro, mas também da festa especial do sacrifício, da qual todos participavam (cp. 2Cr 35.13). Comer o sacrifício era uma ocasião alegre e dava coesão à vida comunitária. Isto deve ser distinguido da oferta pelo pecado, que era totalmente queimada e nunca consumida. Para os hebreus, comer o sacrifício nunca significou comer seu Deus. A participação do Messias cria um problema se a Ultima Ceia for concebida puramente em termos sacrificiais. Por esta razão a ênfase na Última Ceia deve ser colocada tanto sobre a aliança quanto sobre a oferta pelo pecado, se não mais (cp. Aalen, op. cit. 148s.). O sangue que selou a aliança não é o sangue derramado sobre o altar, mas o sangue borrifado sobre as pessoas. Há uma correspondência entre a Última Ceia e Êxodo 24.11; os anciãos de Israel viram Deus e comeram e beberam.

A aliança está no centro do registro da Páscoa. Na noite do Êxodo, Deus se revelou como o Deus dos pais que se lembraram sua aliança (Êx 2.24; 3.15). Na noite da crucificação, esta aliança foi reafirmada pela voluntariedade do Messias de derramar seu sangue. O cordeiro pascal não é, portanto, suficiente para explicar o sentido completo da Última Ceia; a aliança se impõe como o tema que cobre com a arca.

Isto levanta o problema do significado de η καινη διαθηκη em que sentido é uma nova aliança? O escritor aos Hebreus e Paulo, algumas vezes, dão a impressão de uma ruptura radical: o primeiro mandamento é colocado de lado “por causa de sua fraqueza e inutilidade” (Hb 7.18); se a primeira aliança tivesse sido feita sem defeito não haveria necessidade de uma segunda (8.7); “Quando ele diz nova, toma antiga a primeira” (8.13); aquele que está em Cristo nova criatura é; as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo (2Co 5.17).

Desde Marcião tem persistido uma tendência de separar os dois Testamentos e de compreender o “novo” num sentido radical. A exposição de Paulo sobre o destino de Israel (Rm 9-11) toma tal ruptura impossível. Os Pais da Igreja que falaram de uma “mudança de aliança” (cp. Lactâncio, Divinae Institutiones IV, 11) fizeram violência à continuidade da revelação. A doutrina do Logos não permite tal ruptura; o Cristo preexistente já falava no AT (cp. IPe 1.11). O escritor de Hebreus baseia seu argumento na premissa de que o Cristo preencamado estava presente na história de Israel (cp. W. Manson, The Epistle to the Hebrews [1951], 79s., 82,96,184ss.). O novum, então, deve ser compreendido em conexão com o evento messiânico. A Nova Aliança coloca a Velha Aliança à margem de seu cumprimento escatológico, mas o povo de Deus é uma continuação de Abel até os dias de hoje (cp. Melanchthon, On Christian Doctrine [1965], 232). Cristo como o telos da lei (Rm 10.4) traz uma Nova Era, mas não muda as promessas de Deus. A Nova Aliança é chamada “melhor” que a velha (Hb 8.6) porque Deus em Cristo cumpre sua promessa de escrever sua lei no coração dos que crêem (Hb 8.8ss.). A Última Ceia, portanto, continua o tema da Páscoa no novo contexto messiânico.

(1) É uma festa em memória da pessoa e obra do Messias. O anamnesis vai além dos eventos históricos e se toma uma proclamação e confissão de fé (cp. ICo 11.26).

(2) É uma declaração de fidelidade entre o Mestre e os discípulos, expressando coesão e uma mútua interdependência da família cristã.

(3) Reafirma a antiga aliança, selando-a no sangue do Messias.

(4) Expressa a alegria da salvação e a esperança escatológica do triunfo definitivo do Messias (cp. J. Steinbeck, op. cit. 71 ss.)

d. O Êxodo Cristão. A ideia fundamental da mensagem do NT é o cumprimento messiânico; Jesus é aquele de quem Moisés e os profetas escreveram (Jo 1.45). O Messias, através de sua vida, obra, morte e ressurreição realizou uma “salvação eterna” (Hb 5.9). A lei era incapaz de fazer isto, porque a lei não tomava nada perfeito (7.19); ela somente serviu como um παιδαγωγὸς até Cristo vir (G1 3.24). A salvação de YHWH, como demonstrada na história do Êxodo (cp. Êx 14.13), era apenas um prenúncio do que estava por vir. Todos os atos de Deus no AT apontam para um acontecimento futuro. Um dia virá, quando o Senhor se revelará como “um guerreiro que dá vitória” (Sf 3.17). A diferença entre a redenção do Egito e a salvação messiânica não está nos períodos em que ocorreram. A salvação bíblica está sempre arraigada no tempo e na história; esta é sua característica mais peculiar (cp. Daube, op. cit. 271). A distinção não se dá também porque uma é física (ou política) e a outra espiritual. Mas a distinção j az antes na área da escatologia; a salvação messiânica é definitiva. Os rabinos consideram a redenção do Egito como um prenúncio da redenção final (Daube, ibid. 191), o NT a reivindica como um fato realizado. A Páscoa é o começo da jornada que o Messias completa ao alcançar sua meta. “Salvação eterna” significa que não pode haver outra salvação após o evento messiânico, que é o definitivo. A aliança eterna que Deus prometeu aos pais (Jr 32.40; 50.5; cp. Is 55.3; Ez 16.60) foi estabelecida e selada no sangue do Messias (Hb 13.20). Em Hebreus a dissolução do culto, a mudança do sacerdócio e a remoção da lei são as conseqüências do evento messiânico. Cristo se tomou o caminho vivo (10.20) para o interior do santuário (6.19), o novo Sumo Sacerdote que, por seu sacrifício, tomou possível ao homem aproximar-se da presença do próprio Deus (10.20ss.).

Bowman detecta um paralelo esboçado em Marcos entre Moisés e Jesus (op. cit. 157). Mas a semelhança não é uma criação artificial. Ao contrário, deriva do tema pascal; o Êxodo fala de salvação. Jesus completou o que Moisés começou, mas nunca pôde realizar num sentido definitivo. A verdadeira libertação é a libertação do pecado. Ninguém que é escravo do pecado é verdadeiramente livre. Somente aquele a quem o Filho liberta, é de fato livre (Jo 8.34s.). Paulo chega a uma conclusão parecida: os pais estavam todos debaixo da nuvem, passaram pelo mar, foram batizados em Moisés, comeram do manjar espiritual e beberam da fonte espiritual e, ainda assim pereceram no deserto (ICo 10.1-5). O Êxodo teve um objetivo limitado, que não foi alcançado até que uma nova geração viesse. Ele é, portanto, apenas uma parábola da jornada do homem ao seu destino final — a Terra Prometida. Esta jornada não pode ser feita em sua própria força. O escravo tem que se tomar liberto do Senhor (ICo 7.22) e a alforria acontece na cruz de Jesus Cristo. Em Jesus os homens se tornam filhos de Deus (G1 4.4-6) e gozam da liberdade dos filhos de Deus (Rm 8.2ss.). O Êxodo do Egito para a terra de Canaã conduz além da história para a “Cidade” cujas fundações tem “Deus como arquiteto e edificador” (Hb 11.10). Enquanto que o Êxodo histórico foi limitado à experiência de um povo, o Êxodo cristão está aberto às nações do mundo. O destino final do homem é a Jerusalém celestial, a cidade da liberdade (G1 4.26).


BIBLIOGRAFIA. Haggadah of Passover, tr. por M. Summel (1942); T. H. Gaster, Passover (1949); B. Lohse, Das Passafest der Quartodecimaner (1953); J. Jeremias, The Eucharistic Words of Jesus (1955); A. Jaubert, La Date de la Céne (1957); P. Goodman, The Passover Anthology (1961); R. Le Déaut, La Nuit Pascale (1963); J. B. Segai, The Hebrew Passover (1963); J. Bowman, The Gospel of Mark (1965).