Estudo sobre João 8
Estudo sobre João 8
Desgraça e piedade - 8:1-11
Desgraça e piedade - 8:1-11 (cont.)
Desgraça e piedade - 8:1-11 (cont.)
A luz que os homens não reconheceram - 8:12-20
A luz que os homens não reconheceram - 8:12-20 (cont.)
A luz que os homens não reconheceram - 8:12-20 (cont.)
A incompreensão fatal - 8:21-30
A incompreensão fatal - 8:21-30 (cont.)
A incompreensão fatal - 8:21-30 (cont.)
O discípulo autêntico - 8:31-32
Liberdade e escravidão - 8:33-36
O filho autêntico - 8:37-41a
Os filhos do diabo - 8:41b-45
A grande acusação e a fé brilhante - 8:46-50
A vida e a glória - 8:51-55
A tremenda afirmação - 8:56-59
DESGRAÇA E PIEDADE
Estudo sobre João 8:1-11
Os escribas e fariseus tinham proposto encontrar alguma acusação com a qual pudessem desacreditar a Jesus. E neste incidente criam que o tinham posto entre a cruz e a espada. Na época de Jesus, quando surgia algum problema legal difícil se acostumava levá-lo perante algum rabino para que este tomasse uma decisão. De maneira que os escribas e fariseus se aproximaram de Jesus como a um rabino. Trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério.
Diante da Lei judia, o adultério era um crime muito grave. Os rabinos diziam: "Todo judeu deve morrer antes que cometer idolatria, assassinato ou adultério." O adultério era um dos três pecados mais graves. A Lei era muito clara neste aspecto. Existiam algumas diferencia a respeito da forma em que se devia cumprir a pena de morte; mas no caso do adultério a Lei estabelecia tal pena. Levítico 20:10 diz: “Se um homem adulterar com a mulher do seu próximo, será morto o adúltero e a adúltera”. Ali não se fala da forma em que diziam morrer. Deuteronômio 22:23-24 estabelece a pena no caso de uma mulher que já está desposada. Nesse caso, era preciso tirar a mulher e o homem que a
seduziu fora das portas da cidade "e os apedrejarão, e morrerão". O Mishna, quer dizer a Lei escrita judaica, afirma que o castigo para o adultério é o estrangulamento e até estabelece a forma em que o
deve levar a cabo. "O homem deve ser enterrado em esterco até os joelhos, e se deve pôr uma toalha suave dentro de uma mais grossa ao redor de seu pescoço (para que não fique marca, porque se trata de um castigo de Deus). Depois um homem atira para um lado, e outro ao lado contrário, até o homem morrer." O Mishna reitera que para a mulher desposada que comete adultério, o castigo é morrer apedrejada. Do ponto de vista puramente legal, os escribas e fariseus tinham toda a razão do mundo. Esta mulher merecia a pena de morte.
Quando os escribas e fariseus confrontaram Jesus com esta decisão, quiseram embarcá-lo no seguinte dilema: Se Jesus decidia que era preciso apedrejar a mulher, ocorriam duas coisas. Em primeiro lugar, perdia para sempre a fama que se granjeou por seu amor e sua misericórdia, e jamais o voltaria a chamar amigo dos pecadores. Se dizia que devia morrer chocaria com a lei romana pois os judeus não tinham poder para impor a pena de morte sobre ninguém. De maneira que se Jesus dizia que a mulher devia morrer, perderia o amor e a devoção da maioria das pessoas simples, e se tornaria em um criminoso perante o governo romano. Se Jesus decidia que era preciso perdoá-la, imediatamente se afirmaria que ensinava os homens a desobedecer a Lei de Moisés, e que fomentava e até alentava as pessoas a cometer adultério. Essa era a armadilha em que escribas e fariseus pretendiam fazer Jesus cair. Mas Jesus inverteu seu ataque de tal forma que se voltou contra eles mesmos.
Em primeiro lugar, Jesus girou e escreveu o chão. O que significa isso, em realidade? Por que Jesus fez semelhante coisa? Pode haver quatro razões. (1) Jesus pode ter querido ganhar tempo, e não tomar uma decisão apressada. Nesse breve instante pode ter pensado o assunto e pode tê-lo apresentado perante Deus. (2) Alguns manuscritos adicionam, "Como se não os ouvisse." Pode ser que Jesus tenha obrigado os escribas e fariseus a repetir suas acusações para que, ao fazê-lo, pudessem dar-se conta da crueldade sádica que escondiam. Possivelmente queria que tomassem consciência do que estavam dizendo. (3) Em Ecce Homo, Seeley sugere algo interessante. "Jesus experimentou um sentimento de vergonha intolerável. Não podia enfrentar a multidão, os acusadores e possivelmente, nesse momento, a quem menos pudesse enfrentar fosse a mulher... Em sua vergonha e confusão se reclinou para esconder o rosto e começou a escrever no chão com os dedos." Pode ser que o olhar malicioso e lascivo dos escribas e fariseus, a curiosidade ofegante da multidão, a vergonha da mulher, combinaram-se para encher o coração de Jesus de agonia e piedade, de maneira que escondeu seu olhar. (4) Sem dúvida as sugestões mais interessantes são as que propõem alguns dos manuscritos posteriores. A versão armênia do Novo Testamento traduz esta passagem da seguinte forma: "Ele mesmo, reclinando a cabeça, escrevia com o dedo sobre o chão para declarar os pecados desses homens e eles viam seus distintos pecados sobre as pedras." O que sugere é que Jesus escrevia no chão os pecados dos homens que acusavam à mulher. Pode haver algo de verdade nisto. A palavra grega com que se expressa escrever é grafein; mas a palavra que se emprega aqui é katagrafein, que pode significar escrever uma acusação contra alguém. (Um dos significados de kata é contra.) Em Jó 13:26, ele diz: “Escreves (katagrafein) contra mim coisas amargas.” Pode ser que Jesus enfrentasse a esses sádicos tão seguros de si mesmos com a lista de seus pecados. Seja como for, os escribas e fariseus insistiram em obter uma resposta, e a conseguiram. Com efeito, Jesus disse: "Muito bem! Apedrejem! Mas o homem que esteja sem pecado seja o primeiro em atirar a pedra." Não seria difícil que a palavra sem pecado (anamartétos) signifique não só sem pecado, mas também sem um desejo pecaminoso. O que dizia Jesus era o seguinte: "Sim, podem apedrejá-la, mas só se vós mesmos nunca quiseram fazer o mesmo." produziu-se um silêncio, e logo, lentamente, os acusadores se foram afastando. Assim, Jesus e a mulher ficaram sozinhos. Como o expressa Agostinho: "Ficou uma grande miséria e uma grande misericórdia." Jesus perguntou à mulher: "Ninguém te condenou?" "Ninguém, Senhor", respondeu. Jesus disse: "No momento eu tampouco te julgarei. Vai, comece mais uma vez, e não voltes a pecar."
DESGRAÇA E PIEDADE
Estudo sobre João 8:1-11 (continuação)
A grande contribuição desta passagem é a forma em que mostra as
distintas atitudes para com as pessoas. Mostra-nos duas coisas a respeito da
atitude dos escribas e fariseus.
(1) Mostra-nos sua concepção da autoridade. Os escribas e fariseus eram
os eruditos legais da época. Quando surgia um problema se recorria a eles e
como autoridade em matéria legal. Toda sua atitude manifesta com clareza que
para eles a autoridade era algo essencialmente crítico, e condenatório. Jamais
lhes ocorreu pensar que a autoridade deve basear-se na compreensão, que o
objetivo da autoridade deveria ser recuperar o criminoso e o pecador. Concebiam
sua função como algo que lhes dava o direito de erguer-se sobre outros como
vigilantes lúgubres, estar atentos a qualquer engano ou separação da Lei e dar
a cada quebrantamento da Lei com um castigo selvagem e desumano. Consideravam
que sua função lhes dava o direito de aniquilar o pecador; nunca lhes passou
pela cabeça que talvez estavam na obrigação de curá-lo. Ainda existem pessoas
que crêem que a posição de autoridade lhes dá o direito de condenar e a
obrigação de castigar. Concebem a autoridade como algo que não implica mais que
castigo e condenação. Crêem que a autoridade que possuem lhes dá o direito de
ser cães guardiães treinados para fazer migalhas ao pecador. Toda autoridade
autêntica se baseia na compreensão.
Quando George Whitefield viu o criminoso a caminho ao cadafalso, pronunciou
essa frase famosa: "Aí vou eu, se não fosse pela graça de Deus."
O primeiro dever da autoridade é tentar compreender por que atuou de uma
forma determinada o homem que cometeu um engano, tratar de entender a força das
tentações que o incitaram a pecar, tratar de compreender quais foram as
circunstâncias que converteram ao pecado em um pouco tão fácil e atrativo.
Ninguém pode julgar a outro se, pelo menos, não buscar compreender o que viveu
essa pessoa. O segundo dever da autoridade é buscar recuperar a quem agiu mal.
Qualquer autoridade que só se preocupa com o castigo é uma autoridade má.
Qualquer autoridade que, ao cumprir sua função, leva o pecador já seja ao
desespero ou a um ressentimento amargo e triste, é um fracasso. A função da
autoridade não consiste em apartar o pecador de toda sociedade decente, menos
ainda aniquilá-lo; sua função consiste em converter o pecador em um homem bom.
O homem que está em uma posição de autoridade deve ser como um médico sábio;
seu único desejo deve ser curar a outros.
(2) Este incidente mostra com toda clareza e crueldade a atitude dos escribas
e fariseus com relação ao povo. Estes escribas e fariseus não olhavam à mulher
como uma pessoa; só a viam como uma coisa, como um instrumento mediante o qual
pudessem fazer uma acusação a Jesus. Estavam-na usando, como a gente faria com
uma ferramenta, para seus próprios fins. Para eles, essa mulher não tinha nome,
personalidade, coração, sentimento, nem emoções; não era mais que uma peça no
jogo com o qual buscavam destruir a Jesus. Sempre é errado ver as pessoas como
coisas; sempre é algo mau, desumano e anticristão ver as pessoas como coisas.
A respeito de Beatrice Webb, que logo se converteu no Lady Passmore, a
famosa economista, dizia-se que "via os homens como espécimes que
caminhavam". Para ela o homem não era uma pessoa, mas uma instância, um
caso, um espécime de algo.
O Dr. Paul Tournier, em seu livro A Doctor's Casebook, refere-se ao que
ele denomina "o personalismo da Bíblia". Assinala o interesse que a
Bíblia demonstra pelos nomes. Deus diz a Moisés: “Eu te conheço pelo teu nome”
(Êxodo 33:17). Deus disse ao Ciro: “Eu sou o SENHOR... que te chama pelo teu
nome” (Isaías 45:3). Na Bíblia há páginas inteiras com nomes. O Dr. Tournier
sustenta que isto demonstra que a Bíblia pensa nas pessoas em primeiro lugar,
não como partículas de uma massa, abstrações ou idéias, mas sim como pessoas.
“O nome próprio”, escreve o Dr. Tournier. “é o símbolo da pessoa. Se me esqueço
os nomes de meus pacientes, se me disser, ‘Ah! Aí está esse ulceroso ou esse
tuberculoso que vi outro dia’, estou-me preocupando mais por suas úlceras ou
seus pulmões que por eles como pessoas”. Insiste que um paciente sempre deve
ser uma pessoa, nunca um caso.
É pouco provável que os escribas e fariseus soubessem o nome dessa
mulher. Para eles, essa mulher não era mais que o caso de alguém que tinha
cometido adultério na forma mais desavergonhada e a quem podiam usar como
instrumento e ferramenta para cumprir os seus propósitos. No preciso momento em
que as pessoas se transformam em coisas, morre o espírito do cristianismo.
Deus faz uso de sua autoridade para amar os homens a fim de convertê-los
em pessoas boas; para Deus ninguém jamais se converte em uma coisa. Devemos
usar qualquer tipo de autoridade que tenhamos para compreender e ao menos
tentar curar, guiar e ajudar a pessoa que cometeu um engano. E não poderemos
fazer nada a menos que lembremos que toda mulher e todo homem é uma pessoa, não
uma coisa.
DESGRAÇA E PIEDADE
Estudo sobre João 8:1-11 (continuação)
Além disso, este incidente diz muito a respeito de Jesus e sua atitude
para com o pecador.
(1) Jesus sustentava como princípio fundamental que só o homem que está
livre de falta tem o direito de manifestar seu juízo sobre a falta de outros.
“Não julgueis”, disse Jesus, “para que não sejais julgados” (Mateus 7:1). Disse
que o homem que pretendia julgar a seu irmão era como um homem que tinha uma
trave no olho e tentava tirar uma palha do olho do outro (Mateus 7:3-5). Um dos
enganos mais comuns é que somos muitos os que exigimos atitudes em outros que
nós mesmos jamais poderíamos cumprir. Muitos de nós condenamos em outros faltas
que são mais que evidentes em nossas próprias vidas. Mais de um pai desafia e
castiga a seu filho por algo que ele mesmo faz uma e outra vez.
Mais de um membro da Igreja critica a outro por faltas das quais ele mesmo
é tão culpado como seu próximo. A qualidade que nos permite julgar não é o
conhecimento: isso é algo que todos temos; é a realização da bondade: nenhum de
nós podemos nos gabar de possuí-la. A própria realidade da situação humana
significa que Deus é o único que tem o direito de julgar, pela simples razão de
que nenhum homem é suficientemente bom para julgar a outro homem.
(2) Jesus sustentava como princípio dirigente que nosso primeiro sentimento
para com alguém que cometeu um engano deveria ser a misericórdia. Afirmou-se
que o dever do médico é "às vezes, curar; muito freqüentemente, aliviar e
sempre, consolar". Quando se leva uma pessoa que padece uma enfermidade a
um médico, ou cirurgião, o homem com experiência médica não contempla o doente
com asco, inclusive se sofrer de uma enfermidade que produz essa sensação. De fato,
guarda-se a repulsão física natural que em alguns casos é inevitável graças ao
grande desejo de ajudar e curar.
Quando nos deparamos com alguém que cometeu um engano, nosso primeiro
sentimento não deve ser "Eu me ocuparei de que sofra pelo que tem feito;
não terei nada que ver com alguém que pôde agir como o fez", mas sim,
"O que posso fazer para ajudar esta pessoa? Que posso fazer para
restituí-lo ao bom caminho? O que posso fazer para apagar as conseqüências
deste engano?" Em poucas palavras, sempre devemos oferecer a outros a
mesma piedade compassiva que gostaríamos que nos oferecessem se nos
encontrássemos em uma situação similar.
(3) É muito importante que compreendamos como Jesus tratou esta mulher.
É fácil usar esta passagem para extrair dele a lição inadequada e para dar a
impressão de que Jesus perdoava com facilidade e ligeireza, como se o pecado
não tivesse a menor importância. O que Jesus disse foi o seguinte: "Não
condenarei você neste momento; vá, e não volte a pecar." De fato, Jesus
não anulava o juízo nem dizia: "Não se preocupe, está bem." Para
expressá-lo em termos humanos, o que fez foi diferir a sentença. Disse,
"Não farei um juízo definitivo nem condenarei Jesus agora; vai, e
demonstra que você pode se comportar melhor. Você pecou, vá, e não volte a
pecar e eu a ajudarei todo o tempo. No fim do dia veremos como você
viveu." A atitude de Jesus para com o pecador implicava determinados aspectos.
(a) Implicava uma segunda oportunidade. É como se Jesus tivesse dito à
mulher: "Eu sei que você fez coisas muito más, mas a vida não acabou;
dou-lhe outra oportunidade, a de se redimir." Alguém escreveu estes
versos:
Como desejaria que
existisse um lugar maravilhoso,
Que seria o País para
Voltar a Começar,
Onde todos nossos
enganos e todas nossas tristezas
E toda nossa dor
egoísta
Pudessem ser
abandonadas como um saco velho na porta,
E não o voltássemos a
usar jamais.
Em Jesus encontramos o evangelho da segunda oportunidade. Jesus sempre
manifestava um interesse intenso, não só no que tinha sido uma pessoa, e sim no
que podia chegar a ser. Não dizia que o que tinham feito carecia de
importância; as leis quebrantadas e os corações destroçados sempre importam,
mas Jesus estava convencido de que todos os homens têm tanto um futuro como um
passado.
(b) Implicava a piedade. A diferença fundamental entre Jesus e os escribas
e fariseus era que estes queriam condenar; Jesus desejava perdoar. Se lermos as
entrelinhas fica resulta evidente que estes escribas e fariseus queriam
apedrejar esta mulher e que se alegrariam ao fazê-lo. Conheciam a emoção de
exercer o poder para condenar; Jesus conhecia a emoção de exercer seu poder
para perdoar. Jesus contemplava ao pecador com uma piedade que emanava de seu
amor; os escribas e fariseus contemplavam o pecador com desagrado que emanava
de sua auto-suficiência.
(c) Implicava um desafio. O desafio com o qual Jesus confrontou a esta
mulher foi o de uma vida livre de pecado. Não disse: "Está bem, não se
preocupe, continue fazendo o mesmo que tem feito até agora." Pelo contrário,
disse: "Está mal; saia e lute; mude sua vida de princípio a fim; vá, e não
volte a pecar.'' Não se trata de um perdão fácil. Trata-se de um desafio que
encaminhava o pecador a alturas de bondade com as quais jumas tinha sonhado.
Jesus enfrenta a vida má com o desafio da vida boa.
(d) Implicava a confiança na natureza humana. Quando nos pomos a pensar,
parece esmagador o fato de Jesus dizer a uma mulher descoberta em adultério, a
uma mulher de moralidade muito duvidosa: "Vai e não peque mais." O
que surpreende e alenta em Jesus é sua confiança nos homens e nas mulheres.
Quando se encontrava com alguém que tinha cometido um pecado, não dizia:
"Você é uma criatura desgraçada e sem esperança." O que dizia era o
seguinte: "Vá e não peque mais." Indubitavelmente cria que com sua
ajuda, o pecador se podia converter num santo. O método de Jesus não consistia
em queimar os homens com o reconhecimento de sua qualidade de pecadores miseráveis,
coisa que sabiam muito bem, e sim lhes inspirar o descobrimento não imaginado
de que eram santos em potencial.
(e) Implicava uma advertência. Aqui nos deparamos com uma advertência
que não se explicita mas que se percebe com clareza. Aqui nos deparamos com a
situação eterna do evangelho, a opção eterna. Jesus enfrentou a essa mulher com
uma opção: podia voltar para seus velhos hábitos ou podia inclinar-se para com
uma vida nova, em união com Jesus. O relato não está terminado, porque nenhuma
vida chegou a seu fim até que se confronta com Deus. (Devemos assinalar que
este relato da mulher descoberta em adultério implica uma série de complicadas
questões textuais. No final do livro se pode encontrar uma análise dessas questões.)
A LUZ QUE OS HOMENS NÃO RECONHECERAM
Estudo sobre João 8:12-20
O cenário desta discussão de Jesus com as autoridades judias é o tesouro
do templo. O tesouro do templo estava no Pátio das mulheres que era o segundo
pátio do templo. O primeiro era o Pátio dos gentios; o segundo era o Pátio das
mulheres. Chamava-se assim porque as mulheres não tinham autorização para
atravessá-lo a menos que fossem oferecer um sacrifício no altar que estava no
Pátio dos sacerdotes. Ao redor do Pátio das mulheres havia uma colunata ou
peristilo. Nessa colunata, contra a parede, havia treze arcas nos quais as
pessoas deixavam cair suas ofertas. Estas arcas eram chamadas As trombetas,
porque tinham a forma de trombetas, estreitos na boca e mais largos no fundo.
Cada uma das treze arcas tinha atribuídos valores da oferta. Nos dois
primeiros lançavam as ofertas de meio siclo que todo judeu devia pagar para a
manutenção do templo. No terceiro e no quarto se depositava o dinheiro para
adquirir as duas pombas que devia a mulher oferecer para sua purificação depois
do nascimento de um filho (Levítico 12:8). No quinto ficavam as contribuições
para resolver o pagamento da madeira necessária para manter aceso o fogo do
altar. No sexto se depositavam as contribuições para pagar o incenso empregado
nos cultos do templo. No sétimo se depositavam as ofertas para a manutenção dos
vasos de ouro que se empregavam nos cultos do templo. Às vezes um homem ou uma
família separava uma soma determinada para fazer uma oferta de gratidão ou por
alguma falta cometida. Nas outras seis trombetas o povo depositava qualquer
dinheiro extra que ficasse depois de ter comprado a oferta, ou qualquer outro dinheiro
que queriam oferecer.
Fica evidente que o tesouro do templo devia ser um lugar muito ocupado,
com um desfile constante de fiéis, porque sempre havia uma quantidade de judeus
devotos que queriam fazer suas ofertas a Deus. Não podia haver um lugar melhor
para reunir um público piedoso e para lhes repartir ensinos que o tesouro do
templo. Nesta passagem Jesus faz sua afirmação fundamental: "Eu sou a luz do
mundo." E é muito provável que o ambiente no qual Jesus pronunciou esta
frase a tenha feito particularmente eloqüente e impressionante. João relaciona
estes discursos e discussões com a festa dos tabernáculos (João 7:2). Já vimos
(João 7:37) de que maneira as cerimônias dessa festa fazem mais patéticas as
afirmações de Jesus a respeito de que Ele daria aos homens a água viva. Mas
havia outra cerimônia relacionada com esta festa. No entardecer do primeiro dia
da festa havia uma cerimônia chamada a Iluminação do Templo. Desenvolvia-se no
Pátio das mulheres. O pátio estava rodeado por profundas galerias, construídas para
dar localização ao público. No centro do pátio se preparavam quatro grandes
candelabros.
Quando chegava o anoitecer se acendiam os candelabros e, conforme se
contava, enviavam um resplendor tão patente por toda Jerusalém que todos os
pátios da cidade ficavam iluminados por seu brilho. E depois, durante toda a
noite, até que o cantar do galo na manhã seguinte, os homens mais destacados,
mais sábios e mais santos de todo o Israel dançavam perante o Senhor e entoavam
salmos de alegria e de louvor a Deus enquanto o povo os observava.
De maneira que durante a festa dos tabernáculos o resplendor das luzes
do templo iluminava a cidade e transpassava a escuridão de suas praças, pátios
e ruas. O que Jesus diz é o seguinte: "Viram que o resplendor das luzes do
templo atravessa a escuridão da noite. Eu sou a Luz do mundo e para o homem que
me siga haverá luz, não só durante uma noite de festa, mas também durante todo
o trajeto de sua vida. A luz do templo é brilhante, mas ao final se debilita e
desaparece. Eu sou para os homens a luz que permanece para sempre."
A LUZ QUE OS HOMENS NÃO RECONHECERAM
Estudo sobre João 8:12-20 (continuação)
Jesus disse: “quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá
a luz da vida.” A frase a luz da vida significa duas coisas. Em grego pode
querer dizer a luz que surge da fonte de vida ou a luz que dá vida aos homens.
Nesta passagem tem ambos os sentidos. Jesus é a própria luz de Deus que chegou
aos homens: e Jesus é a luz que dá vida aos homens. Assim como a flor não pode
florescer quando não recebe a luz do Sol, nossas vidas tampouco podem florescer
com a graça e a beleza
que deveriam fazê-lo até que não as penetra a luz da presença de Jesus Cristo.
Nesta passagem Jesus fala de segui-lo. Falamos com freqüência de seguir
a Jesus, freqüentemente insistimos aos homens a que sigam a Jesus. O que
queremos dizer quando falamos de seguir a Jesus? A palavra grega que significa
seguir é akolouthein, e quando a analisamos, seus sentidos se combinam para
lançar uma corrente de luz sobre o que significa seguir a Jesus e converter-se
em seu seguidor. Akolouthein tem cinco sentidos diferentes mas relacionados
entre si.
(1) É usado freqüentemente para referir-se a um soldado que segue a seu
capitão e líder. O soldado segue a seu capitão nas longas marchas pelas
estradas, na batalha, nas campanhas a terras estranhas, segue-o em qualquer
lugar que o leve. O cristão é o soldado cujo líder é Cristo.
(2) É usado com freqüência com relação ao escravo que acompanha a seu
amo. Em qualquer lugar que vá o amo o escravo está a seu lado para atendê-lo. O
escravo sempre está disposto a ir a serviço de seu amo e a cumprir as tarefas
que este o encomenda. O cristão é o escravo cuja alegria consiste em servir
sempre a Cristo.
(3) É usado freqüentemente com referência à aceitação da opinião, veredicto
ou juízo de um conselheiro sábio. Quando um homem tem uma dúvida, dirige-se ao
homem sábio e experiente, ao que tem conhecimento, ao perito, e, se for
prudente, aceita o juízo e a opinião que recebe. O cristão é o homem cujo
conselheiro e perito é Cristo. O cristão é aquele que dirige sua vida e sua
conduta segundo o conselho de Cristo.
(4) Costuma-se empregar a respeito da obediência às leis de uma cidade
ou de um Estado. Se um homem tiver que converter-se em um membro aceitável e
útil de qualquer sociedade ou em um cidadão de alguma comunidade, deve aceitar
as leis dessa sociedade ou comunidade e deve obedecê-las. O cristão é o cidadão
do Reino dos céus, e aceitou a lei do Reino e a lei de Cristo como lei que
regerá sua vida.
(5) Costuma-se empregar a respeito de alguém que segue a linha argumentativa
de um professor ou o tema principal de um discurso. O cristão é o homem que
compreendeu o significado do ensino de Cristo.
Não ouviu com uma incompreensão tola; não ouviu sem prestar maior atenção;
não ouviu de maneira tal a mensagem entra por um ouvido e sai pelo outro.
Escuta, leva a mensagem à sua mente e compreende, recebe as palavras em sua
memória e as recorda, esconde-as em seu coração e obedece.
Ser seguidor de Cristo significa entregar seu corpo, sua alma e seu espírito
à obediência do Mestre. E entrar nesse caminho significa avançar na luz. Quando
caminhamos sozinhos estamos condenados a tropeçar e andar tateando porque são
muitos os problemas da vida que estão além de nossa possibilidade de solução e,
se tentarmos arrumá-los por nossa conta fracassaremos sem remédio. Quando
partimos sozinhos estamos condenados a tomar o caminho equivocado porque não
temos um mapa da vida seguro. Necessitamos a sabedoria do céu para seguir o caminho
da Terra. O homem que tem um guia seguro e um mapa correto sem dúvida chegará
ao destino são e salvo. Jesus Cristo é esse guia; ele é o único que possui o
mapa da vida. Segui-lo significa transitar a salvo pela vida e depois entrar na
glória.
A LUZ QUE OS HOMENS NÃO RECONHECERAM
Estudo sobre João 8:12-20 (continuação)
Quando Jesus afirmou que era a luz do mundo, os escribas e fariseus
reagiram com hostilidade. Para eles essa afirmação devia parecer bem mais
surpreendente que para nós. Apareceria como uma afirmação, o que era correto,
por parte de Jesus a respeito de que era o Messias e, além disso, a respeito de
que cumpriria a tarefa que só Deus podia levar a cabo. No pensamento e no
idioma judeus se associava em forma muito especial a palavra luz com Deus. “O
SENHOR é a minha luz” (Salmo 27:1). “O SENHOR será a tua luz perpétua” (Isaías
60:19).
“Quando eu, guiado por sua luz, caminhava pelas trevas” (Jó 29:3). “se morar
nas trevas, o SENHOR será a minha luz” (Miquéias 7:8). Os rabinos sustentavam
que o nome do Messias é luz. Quando Jesus afirmou que era a luz do mundo estava
fazendo a maior afirmação que podia pronunciar.
O tema desta passagem é difícil, complicado e sintético, mas inclui três
linhas argumentativas.
(1) Os judeus insistiram, em primeiro lugar, que não se podia considerar
correta uma afirmação como a que Jesus fez porque o testemunho sobre o qual se
baseava era insuficiente. Segundo o ponto de vista deles, fundamentava-se
somente na palavra do próprio Jesus.
Agora, a Lei judia requeria que qualquer afirmação estivesse baseada sobre
o testemunho de duas testemunhas para considerá-la verdadeira. “Uma só
testemunha não se levantará contra alguém por qualquer iniqüidade ou por
qualquer pecado, seja qual for que cometer; pelo depoimento de duas ou três
testemunhas, se estabelecerá o fato” (Deuteronômio 19:15). "Por dito de
duas ou de três testemunhas morrerá aquele que tiver que morrer; não morrerá
pelo dito de uma só testemunha" (Deuteronômio 17:6). “Uma só testemunha
não deporá contra alguém para que morra” (Números 35:30). A acusação dos judeus
se baseava em que não se podia aceitar a afirmação de Jesus porque não era
sustentada por nenhuma testemunha fora dele próprio.
A resposta que Jesus dá é dupla. Em primeiro lugar, responde que seu
testemunho é suficiente. Era tão consciente de sua própria autoridade, de sua
estreita relação com Deus, que não necessitava nenhum outra testemunha. Não se
trata de orgulho ou confiança em si mesmo. Não é mais que a instância suprema
do que acontece todos os dias na vida cotidiana. Um grande cirurgião ou médico
confia em sua opinião; não necessita que ninguém o apóie, seu testemunho é sua própria
habilidade.
Um advogado importante ou um juiz de renome está seguro de sua própria
interpretação e aplicação da lei. Não quer dizer que está orgulhoso de seu
conhecimento; é consciente de que sabe.
Jesus estava tão seguro e era tão consciente de sua estreita relação com
Deus que não necessitava nenhuma outra autoridade para apoiar suas afirmações
fora dessa relação com Deus.
Mas, em segundo lugar, Jesus diz que em realidade tem uma segunda
testemunha, e essa testemunha é Deus. Como podemos afirmar que Deus dá
testemunho da autoridade suprema de Jesus?
(a) O testemunho de Deus está nas palavras de Jesus. Ninguém podia falar
com tal sabedoria a menos que Deus lhe tivesse dado o conhecimento.
(b) O testemunho de Deus está nas ações de Jesus. Ninguém podia fazer
essas coisas a menos que Deus estivesse com ele e agisse através dele.
(c) O testemunho de Deus está no efeito de Jesus sobre os homens. Cristo
produz mudanças nos homens que estão claramente muito além do poder de qualquer
ser humano. Nenhum poder humano pode fazer com que o homem mau se converta em
alguém bom; portanto, o poder de Jesus é divino. O próprio fato de que Jesus
pode fazer pelos homens o que os homens jamais podem fazer por si mesmos é a
prova definitiva de que seu poder não é meramente o poder de um homem. É o
poder de Deus.
(d) O testemunho de Deus está na reação dos homens para com Jesus. Em
qualquer lugar e quando quer que Jesus se apresentou aos homens em todo seu
esplendor, em qualquer lugar que se pregou a cruz em toda sua grandeza e em
todo seu esplendor, houve uma resposta imediata e assustadora no coração dos
homens. O que foi que despertou esta resposta? Essa resposta é o Espírito Santo
de Deus que opera e dá testemunho nos corações dos homens. É o Deus que está em
nossos corações que nos permite ver a Deus em Jesus.
Assim foi como Jesus enfrentou o argumento dos escribas e fariseus no sentido
de que não se podiam aceitar suas palavras porque o testemunho que o apoiava não
era adequado. Suas palavras estavam baseadas em um testemunho duplo: o
testemunho de sua própria consciência de autoridade e o testemunho de Deus.
(2) Em segundo lugar, Jesus, refere-se a seu direito de julgar. Sua vinda
ao mundo não propõe como primeira missão emitir um juízo; sua vinda ao mundo
propõe o Amor. Foi porque Deus amou tanto o mundo que Jesus veio. Entretanto,
ao mesmo tempo, a reação do homem para com Jesus é um juízo em si mesmo. Se não
ver nenhuma beleza em Jesus, mediante essa mesma reação se condenou. Aqui Jesus
estabelece um contraste entre dois tipos de juízo.
(a) Existe o juízo que se baseia sobre o conhecimento e os padrões humanos,
o juízo que nunca vê além da superfície. Esse era o juízo dos escribas e
fariseus. E, em última instância esse é o juízo humano porque os homens não
podem ver além da superfície das coisas.
(b) Existe o juízo que se baseia no conhecimento, não no conhecimento
superficial, e sim naquele que conhece todos os fatos, inclusive os mais
recônditos, e esse juízo só pode corresponder a Deus, porque Ele é o único que
tem esse conhecimento. Agora, Jesus afirma que qualquer juízo que Ele emite,
não é um juízo humano; é o juízo de Deus; porque Ele é em tal medida um com
Deus. Ali se encontra tanto nosso consolo como nossa advertência. Jesus é o
único que conhece todos os fatos. Isso o faz misericordioso como ninguém pode
sê-lo jamais; mas ao mesmo tempo lhe permite ver pecados que estão escondidos
aos olhos dos homens. O juízo de Jesus é perfeito porque está baseado no
conhecimento que pertence a Deus.
(3) Por último, Jesus disse com toda franqueza aos escribas e fariseus
que eles não tinham um conhecimento real de Deus. O fato de que não reconheciam
quem e o que era Jesus demonstrava que em realidade não conheciam a Deus. A
tragédia era que toda a história de Israel estava criada para que os judeus
reconhecessem o Filho de Deus quando este chegasse: toda sua História apontava
a essa vinda. Mas se comprometeram tanto com suas próprias idéias, estavam tão
evoltos em seu próprio caminho, tão seguros de sua idéia do que era a religião
que se haviam feito cegos para com Deus, a tragédia dos judeus era que criam
que sabiam mais que Deus.
A INCOMPREENSÃO FATAL
Estudo sobre João 8:21-30
Esta é uma das passagens controversas tão característicos do Quarto Evangelho
que são tão difíceis de explicar e de entender. Nesta passagem há várias linhas
argumentativas cruzadas. Jesus começa dizendo a seus inimigos que vai embora; e
que, depois que for, eles se darão conta do que perderam, eles o buscarão e não
o encontrarão, e descobrirão seu engano quando já for muito tarde.
Esta é a verdadeira nota profética.
Recorda-nos três coisas.
(1) Há certas oportunidades que vêm uma vez e não voltam a repetir nunca.
Todos os homens recebem a possibilidade de decidir-se por Cristo e aceitá-lo
como Salvador e Senhor. Mas essa é uma oportunidade que se pode rechaçar e
perder.
(2) Neste argumento de Jesus está implícito que a verdade e a vida são
limitadas. Ninguém tem todo o tempo do mundo; ninguém tem uma vida ilimitada:
nossa duração e nossa vida têm, necessariamente, um limite. Devemos tomar essa
decisão durante o tempo que nos foi adjudicado. O tempo que temos para nos
decidir por Jesus é limitado, e ninguém sabe qual é seu limite. Portanto, temos
todas as razões possíveis para tomar a decisão já mesmo.
(3) Justamente porque temos uma oportunidade na vida também existe o
juízo. A oportunidade perdida implica o juízo. Quanto maior era essa
oportunidade, quanto mais freqüentemente vinha, quanto mais clara e evidente
era, maior era o juízo se a rechaçava e a deixava passar. Esta passagem nos
enfrenta com a glória de nossa oportunidade, e a limitação do tempo que temos
para aceitá-la.
Quando Jesus falou de sua partida, referia-se a sua volta a seu Pai e sua
glória. Isso era exatamente o que não podiam compreender seus inimigos, porque
mediante sua constante desobediência e sua negativa a aceitá-lo, fecharam-se a
si mesmos da presença de Deus. Jesus disse que não podiam segui-lo ao lugar
aonde ia, e eles sugeriram que possivelmente se ia suicidar. O que acontece é
que, segundo o pensamento judeu, o inferno estava reservado aos suicidas, a
aqueles que tiravam suas próprias vidas. De maneira que, com uma espécie de blasfêmia
lúgubre e terrível, o que diziam estes judeus a respeito de Jesus era o
seguinte: "Possivelmente pensa tirar a vida, possivelmente se dirige para
as profundezas do inferno; é muito certo que não podemos segui-lo até ali e não
o faremos."
Jesus disse que se persistiam em rechaçá-lo, morreriam em seus pecados.
Trata-se de uma frase profética (ver Ezequiel 3:18; 18:18). Isto implica duas
coisas.
(1) A palavra com que se designa o pecado é hamartia. Originariamente
esta palavra estava relacionada com a caça e seu significado literal é errar o
alvo. O homem que se nega a aceitar a Jesus como Senhor e Salvador errou o alvo
da vida. Morre com a vida frustrada, inacabada, incompleta, sem realizar;
portanto, morre havendose inabilitado para entrar na vida superior com Deus.
(2) A essência do pecado é que separa o homem de Deus. Quando, no antigo
relato, Adão cometeu o primeiro pecado, seu primeiro instinto foi esconder-se
de Deus (Gênesis 3:8-10). O homem que morre em pecado morre em estado de
inimizade e terror de Deus. O homem que aceita a Cristo já caminha com Deus, e
a morte não faz mais que lhe abrir as portas para caminhar em forma mais
íntima. Rechaçar a Cristo significa ser um estranho para Deus; aceitar a Cristo
é ser um amigo de Deus; e nessa amizade fica banido para sempre o terror à
morte.
A INCOMPREENSÃO FATAL
Estudo sobre João 8:21-30 (continuação)
Jesus enumera uma série de contrastes. Seus inimigos pertencem à Terra;
ele pertence ao céu. Eles pertencem ao mundo, Ele não é do mundo.
João fala com freqüência do mundo; a palavra grega com que se designa o
mundo é kosmos. Emprega a palavra em forma muito pessoal.
(1) O kosmos, o mundo, é o contrário do céu. Jesus veio do céu ao mundo
(João 1:9). Deus o enviou ao mundo (João 3:17). Ele não é do mundo, seu
inimigos são do mundo (João 8:23). O kosmos é a vida cambiante, passageira,
transitiva que vivemos; o kosmos é todo o humano por oposição ao divino.
(2) E entretanto, o kosmos, o mundo, não está separado de Deus. Primeiro
e principal, o mundo é criação de Deus (João 1:10). O mundo de Deus foi criado
por sua palavra. Apesar da diferença entre o mundo e o céu, embora a gente é
divino e o outro humano, entretanto não há entre eles um abismo infranqueável.
(3) E o mais importante, é que o kosmos, o mundo, é o objeto do amor de
Deus. Deus amou o mundo de tal maneira que enviou o seu Filho (João 3:16). Por
mais diferente que seja o mundo de tudo o que é divino, Deus jamais o
abandonou. É o objeto de seu amor e o receptor de seu dom supremo.
(4) Mas ao mesmo tempo há algo que anda mal no kosmos. Há uma cegueira
no mundo; quando o criador do mundo veio a ele, este não o reconheceu (João
1:10). O mundo não pode receber o Espírito da Verdade (João 14:17). O mundo não
conhece a Deus (João 17:25). No mundo existe uma cegueira terrível e trágica
que não reconhece a Deus, nem a sua verdade nem a seu Filho. No kosmos se
manifesta uma hostilidade para com Deus. O mundo é hostil a Deus e a seus
filhos. O mundo odeia a Cristo e a seus seguidores (João 15:18-19). Os
seguidores de Cristo só podem encontrar problemas e tribulações no mundo (João 16:33).
(5) Aqui nos encontramos com uma estranha seqüência de acontecimentos. O
mundo está separado de Deus; e entretanto, não existe entre Deus e o mundo
nenhum abismo infranqueável. Deus criou o mundo, Deus ama o mundo, Deus enviou
o seu Filho ao mundo. E entretanto, encontramos esta cegueira e esta
hostilidade para com Deus.
Só se pode extrair uma conclusão. G. K. Chesterton disse em uma ocasião
que há uma só coisa indubitável sobre o homem: que não é aquilo que estava
destinado a ser. Há uma só coisa inegável sobre o kosmos, do mundo: o kosmos
não é aquilo para o qual foi criado. Algo mau lhe aconteceu. O que? O pecado.
Foi o pecado o que separou o mundo de Deus. É o pecado o que faz que o mundo
seja cego com respeito a Deus. O pecado é quem se manifesta hostil para com
Deus.
Agora, a este mundo que tomou um caminho equivocado chega Cristo; e
chega com o remédio. Traz o perdão para os pecados; traz a purificação do
pecado, traz o poder e a graça para que o homem viva como deve fazê-lo e para
converter o mundo no que deve ser. Mas o homem pode rechaçar um remédio. Um
médico pode oferecer a seu doente um remédio que o curará, pode lhe dizer que
um tratamento ou uma operação lhe devolverá a saúde e as forças. Até pode dizer
que se não aceitar esse tratamento, só lhe espera a morte. Isso é exatamente o que
diz Jesus. "Se não crêem que sou quem sou, morrerão em seus pecados."
Se os homens não aceitarem o remédio que Jesus traz, eles morrem.
Há algo que anda mal no mundo. Qualquer o pode comprovar. O remédio
consiste em reconhecer a Jesus Cristo como Filho de Deus, reconhecer que a
única coisa que pode salvar o mundo é obedecer sua sabedoria perfeita, e que a
única coisa que pode curar a alma individual é aceitá-lo como Salvador e Senhor.
Somos perfeitamente conscientes do mal que espreita e arruína ao mundo;
o remédio está baixo nossos olhos. Nós carregaremos com a responsabilidade se
nos negarmos a aceitá-lo.
A INCOMPREENSÃO FATAL
Estudo sobre João 8:21-30 (continuação)
Não há nenhum versículo mais difícil de traduzir no Novo Testamento que
João 8:25. Ninguém pode estar completamente seguro do significado das palavras
gregas. Poderia significar: “Isso mesmo que já desde o princípio vos disse”,
que é o sentido que escolhe a versão Almeida Corrigida (1995). Outras traduções
que se sugeriram são: "Em primeiro lugar, em essência, sou o que lhes
estou dizendo." "Declarolhes que eu sou o princípio." “Que é que
desde o princípio vos tenho dito?” (RA, 1993). Nós sugerimos que pode
significar o seguinte: "Tudo o que lhes estou dizendo não é mais que um
começo." Se tomarmos nesse sentido, a passagem diz a seguir que os homens
verão o verdadeiro significado de Cristo de três formas.
(1) Vê-lo-ão na cruz. Vemos o que é Jesus em realidade quando é elevado
na cruz. Aí é onde vemos o amor que não deixa os homens sozinhos e que os ama
até o fim.
(2) Vê-lo-ão no Juízo. Ainda tem que fazer muitos juízos. No momento,
pode aparecer como o carpinteiro de Nazaré que está fora da Lei; mas chegará o
dia em que o verão como Juiz e saberão o que é.
(3) Quando isso acontecer verão nele a personificação da vontade de
Deus. "Sempre faço as coisas que lhe agradam", disse Jesus. Os outros
homens, por melhores que sejam, não obedecem continuamente a Deus. A obediência
de Jesus é contínua, perfeita e completa. Deve chegar o dia em que os homens
vejam e reconheçam que em Jesus está corporificada a própria mente de Deus.
O DISCÍPULO AUTÊNTICO
Estudo sobre João 8:31-32
Há poucas passagens do Novo Testamento que descrevam em forma tão
completa as características do discípulo como estes dois versículos.
(1) Para ser um discípulo, em primeiro lugar deve-se crer. A gente começa
a ser um discípulo quando aceita como verdadeiro o que Jesus diz. Quando o
homem aceita tudo o que Jesus diz sobre o amor de Deus, tudo o que afirma sobre
o terror do pecado, quando aceita tudo o que diz sobre o verdadeiro significado
da vida, nesse momento o homem começa a ser um discípulo de Jesus.
(2) Ser um discípulo significa permanecer constantemente na palavra de
Jesus. O que significa permanecer na palavra de Jesus?
Implica quatro coisas.
(a) Ouvir em forma constante a palavra de Jesus. Conta-se que John Brown
de Haddington costumava deter-se de vez em quando enquanto pregava como se
ouvisse uma voz. O cristão é o homem que ouve a voz de Jesus durante toda sua
vida. É o homem que não toma nenhuma decisão sem ouvir antes o que Jesus diz a
respeito.
(b) Implica aprender constantemente de Jesus, Em seu sentido literal, o
discípulo (mathetes) é aquele que aprende, porque isso é o que a palavra grega
significa. O cristão deve aprender durante toda sua vida mais e mais a respeito
de Jesus. A mente que se fecha põe fim ao discípulo.
(c) Implica penetrar constantemente na verdade com que estão carregadas
as palavras de Jesus. Ninguém pode ouvir as palavras de Jesus de uma vez para
sempre, ninguém as pode ler uma só vez, e dizer que entende todo seu sentido. A
diferença entre um grande livro e um livro frívolo radica justamente em que ao
segundo lemos uma vez e nunca voltamos a sentir desejos de relê-lo; enquanto
que o livro transcendente o lemos várias vezes e voltamos a abri-lo de vez em quando.
Permanecer na palavra de Jesus
significa estudar e pensar continuamente no que disse e no que nos continua dizendo, até que cada vez
fazemos mais nosso o significado de suas palavras.
(d) Implica obedecer em forma constante a palavra de Jesus. Não estudamos
a palavra de Jesus para obter uma satisfação acadêmica ou uma estima
intelectual, mas para descobrir o que Deus quer de nós. O discípulo é aquele
que aprende para poder agir. A verdade que trouxe Jesus aponta rumo à ação.
(3) Do ser discípulo surge o conhecimento da verdade. Aprender de Jesus
é aprender a verdade. "Conhecereis a verdade", disse Jesus. E qual é
a verdade que conheceremos? Essa pergunta tem muitas respostas possíveis, mas a
forma mais sintética de expressá-lo quer dizer que a verdade que nos traz Jesus
nos mostra os verdadeiros valores da vida. Há uma pergunta fundamental a que
todo homem deve responder já seja em forma consciente ou inconsciente: "A
que dedicarei minha vida?" "Vou dedicá-la a uma carreira? Vou
dedicá-la a acumular posses materiais? Vou dedicá-la ao prazer? Vou dedicá-la à
obediência e ao serviço a Deus?" A verdade que nos traz Jesus permite
estabelecer corretamente nossa escala de valores. É em sua verdade onde vemos
quais são as coisas que têm importância e quais carecem dela.
(4) O ser discípulo proporciona a liberdade. “A verdade vos libertará.”
"No serviço a Deus está a liberdade perfeita." O fato de ser discípulos
nos outorga quatro liberdades.
(a) Liberta-nos do temor. O homem que é discípulo jamais volta a caminhar
sozinho. Caminha para sempre em companhia de Jesus, e, com Ele, o temor
desaparece.
(b) Liberta-nos de nosso eu. Muitos homens reconhecem que seu maior
obstáculo e seu inimigo mais acérrimo é seu próprio eu. E são muitos os que
exclamam se desesperados: "Não posso trocar. tratei, mas é
impossível." O poder e a presença de Jesus podem recriar ao homem até que
se converte em alguém novo.
(c) Liberta-nos de outros. A vida de muita gente está dominada pelo que
podem pensar e dizer outros. H. G. Wells disse em uma oportunidade que a voz de
nosso próximo soa com maior vigor em nossos ouvidos que a de Deus. O discípulo
é aquele homem que já não se preocupa com o que os outros dirão porque só pensa
no que diz Deus.
(d) Liberta-nos do pecado. São muitos os homens que chegaram ao ponto em
que não pecam porque querem fazê-lo mas sim porque não podem evitá-lo. Seus
pecados, seus hábitos, suas debilidades, sua irritabilidade chegaram a
dominá-los de tal forma que já não podem livrar-se deles. O ser discípulos
rompe as cadeias que atam a nossos pecados e nos permitem ser a pessoa que
deveríamos ser.
Que surja em mim um homem
Para deixar de ser quem sou.
Essa é a oração cuja resposta receberá o discípulo de Cristo.
LIBERDADE E ESCRAVIDÃO
Estudo sobre João 8:33-36
Quando Jesus falava de liberdade os judeus se sentiam irritados.
Asseguravam que jamais tinham sido escravos de ninguém. Sem a menor duvida,
em certo sentido isto não era verdade. Tinham sido cativos durante o exílio em
Babilônia, e nesse momento estavam sujeitos à autoridade romana. Mas os judeus
davam um valor imenso à liberdade que, segundo eles, era um direito que todo
judeu tinha pelo simples fato de pertencer a esse povo.
A Lei estabelecia que nenhum judeu, por pobre que fosse, devia denegrir-se
até o ponto de converter-se em escravo. “Também se teu irmão empobrecer,
estando ele contigo, e vender-se a ti, não o farás servir como escravo. ...
Porque são meus servos, que tirei da terra do Egito; não serão vendidos como
escravos” (Levítico 25:39-42). A cada momento surgiam rebeliões e insurreições
entre os judeus porque aparecia algum líder fogoso que insistia que os judeus
não podiam obedecer a nenhum governante da Terra, porque seu único Rei e Senhor
era Deus.
Josefo, ao falar dos seguidores de Judas da Galiléia, que organizou uma
famosa rebelião contra os romanos, escreve: "Sentem um apego inviolável
com relação à liberdade e dizem que Deus deve ser seu único Líder e
Senhor" (Josefo, Antiguidades dos judeus, 18:1, 6). Quando os judeus
afirmavam que não tinham sido escravos de ninguém expressavam algo que era um
artigo fundamental de seu credo. E embora era certo que houve épocas durante as
quais tinham estado sujeitos a outras nações, e que nesse momento estavam
debaixo do jugo dos romanos, nem por isso deixava de ser verdade que mantinham
uma independência de espírito que significava que podiam ser escravos no corpo
mas jamais no espírito.
Cirilo de Jerusalém escreveu sobre José: "Venderam José para ser escravo,
entretanto era livre, radiante na nobreza de sua alma." O mero fato de
sugerir a um judeu que podia ser considerado escravo era um insulto feroz.
Mas Jesus se referia a outra escravidão. “Todo o que comete pecado é
escravo do pecado”, disse. Todo o que pratica o pecado é um escravo. Aqui Jesus
reiterava um princípio que os sábios judeus tinham afirmado uma e outra vez. Os
estóicos diziam "Só o sábio é livre; o néscio é um escravo." Sócrates
tinha perguntado: "Como podem dizer que um homem é livre quando os
prazeres o dominam?" Mais tarde, Paulo agradeceria a Deus pelo fato de o
cristão estar livre da escravidão do pecado (Romanos 6:17-20).
Aqui encontramos algo muito interessante e sugestivo. Às vezes, quando
se observa um homem por fazer algo mau, ou quando lhe faz uma advertência a
respeito, diz: "Farei o que queira. Sem dúvida posso fazer o que ocorre
com minha própria vida." Mas o assunto é que o homem que peca não faz o
que quer; faz o que o pecado quer. Um homem pode permitir que um hábito o
domine de tal maneira que não possa desfazer-se dele. Pode deixar que um prazer
o domine até o ponto de não poder viver sem ele. Pode permitir que suas paixões
o dominem de tal forma que não possa desprender-se delas. Pode chegar a um
estado tal que, como disse Sêneca, odeia e ama seus pecados ao mesmo tempo.
De maneira que, em vez de fazer o que quer, o pecador perdeu toda possibilidade
de agir de acordo com sua própria vontade. É um escravo dos hábitos, das
paixões, dos maus prazeres que o dominaram. O que Jesus destaca é justamente
que o homem que peca nunca pode considerar-se livre. De fato, é um escravo do
pecado.
E logo Jesus pronuncia uma ameaça velada, mas que os judeus que o ouviam
entenderiam muito bem. A palavra escravo lhe recorda algo. Em qualquer casa
havia uma diferença entre o escravo e o filho. O filho era alguém que vivia
sempre na casa, nada o podia tirar dela. Mas o escravo podia ser mandado embora
a qualquer momento. O amo podia prescindir dele a qualquer instante e podia lhe
dizer que fosse embora.
Nenhum homem pode desnaturalizar a um filho; um filho sempre é um filho.
Mas o escravo pode ser tirado a qualquer momento.
O que Jesus diz aos judeus é o seguinte: "Vocês crêem que são os filhos
na casa de Deus; crêem que nada lhes pode separar da presença de Deus; tenham
cuidado: por meio de sua conduta vocês se estão tornando escravos; e o escravo
pode ser expulso da presença de seu amo a qualquer momento." Eis aí uma
ameaça. É algo terrível negociar com a misericórdia e o favor de Deus; e isso
era o que os judeus faziam. Aqui há uma ameaça que não corresponde só aos
judeus.
O FILHO AUTÊNTICO
Estudo sobre João 8:37-41a
Nesta passagem Jesus atira um golpe mortal a uma afirmação que era fundamental
para os judeus. Para o judeu, Abraão era a figura mais importante de toda a
história religiosa; e o judeu se considerava a salvo e protegido no favor de
Deus simplesmente porque descendia de Abraão.
O salmista podia dirigir-se ao povo como, “Vós, descendência de Abraão,
seu servo, vós, filhos de Jacó, seus escolhidos” (Salmo 105:6). Isaías disse ao
povo: “Mas tu, ó Israel, servo meu, tu, Jacó, a quem elegi, descendente de
Abraão, meu amigo” (Isaías 41:8). A admiração que os judeus dispensavam a
Abraão era perfeitamente legítima porque Abraão é um gigante na história
religiosa da humanidade, mas as deduções que extraíam da grandeza de Abraão
eram bastante equivocadas.
Os judeus consideravam que Abraão tinha obtido tanto mérito por seu
bondade que esse mérito era suficiente, não só para si mesmo, mas também para
toda seu descendência. Consideravam que a bondade de Abraão foi tão imensa que
construiu uma espécie de tesouro de mérito do qual podiam dispor todos os seus
descendentes. O crédito de Abraão com Deus era tão imponente que todos os seus
descendentes podiam continuar servindo-se dele sem temor que se esgotasse. Justino
Mártir manteve uma discussão com o judeu Trifo a respeito da religião judia e
chegaram à seguinte conclusão: "O reino eterno será entregue àqueles que
são descendentes de Abraão pela carne, embora sejam pecadores, não creiam e
desobedeçam a Deus" (Justino Mártir, Diálogo com Trifo, 140). No mais
estrito sentido literal, o judeu cria que estava a salvo porque descendia de
Abraão.
É impossível viver às custas de certas coisas, embora sejam muitos os
que tentam fazê-lo. A atitude dos judeus não carece de paralelos na vida atual.
(a) Ainda existem pessoas que tentam viver de uma ascendência de um
nome. Em algum momento da história de seu família alguém de seus membros
desempenhou um papel preponderante na Igreja ou no Estado, e a partir de então
outros membros da família exigem um lugar de privilégio. Um grande nome jamais
deveria ser desculpa para uma cômoda inação; pelo contrário, sempre deveria ser
uma fonte de inspiração e um impulso para uma nova grandeza e um novo esforço.
(b) Há aqueles que tentam viver de uma história e de uma tradição. Há
muitas Igrejas que têm um sentimento inadequado a respeito de sua própria
importância porque alguma vez tiveram um ministério famoso. Há mais de uma
congregação que vive do capital espiritual do passado; mas se sempre se fazem
extrações desse capital e nunca adicionam nada, infalivelmente chegará o dia em
que dito capital se esgotará.
Nenhum homem, nenhuma Igreja, nenhum país podem viver dos lucros do
passado. Isso era o que os judeus tentavam fazer. Jesus foi muito claro a
respeito. Declarou que o verdadeiro descendente de Abraão era o homem que agia
como Abraão agiu. Isso era exatamente o mesmo que João Batista expressou. Jesus
disse ao povo com toda clareza que se aproximava o dia do juízo e que não
adiantaria nada dizer que descendiam de Abraão porque Deus podia fazer surgir descendentes
de Abraão das próprias pedras se Ele quisesse (Mateus 3:9; Lucas 3:8). Este era
um argumento que Paulo empregaria até o cansar. O que convertia o homem em
descendente de Abraão não era a carne e o sangue, mas a qualidade moral e a
lealdade espiritual.
Neste caso em particular, Jesus o relaciona com uma coisa. Estão buscando
uma meio de matá-lo, isso é exatamente o oposto ao que fez Abraão. Quando
chegou um mensageiro de Deus à casa de Abraão, este lhe deu as boas-vindas com
toda alegria e respeito (Gênesis 18:1-8). Abraão deu as boas-vindas ao
mensageiro de Deus, os judeus da época de Jesus tentavam matar o mensageiro.
Como se animavam a proclamar-se descendentes de Abraão quando seu conduta era
tão diferente? Aqui está implícita uma grande afirmação da parte de Jesus. Pelo
simples fato de lembrar o relato de Gênesis 18, Jesus está dizendo que ele
também é o mensageiro de Deus. Logo afirma de maneira explícita: “Eu falo das
coisas que vi junto de meu Pai.” O que é fundamental a respeito de Jesus é que
não trouxe para os homens suas próprias opiniões, mas uma mensagem de Deus.
Jesus não era simplesmente um homem que dizia a outros o que pensava a respeito
das coisas. Era o Filho de Deus que dizia aos homens o que Deus pensava a
respeito delas.
No melhor dos casos, os homens podem contar a outros como eles vêem a
verdade: Jesus contou aos homens a verdade tal como Deus a vê.
Logo, ao final desta passagem, temos uma afirmação surpreendente.
"Vocês", disse Jesus, "fazem as obras de seu pai".
Logo acaba de dizer que Abraão não é seu pai. Quem é seu pai, então? Por um
momento se retém o impacto.
Chega no versículo 44: seu pai o diabo. Os mesmos homens que se orgulharam
ao afirmar que eram os filhos de Abraão, vêem-se diante da devastadora acusação
de que são os filhos do demônio. Suas obras tinham demonstrado de quem eram
filhos em realidade, porque o homem só pode demonstrar sua lealdade para com
Deus mediante sua conduta.
OS FILHOS DO DIABO
Estudo sobre João 8:41b-45
Jesus logo disse aos judeus que mediante seu vida, seu conduta e seu
reação para com Ele tinham demonstrado com toda clareza que não eram filhos
autênticos de Abraão. A resposta dos judeus foi afirmar algo ainda mais
fundamental. Disseram que seu pai era Deus e que eles eram filhos de Deus.
Ao longo de todo o Antigo Testamento se repete a afirmação de que Deus
era, de maneira especial, o Pai de seu povo, Israel. Deus ordenou a Moisés que
dissesse a Faraó: “Assim diz o SENHOR: Israel é meu filho, meu primogênito”
(Êxodo 4:22). Quando Moisés censurou o povo por sua desobediência, seu clamor
foi o seguinte: “É assim que recompensas ao SENHOR, povo louco e ignorante? Não
é ele teu pai, que te adquiriu, te fez e te estabeleceu?” (Deut. 32:6). Isaías
se refere a sua confiança em Deus: “Mas tu és nosso Pai, ainda que Abraão não nos
conhece, e Israel não nos reconhece; tu, ó SENHOR, és nosso Pai; nosso
Redentor” (Isaías 63:16). “Mas agora, ó SENHOR, tu és nosso Pai” (Isaías 64:8).
Perguntou Malaquias: “Não temos nós todos o mesmo Pai? Não nos criou o mesmo
Deus?” (Malaquias 2:10). De maneira que os judeus afirmavam que seu Pai era
Deus.
"Nós — disseram com orgulho — não somos nascidos de fornicação."
Pode haver dois elementos nesta frase. Uma das descrições mais formosas do povo
de Israel no Antigo Testamento é a que se refere a ele como a Prometida de
Deus. Por isso se diz que quando Israel abandonou a Deus e foi atrás de deuses
estranhos, fornicou com eles. Quando a nação incorreu nessa conduta infiel, chamou-se
o povo de apóstata "filhos de prostituição" (Oséias 2:4). De maneira
que quando os judeus disseram a Jesus que não eram filhos de uma união
adúltera, queriam dizer que não pertenciam a um povo de idólatras; sempre
tinham adorado ao Deus verdadeiro. Estavam afirmando que jamais se afastaram de
Deus — afirmação tremenda que só se podiam animar a pronunciar aqueles que
estavam muito seguros de seu própria bondade. Mas possivelmente quando os
judeus pronunciaram essas palavras, referiam-se a algo muito mais pessoal. Não
há a menor dúvida de que nos últimos tempos, os judeus fizeram correr o rumor mais
malicioso e perverso contra Jesus. Os cristãos proclamaram, desde os primeiros
tempos, o nascimento milagroso de Jesus. Os judeus o torceram e disseram que
Maria foi infiel a José; que seu amante ilícito foi um soldado romano, Pantera,
e que Jesus era o fruto dessa união adúltera. É pelo menos possível que os
judeus atirassem na cara de Jesus um insulto sobre seu nascimento, como
querendo dizer: "Que direito tem você de falar com gente como nós da
maneira como o faz?"
A resposta de Jesus à afirmação dos judeus é que se trata de uma falsidade.
A prova é que se Deus tivesse sido realmente seu Pai, teriam amado e recebido a
Jesus. Aqui voltamos a encontrar a idéia central do Quarto Evangelho. A prova
do homem é sua reação com respeito a Jesus. Se um homem vir em Jesus o absolutamente
amoroso, tem algo nele que lhe permite chegar a ser um verdadeiro filho de
Deus. Aquele que não vê nada amoroso em Jesus e cujo único desejo é eliminá-lo
da vida, não é um filho de Deus. Jesus é a pedra de toque de Deus mediante a
qual todos os homens são julgados.
E segue a acusação de Jesus. Pergunta, "por que os judeus não podem
entender e reconhecer a verdade do que diz?" A resposta é tremenda: não é
que sejam intelectualmente incapazes, mas sim são espiritualmente surdos. Não é
que não sejam capazes de ouvir, que não sejam capazes de entender; é que se
negam a ouvir e se negam a entender. Um homem pode fazer ouvidos surdos a
qualquer advertência; pode negar-se a ouvir a voz da consciência de maneira
deliberada. Se o faz durante bastante tempo, torna-se uma pessoa
espiritualmente surda.
Em última instância, cada um ouve o que quer ouvir. E se durante um
período bastante longo afina seus ouvidos para que escutem seus próprios anelos
e desejos e as vozes equivocadas, ao final já não poderá sintonizar a voz de
Deus. Isso era o que tinham feito os judeus. Logo vem a acusação aterradora. O
verdadeiro pai dos judeus é o diabo. Jesus escolhe duas características do
demônio.
(1) O próprio do demônio é ser um homicida. Jesus pode estar pensando em
duas coisas. Pode ter presente a velha história de Caim e Abel. Caim foi o
primeiro homicida e recebeu sua inspiração do diabo. Mas possivelmente Jesus se
refere a algo ainda mais sério. Foi o diabo quem tentou pela primeira vez o
homem, no antigo relato do Gênesis. O pecado entrou em mundo pelo demônio, e
pelo pecado chegou a morte (Romanos 5:12). Se não tivesse havido tentação, não
existiria o pecado, e se não tivesse havido pecado, não existiria a morte. De
maneira que, em certo sentido, o diabo é o homicida de toda a raça humana. Além
disso, além dos relatos antigos, subsiste o fato de que Cristo conduz à vida e
o diabo à morte. O diabo mata a bondade, a castidade, a honra, a honestidade, a
beleza, tudo o que converte a vida em algo
bonito. O demônio destrói a paz do espírito, a felicidade e até o amor.
A essência do mal é a destruição, a essência de Cristo é trazer a vida. Nesse
preciso momento, os judeus faziam acertos e planos para matar a Cristo.
Tentavam converter-se em homicidas bem-sucedidos. Tomavam o caminho do diabo.
(2) O que caracteriza o diabo é o amor à mentira. A palavra falsa, o pensamento
falso, a distorção da verdade, a mentira, pertencem ao demônio. Toda mentira é
concebida e inspirada pelo demônio e faz seu obra. A falsidade sempre odeia a
verdade e tenta destruí-la. É por isso que os judeus odiavam a Jesus. Quando se
defrontaram com Jesus, o caminho falso se encontrou com o verdadeiro e,
inevitavelmente o falso tentou aniquilar o verdadeiro. Jesus acusou os judeus
de ser filhos do diabo porque seus pensamentos se inclinavam a destruir o bom e
manter o falso. Todo homem que busca destruir a verdade, faz a obra do diabo.
A GRANDE ACUSAÇÃO E A FÉ BRILHANTE
Estudo sobre João 8:46-50
Esta é uma das passagens nas quais devemos buscar ver como se desenvolve
a cena sob nossos olhos. Aqui há uma tragédia e não está só nas palavras mas
também nos silêncios. Jesus começa com uma afirmação tremenda. "Há alguém
entre vós que me possa acusar de algum pecado?" pergunta. "Há alguém
que possa apontar alguma ofensa em minha vida?" Então deve ter-se
produzido um silêncio durante o qual Jesus passeou o olhar pela multidão a
espera de que alguém aceitasse o desafio extraordinário que tinha lançado.
Seguiu-se silêncio e ninguém pôde responder ao desafio. Por mais que falassem e
escrutinassem não havia ninguém que pudesse formular alguma acusação contra
esta pessoa surpreendente que era Jesus. Logo, uma vez que lhes tinha dado uma oportunidade,
Jesus voltou a falar. Disse: "Reconhecem que não podem encontrar nenhuma
acusação contra mim. Então por que não aceitam o que lhes digo?" Outro
silêncio molesto. E Jesus responde sua própria pergunta. "Não aceitam
minhas palavras", disse, "porque não são de Deus e em seus corações
não há nada do Espírito de Deus."
O que quis Jesus dizer ao formular esta acusação contra os judeus?
Devemos pensar da seguinte maneira: não pode entrar nenhuma experiência
na mente ou o coração de ninguém a menos que haja neles algo para responder a
essa experiência. E pode acontecer que um homem em particular careça desse
elemento essencial que lhe permitiria viver a experiência. Um homem que não tem
ouvido musical jamais poderá experimentar o deleite da música. Um homem que é
cego às cores não pode apreciar um quadro. O homem que carece de todo sentido
do ritmo e os compassos não pode apreciar jamais o balé ou a dança.
Agora, os judeus tinham uma forma muito bonita de pensar no Espírito de
Deus. Criam que o Espírito de Deus tinha duas funções. Revelava a verdade de
Deus aos homens e os fazia capazes de reconhecer e compreender essa verdade
quando se deparavam com ela. Isso quer dizer, com toda clareza, que a menos que
o Espírito de Deus esteja no coração do homem, este não pode reconhecer a
verdade de Deus quando a tem diante de si. E também significa que se o homem fechar
a porta de seu coração contra o Espírito de Deus, se seguir seus próprios
desejos, então, apesar de que a verdade apareça com toda
clareza diante de seus olhos é incapaz de vê-la, de reconhecê-la, de compreendê-la
e de fazê-la sua.
O que Jesus dizia aos judeus era o seguinte: "Vocês seguiram o seu próprio
caminho, obedeceram suas próprias idéias, construíram um deus próprio, o
Espírito de Deus não pôde entrar em seus corações. É por isso que não me podem
reconhecer e não querem aceitar minhas palavras."
Os judeus se consideravam um povo religioso; mas como se aferravam a sua
idéia da religião antes que à idéia de Deus tinham terminado por afastar-se
tanto de Deus que se transformaram num povo sem deus. Encontravam-se na posição
terrível de servir, sem deus, a Deus. Quando lhes disse que eram estranhos
perante Deus, os judeus reagiram como se lhes tivessem cravado um aguilhão.
Lançaram seus insultos contra Jesus. Tal como nos chegam suas palavras,
acusaram-no de ser samaritano e louco.
O que quiseram dizer ao chamá-lo samaritano? Se foi isso o que disseram,
sua intenção foi afirmar que era um inimigo de Israel, porque existia uma
inimizade mortal entre judeus e samaritanos. Também significava que desobedecia
a Lei porque não a observava e, sobretudo, que era um herege, porque samaritano
e herege se tornaram sinônimos. Seria extraordinário que se acusasse de heresia
o Filho de Deus. E sem dúvida alguma, voltaria a acontecer se voltasse a este
mundo e a suas Igrejas. Mas é ao menos possível que a palavra samaritano seja
uma corrupção de outra coisa.
Em primeiro lugar, devemos assinalar que Jesus respondeu à acusação que
o qualificava de louco, de que tinha demônio, mas não respondeu nada à acusação
de que era samaritano. Isso nos faz duvidar de que a acusação dos judeus nos
tenha chegado como eles formularam.
No aramaico original, a palavra que designa samaritano seria Shomeroni. Agora,
a palavra Shomeron também era um dos títulos do príncipe dos demônios, que
recebe os nomes do Ashmedai, Sammael e Satanás. De fato, o Corão, a bíblia dos
maometanos, afirma que foi Shomeron, o príncipe dos demônios, quem seduziu aos
judeus e os conduziu à idolatria. De maneira que é possível que a palavra
Shomeroni signifique uma criatura do diabo.
É muito possível que o que os judeus disseram a Jesus tenha sido o seguinte:
"Você é uma criatura do diabo, você tem demônio, está louco com a loucura
do Maligno."
A resposta de Jesus foi que, longe de ser um servo do demônio, seu objetivo
principal era honrar a Deus, enquanto que a conduta dos judeus era uma desonra
contínua a Deus. Diz então: "Não sou eu quem tem demônio, são vocês."
Não é minha obra a que é essencialmente má, é a sua."
Logo vem o brilho da fé suprema de Jesus. Diz: "Não busco a glória neste
mundo. Sei que serei insultado, rechaçado, desonrado e crucificado. Mas há
alguém que um dia dará às coisas sua valor verdadeiro, que um dia atribuirá aos
homens sua verdadeira honra, esse alguém é Deus e Ele me dará a glória que é
real porque é de Deus." Jesus estava seguro de uma coisa: em última
instância, à luz da eternidade, Deus protegerá a honra do que é dele. Jesus via
diante dele, no tempo, nada mais que pena, desonra e rechaço. Na eternidade só
via a glória que receberá algum dia aquele que obedece a Deus. Browning, o
poeta inglês, escreveu no Paracelso:
Se descendo
Ao mar escuro e
tremendo das nuvens,
É por um tempo; junto
a meu peito
Levo a luz de Deus;
seu esplendor, mais cedo ou mais tarde,
Atravessará as
trevas: um dia surgirei.
Jesus tinha o otimismo supremo que nasce da fé suprema, o otimismo que
tem suas raízes em Deus.
A VIDA E A GLÓRIA
Estudo sobre João 8:51-55
Este é um capítulo que salta de um raio de surpresa a outro. Jesus faz
uma afirmação após a outra, cada uma mais tremenda que a anterior.
Aqui assegura que se alguém guarda suas palavras não conhecerá a morte.
Isto escandalizou os judeus. Zacarias havia dito: “Vossos pais, onde estão
eles? E os profetas, acaso, vivem para sempre?” (Zac. 1:5).
Abraão estava morto, os profetas estavam mortos e acaso não tinham guardado
em seu momento e em sua geração, a palavra de Deus? Quem era Jesus para
colocar-se acima dos grandes homens da fé? O que bloqueava a inteligência dos
judeus era o sentido literal em que tomavam as palavras. Jesus não estava
pensando na vida ou a morte físicas. O que queria dizer era que não existia a
morte para aquele que o aceitava plenamente. A morte tinha perdido seu caráter
final. O homem que entra em comunhão com Jesus, entra em uma comunidade que é
independente do tempo. O homem que aceita a Jesus, entra em uma relação com
Deus que nem o tempo nem a eternidade podem quebrar. Esse homem não passa da
vida à morte mas sim da vida à vida. A morte não é mais que a introdução à
presença mais íntima de Deus.
E Jesus passa a fazer uma afirmação muito séria: toda glória verdadeira
deve proceder de Deus. Não é difícil vangloriar-se a si mesmo. A pessoa pode
rodear-se com toda facilidade com uma espécie de halo artificial. É bastante
fácil, de fato, é tragicamente fácil, lançar-se ao descanso à luz da própria
aprovação. Não é muito difícil obter a honra dos homens. O mundo honra o homem
que tem êxito e ambição. Mas a verdadeira honra é aquela que só a eternidade
pode revelar e os veredictos da eternidade não são os do tempo.
Logo Jesus faz duas afirmações essenciais que são o próprio fundamento
de sua vida.
(1) Afirma que possui um conhecimento único de Deus. Assegura que
conhece a Deus de um modo como ninguém o conheceu antes nem chegará a
conhecê-lo jamais. Tampouco tenta minimizar tal afirmação, porque se o fizesse
estaria mentindo. A única via para acessar a um conhecimento tal do coração e
da mente de Deus é por meio de Jesus Cristo. Com nossas próprias mentes só
podemos alcançar fragmentos do conhecimento de Deus. Só em Jesus Cristo encontramos
a totalidade da verdade, porque só nele vemos como é Deus.
(2) Afirma que obedece de maneira única a Deus. Guarda a palavra de
Deus. Olhar a Jesus é ser capaz de dizer: "Assim é como Deus quer que eu
viva." Observar sua vida significa dizer: "Isto é servir a
Deus." Só em Jesus vemos o que Deus quer que conheçamos e o que Deus quer
que sejamos.
A TREMENDA AFIRMAÇÃO
Estudo sobre João 8:56-59
Todos os raios esclarecedores que vimos antes empalidecem e adquirem
significado à luz deslumbrante desta passagem. Quando Jesus disse que Abraão
alegrou-se por ver o seu dia, empregava uma linguagem que o judeu podia
compreender. Os judeus tinham uma quantidade de crenças a respeito de Abraão
que lhes permitiria perceber o que implicava Jesus. Eram cinco as maneiras pelas
quais os judeus podiam interpretar esta passagem.
(a) Abraão vivia no Paraíso e podia ver o que acontecia na Terra. Jesus
usou essa idéia na parábola do rico e Lázaro (Lucas 16:22-31). Essa é a forma
mais simples de interpretar estas palavras.
(b) Entretanto, não é a interpretação correta. Jesus disse que Abraão se
alegrou por ver o seu dia. Usa o tempo passado. Agora, os judeus interpretavam
muitas passagens das Escrituras de uma maneira que explica isto. Tomavam a
grande promessa feita a Abraão em Gênesis 12:3: “Em ti serão benditas todas as
famílias da terra”, e diziam que quando se fez essa promessa, Abraão soube que
queria dizer que o Messias de Deus nasceria em sua família e se alegrou diante
da magnificência da promessa.
(c) Alguns rabinos sustentavam que na visão que se relata em Gênesis
15:8-21, fez-se ver a Abraão todo o futuro do povo de Israel. Portanto, teve
uma visão antecipada da época quando viria o Messias.
(d) Alguns rabinos consideravam que Gênesis 17:17. que conta como riu
Abraão quando ouviu que teria um filho, não significa que riu porque não cria o
que ouvia mas sim pela alegria que lhe produziu saber que dele nasceria o
Messias.
(e) Certos rabinos faziam uma interpretação um tanto fantástica de Gênesis
24:1. A versão Cipriano da Valera (1960) diz que Abraão era "velho" e
acrescenta "avançado em anos", que é o significado literal da palavra
hebraica. Alguns rabinos sustentavam que o sentido dessas palavras era que em
uma visão que Deus lhe tinha dado. Abraão tinha entrado nos dias que jaziam
adiante e que tinha visto toda a história do povo e a vinda do Messias.
Com todos estes dados vemos com toda clareza que os judeus criam que, de
algum modo, enquanto ainda estava vivo, Abraão tinha tido uma visão da história
de Israel e da vinda do Messias. De maneira que quando Jesus disse que Abraão
vira o seu dia. estava afirmando com deliberação que ele era o Messias. O que
dizia era o seguinte: "Vocês crêem que Deus deu uma visão a Abraão na qual
viu a vinda do Messias. Era este dia, era a mim, a quem viu Abraão".
Imediatamente depois dessa afirmação, Jesus se refere a Abraão dizendo:
“Viu-o (meu dia) e regozijou-se.” Alguns dos primeiros cristãos faziam uma
interpretação muito fantástica destas palavras. Em 1 Pedro 4:18-22 e 5:6
encontramos as duas passagens que conformam a base da doutrina que se denomina
a Descida aos infernos. Essa doutrina se incorporou ao Credo na frase,
"Desceu aos infernos." Devemos assinalar que a palavra inferno dá uma
idéia errônea, deveria falar-se do Hades. A idéia não é que Jesus foi ao lugar
dos torturados e dos condenados tal como sugere a palavra inferno. Hades era a
região das trevas onde foram todos os mortos, tanto os bons como os maus.
O Hades era a região escura na qual o povo cria antes de que recebessem
a crença total na imortalidade. A obra apócrifa chamada o Evangelho de
Nicodemos e os Atos de Pilatos tem uma passagem onde se afirma que Abraão se
alegrou ao ver a luz de Cristo no dia que Jesus baixou à região dos mortos. A
passagem diz assim:
“Ó Senhor Jesus Cristo, ressurreição e vida do mundo, dê-nos a graça de
que possamos relatar sua ressurreição e suas obras maravilhosas, as que fez no
Hades. Nós estávamos no Hades junto com todos aqueles que caíram dormidos desde
o começo. E na hora da meia-noite surgiu nesses escuros lugares uma luz
semelhante a do Sol e brilhou e todos fomos iluminados e nos vimos uns aos
outros. E imediatamente nosso pai Abraão, junto com os patriarcas e os
profetas, encheram-se de alegria e diziam uns aos outros: ‘Esta luz provém da
grande iluminação’.”
Assim é como esta estranha história relata de que forma os mortos viram
Jesus e receberam a oportunidade de crer e arrepender-se. E ao ver isso, Abraão
alegrou-se.
Estas idéias nos resultam estranhas. Entretanto, para o judeu eram algo
muito normal porque cria que Abraão já tinha visto o dia quando chegaria o
Messias.
Mas apesar de que sabiam todo isso, os judeus preferiram tomar estas
palavras ao pé da letra. Perguntaram, "Como você pode ter visto Abraão se
você ainda não cumpriu cinqüenta anos?" Por que cinqüenta anos? Essa era a
idade em que os levitas se retiravam de seu serviço (Números 4:3). O que os
judeus dizem a Jesus é o seguinte: "Você é um homem jovem, na plenitude da
vida, nem sequer tem idade suficiente para se retirar do serviço. Como é
possível que você tenha visto Abraão? Você está louco." Foi nesse momento
que Jesus pronunciou a afirmação esmagadora. “Antes que Abraão existisse, EU
SOU.”
Devemos ter muito cuidado e assinalar que Jesus não disse: "Antes que
Abraão fosse, eu era", mas sim "Antes que Abraão existisse, eu sou."
Aqui se afirma que Jesus é atemporal. Não houve um momento quando chegou a ser;
não haverá jamais um tempo no qual não seja. Não podemos dizer que Jesus foi.
Devemos dizer sempre, é. O que quis dizer? É evidente que não quis dizer que
Ele, a figura humana chamada Jesus, existiu sempre. Sabemos que Jesus nasceu
neste mundo em Belém. Aqui se busca algo mais que isso.
Pensemo-lo deste modo. Há uma só pessoa no universo que está fora do
tempo. Há uma só pessoa que está acima e mais à frente do tempo e que sempre
pode dizer, Eu sou. E essa única pessoa é Deus. O que Jesus diz aqui não é nada
menos que a vida que está nele é a vida de Deus; que nele a eternidade
atemporal de Deus irrompeu no tempo do homem. Diz, como o expressou com toda
simplicidade o autor de Hebreus, que é o mesmo ontem, hoje e sempre. Em Jesus
não vemos só um homem que veio, viveu e morreu. Vemos o Deus atemporal, que foi
o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, que era antes do tempo e que será depois
do tempo, que sempre é. Em Jesus, o Deus eterno se manifestou aos homens.