Estudo sobre João 21

João 1



Por que João 21?
O Senhor ressuscitado - 21:1-14
A realidade da ressurreição - 21:1-14 (cont.)
A universalidade da Igreja - 21:1-14 (cont.)
O pastor das ovelhas de Cristo - 21:15-19
A testemunha de Cristo - 21:20-24
O Cristo ilimitado - 21:25




POR QUE JOÃO 21?

De qualquer ponto de vista, este é um capítulo estranho. Logo parece voltar a começar no capítulo vinte e um. A menos que tivesse algo muito especial que dizer, a pessoa que deu forma final ao Evangelho não teria agregado este capítulo. Sabemos que com muita freqüência o Evangelho de João contém dois sentidos: um que aparece na superfície e outro mais profundo que está oculto. De maneira que ao estudar este capítulo faremos um esforço para compreender quais foram as razões pelas quais foi adicionado de maneira tão estranha depois que o livro parecia ter chegado a seu fim.

O SENHOR RESSUSCITADO
Estudo sobre João 21:1-14

Sem dúvida a pessoa que escreveu este relato conhecia os pescadores do Mar da Galiléia. A noite era o melhor momento para a pesca.

W. M. Thomson em The Land and the Book descreve a pesca noturna:

“Há certos tipos de pesca que sempre são feitas de noite. É um belo espetáculo. Com uma luz brilhante o bote se desliza sobre o mar e os homens, de pé, observam com atenção as profundidades até que vêem sua presa. Nesse momento, rápidos como o raio, lançam a rede ou a lança. Freqüentemente se vêem pescadores cansados que chegam ao porto afligidos pela manhã depois de ter trabalhado toda a noite em vão.” 

Aqui não se descreve a pesca como um milagre e não o era. A descrição que temos aqui se refere a algo que acontece com freqüência até o dia de hoje no lago. Recordemos que o barco só estava a uns cem metros da margem.

H. V. Morton descreve dois homens que viu pescando sobre a margem do lago. Um deles se posicionou da costa, caminhando, e tinha lançado uma rede na água. “Mas a rede saía vazia algumas vezes. Era bonito vê-lo lançar a rede. Em cada ocasião, a rede cuidadosamente dobrada se abria no ar e caía comtanta precisão que os pequenos pesos de chumbo golpeavam todos ao mesmo tempo desenhando um círculo sobre a superfície. Enquanto esperava para atirar outra vez, Abdul lhe gritou da margem que lançasse à esquerda coisa que fez num instante. Desta vez teve êxito... Lançou a rede e víamos como se debatiam os peixe dentro dela... Ocorre com muita freqüência que a pessoa que tem a rede deve confiar nos conselhos de alguém que está na costa. Este lhe diz que lance a rede à direita ou à esquerda porque pode ver um cardume que é invisível a quem está no meio da água.”

Jesus agia como guia de seus amigos pescadores, tal como se faz na atualidade.

Pode ser que não o tenham reconhecido porque estava escuro. Entretanto, os olhos do discípulo a quem Jesus amava eram agudos. Sabia que era o Senhor e quando Pedro se deu conta de quem se tratava saltou à água. Pedro não estava nu, em realidade. Estava vestido com uma túnica tal como estavam acostumados a usar os pescadores quando trabalhavam. A Lei judia estabelecia que a ação de saudar era um ato religioso e para levá-lo a cabo era preciso estar vestido. De maneira que antes de dirigir-se a Jesus, Pedro ficou sua túnica de pescador porque queria ser o primeiro em saudar o Senhor.

A REALIDADE DA RESSURREIÇÃO
Estudo sobre João 21:1-14 (continuação)

Agora chegamos à grande razão pela qual se adicionou este capitulo estranho ao Evangelho concluído. Foi acrescentado para demonstrar de uma vez por todas a realidade da ressurreição. Havia muitas pessoas que afirmavam que as aparições do Cristo ressuscitado não eram mais que visões dos discípulos. Muitos estavam dispostos a reconhecer o caráter real das visões mas só como visões e nada mais. Alguns foram ainda mais longe até dizer que não se tratava de visões mas sim de alucinações.

Agora, os Evangelhos se preocupam de maneira especial em afirmar que o Cristo ressuscitado não era uma visão, nenhuma alucinação, nem sequer um espírito mas uma pessoa real. Insistem que o sepulcro estava vazio. Afirmam que o Cristo ressuscitado tinha um corpo real com os sinais dos pregos e da lança que lhe atravessou o lado.

Não obstante, este relato faz algo mais. Não é provável que uma visão ou um espírito aponte um cardume de peixes a um grupo de pescadores. Tampouco acenderia um fogo na margem de um lago. Nem é provável que uma visão ou um espírito prepare uma comida e a compartilhe com outros. Entretanto, tal como se apresenta este relato, isso foi o que fez o Cristo ressuscitado. Quando João nos diz que Jesus voltou para seus discípulos quando as portas estavam fechadas, diz: “Mostrou-lhes as mãos e o lado” (João 20:20).

Quando Inácio escreveu à Igreja de Esmirna, relata uma tradição ainda mais definitiva. Diz: “Sei e creio que estava na carne inclusive depois da ressurreição e quando voltou com Pedro e seu grupo disse: ‘Tomem, me toquem e vejam que não sou um demônio sem corpo’. E o tocaram imediatamente e creram porque estavam firmemente convencidos de que tinha carne e sangue... E depois da ressurreição comeu e bebeu com eles como alguém que tem corpo”.

O primeiro e fundamental objetivo deste relato é deixar estabelecida com toda clareza a realidade da ressurreição. Não se tratava de uma visão, nem do produto da imaginação emocionada de alguns discípulos; não se tratava da aparição de um fantasma ou espírito: era Jesus que venceu a morte e que agora retornava.

A UNIVERSALIDADE DA IGREJA
Estudo sobre João 21:1-14 (continuação)

Não obstante, nesta passagem aparece outra grande verdade. Todo o conteúdo do Quarto Evangelho está pleno de sentido; portanto, é pouco provável que João dê o número dos peixes, cento e cinqüenta e três, sem uma intenção deliberada. Sugeriu-se, em realidade, que os peixes foram contados porque era preciso reparti-los entre vários companheiros e a tripulação do barco e que se menciona o número porque era excepcionalmente elevado. Entretanto, quando lembramos o costume de João de dar duplo sentido às palavras para aqueles que têm olhos para ver o oculto, devemos pensar que esta cifra tem um sentido ulterior.

Deram-se muitas interpretações engenhosas sobre esta cifra.

(1) Cirilo de Alexandria afirmou que o número 153 está composto por três coisas. Em primeiro lugar, o 100 que representa "a totalidade dos gentios". O 100 — afirma — é o número mais completo. O rebanho completo do pastor são 100 ovelhas (Mateus 10:12). A fertilidade total da semente é 100 por cento. De maneira que o 100 representa à totalidade dos gentios que se reunirão em torno de Cristo. Em segundo lugar, está o 50. Este número representa o resto de Israel que se aproximará de Cristo. Por último, temos o 3: representa a Trindade para cuja glória se fazem todas as coisas. Trata-se, ao menos, de uma explicação engenhosa e interessante.

(2) Agostinho dá outra explicação engenhosa. Diz que o 10 é o número da Lei pois há dez mandamentos. O 7 é o número da graça pois os dons do Espírito são sete.

Você é o Espírito que unge,
E reparte seus sete dons. 

Agora 7 + 10 são 17 e 153 é a soma de todas as cifras, 1 + 2 + 3 + 4..., até 17. De maneira que 153 representa a todos aqueles que, já seja pela Lei ou pela graça, foram impelidos a aproximar-se de Jesus Cristo.

(3) A explicação mais singela é a de Jerônimo. Afirma que no mar há 153 espécies de peixes e que a pesca representa a inclusão de todas as classes de peixes. De maneira que o número simboliza o fato de que algum dia os homens de todos os países se reunirão em Jesus Cristo. Entretanto, podemos assinalar outro elemento. Esta grande pesca se reuniu na rede que os manteve a todos sem romper-se. A rede representa a Igreja. Nela há lugar para os homens de todas as nações. Inclusive se entrarem todos, a Igreja é o suficientemente grande para contê-los.

Aqui João nos diz com seu estilo muito sutil que a Igreja é bastante grande para incluir em seus braços os homens de todas as nações. Fala João nos da universalidade da Igreja. Não há nenhum exclusivismo nela, não há barreiras impostas pela cor nem nada por estilo. O abraço da Igreja é tão universal como o amor de Deus em Jesus Cristo. Levar-nos-á a outra grande razão pela qual se acrescentou este capítulo se notarmos que foi Pedro quem levou a rede à terra (João 21:11).

O PASTOR DAS OVELHAS DE CRISTO
Estudo sobre João 21:15-19

Esta é uma cena que deve ter ficado gravada para sempre na mente de Pedro.

(1) Em primeiro lugar, devemos notar a pergunta que Jesus fez a Pedro: “Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros?” No que respeita à linguagem, essa frase pode ter dois sentidos.

(a) Pode ser que Jesus estendeu o braço abrangendo o barco, suas redes, sua equipe e a pesca e disse a Pedro: "Simão, ama-me mais que estas coisas? Está disposto a renunciar a elas, a abandonar todas as esperanças de fazer uma carreira bem-sucedida, a abandonar um trabalho estável e uma comodidade razoável a fim de entregar você para sempre aos meus filhos e à minha obra?" Pode ter sido um desafio a Pedro para que tomasse a decisão final de entregar toda a sua vida à pregação do evangelho e ao cuidado do rebanho de Cristo.

(b) Pode ser que Jesus visse o resto do grupo e tenha perguntado a Pedro: "Simão, você me ama mais que seus companheiros?" Pode ser que Jesus voltou seu olhar de noite quando Pedro disse: “Ainda que todos se escandalizem em ti, eu nunca me escandalizarei” (Mateus 26:33). Não importa o que outros façam, eu te amo o suficiente para ser fiel para sempre. Pode ser que Jesus lembrasse a Pedro, com todo amor, de que maneira uma vez pensou que só ele podia ser leal e sua coragem lhe tinha aprontado uma. O mais provável é que a segunda interpretação seja a correta porque em sua resposta Pedro já não faz comparações, sente-se satisfeito limitando-se a dizer: “Tu sabes que eu te amo”.

(2) Devemos ter em conta quantas vezes Jesus formulou a pergunta. Ele o fez três vezes e havia uma razão para isso. Pedro negou a seu Senhor três vezes e este lhe deu a oportunidade de afirmar seu amor outras três vezes. Em seu perdão amoroso, Jesus deu a Pedro a oportunidade de apagar a lembrança da triple negação mediante uma triple declaração de amor.

(3) Devemos notar o que o amor fez por Pedro.

(a) Deu-lhe uma tarefa. "Se me amas", disse Jesus, "entrega tua vida a apascentar as ovelhas e os cordeiros de meu rebanho". Só podemos demonstrar que amamos a Jesus amando a outros. O amor é o maior privilégio do mundo mas também conduz a maiores responsabilidades.

(b) O amor deu uma cruz a Pedro. Jesus lhe disse: “Quando eras mais moço, tu te cingias a ti mesmo e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres”. Chegou o dia quando Pedro, estando em Roma, morreu por seu Senhor. Ele também foi à cruz e quando estavam para pregá-lo nela pediu que o pusessem com a cabeça para baixo pois não se sentia digno de morrer como seu Senhor. O amor lhe proporcionou uma tarefa e uma cruz. O amor sempre implica responsabilidades e sacrifícios. E não amamos a Cristo de verdade a menos que estejamos dispostos a enfrentar sua tarefa e a carregar sua cruz.

João não anotou este incidente para mostrar-se como melhor. Ele o fez para mostrar a Pedro como o grande pastor do povo de Cristo. É possível. De fato, é inevitável que as pessoas da Igreja primitiva estabelecessem comparações. Alguns diriam que João era o mais importante porque seus pensamentos eram mais profundos que os de outros. Outros afirmariam que esse lugar pertencia a Paulo porque viajou até os limites do mundo por Cristo. Mas este capítulo diz que Pedro também tinha seu lugar. Possivelmente não escrevia nem pensava como João, tampouco viajava e vivia as mesmas aventuras que Paulo mas tinha a enorme honra e a preciosa tarefa de ser o pastor das ovelhas de Cristo.

E aqui é onde podemos seguir os passos de Pedro. Podemos não ser capazes de pensar como João nem podermos viajar por todo o mundo como Paulo mas cada um de nós pode evitar que outro vá pelo mau caminho e cada um de nós pode nutrir os cordeiros de Cristo com o alimento da palavra de Deus.

A TESTEMUNHA DE CRISTO
Estudo sobre João 21:20-24

Esta passagem estabelece claramente que João deve ter vivido até uma idade muito avançada; comentou-se que viveria até que Jesus voltasse. Agora, assim como a passagem anterior outorga a Pedro seu lugar no esquema das coisas, esta passagem outorga a João o seu lugar.

A função de João, antes de mais nada, era a de ser testemunha de Cristo.

Mais uma vez, o povo da Igreja primitiva deve ter estabelecido comparações. Devem ter assinalado que Paulo viajava até os limites da Terra. Devem ter recalcado que Pedro ia de um lugar a outro cuidando do povo. E então se devem ter perguntado qual era a função de João que tinha vivido durante tanto tempo em Éfeso e era tão ancião que não podia desempenhar nenhuma atividade. Aqui temos a resposta: Paulo podia ser o pioneiro de Cristo, Pedro podia ser seu pastor, mas João era a testemunha. João era o homem que podia dizer: "Eu vi estas coisas e sei que são verdadeiras".

Até o dia de hoje o argumento final do cristianismo é a experiência cristã. Até o dia de hoje o cristão é quem pode dizer: "Conheço Jesus Cristo e sei que estas coisas são verdadeiras". De maneira que, no final, este Evangelho toma a duas das grandes figura da Igreja: Pedro e João. Jesus deu uma função a cada um deles. A tarefa de Pedro era pastorear as ovelhas de Cristo e morrer por Ele. A tarefa de João era dar testemunho da história de Cristo, viver até uma idade avançada e morrer em paz. Isso não os convertia em rivais e competidores quanto à honra e o prestígio, não fazia a um maior ou menor que o outro; fazia de ambos os servos de Cristo.

Cada um deve servir a Cristo onde Ele o destina. Como disse Jesus a Pedro: "Não se preocupe pela tarefa que se encomenda a outro. Sua tarefa é me seguir". E isso é o que ainda diz a cada um de nós. Nossa glória não se mede pela comparação com outros homens mas pelo serviço a Cristo no lugar que ele nos destina.

O CRISTO ILIMITADO
Estudo sobre João 21:25

Neste último capítulo o autor do Quarto Evangelho estabeleceu certas grandes verdades para a Igreja para a qual escrevia. Recorda-lhe a realidade da ressurreição e a universalidade da Igreja; recorda-lhe que Pedro e João não são rivais quanto à honra mas sim Pedro é o grande pastor e João a grande testemunha.

E agora chega ao final pensando mais uma vez no esplendor de Cristo. Seja o que for que sabemos de Cristo só vimos uma fração. Seja quais forem as maravilhas que experimentamos são como nada comparadas com as que virão. As categorias humanas não conseguem descrever a Cristo e os livros humanos não o podem conter. Assim João termina seu Evangelho com as vitórias inumeráveis, o poder ilimitado e a graça sem fim de Jesus Cristo.

NOTAS
Notas sobre o relato da mulher adúltera - 8:2-11
Notas sobre a data da crucificação

NOTAS SOBRE O RELATO DA MULHER ADÚLTERA
Estudo sobre João 8:2-11

Para muitos, esta é uma das histórias mais bonitas e preciosas de todos os Evangelhos; entretanto, contém grandes dificuldades. É evidente que quanto mais antigos sejam os manuscritos do Novo Testamento maior é seu valor. Foram copiados à mão e, como é lógico, quanto mais próximos sejam dos escritos originais mais possibilidades têm de ser corretos. A estes manuscritos muito anteriores chamamo-los unciais porque eram escritos em maiúsculas. O texto do Novo Testamento se baseia nos mais primitivos que datam do quarto ao sexto século. Agora, acontece que este relato só aparece em um desses manuscritos primitivos e não se trata de um dos melhores. Seis deles o omitem por completo sem fazer sequer uma menção. Dois deles deixam um espaço em branco onde deveria aparecer mas não o incluem. Só quando se chega aos manuscritos gregos posteriores e aos medievais
encontramos o relato e inclusive nesses casos tem um sinal que indica seu caráter duvidoso.

Outra fonte de nossos conhecimentos sobre o Novo Testamento são o que conhecemos como versões: quer dizer, as traduções a outros idiomas que não são o grego. Este relato não aparece na versão siríaca primitiva nem na copta ou na egípcia; tampouco aparece em algumas das versões latinas mais antigas. 

Por outro lado, nenhum dos primeiros pais, da época mais antiga, parecem saber algo a respeito dele. Jamais o mencionam nem o comentam. Orígenes, Crisóstomo, Teodoro da Mopsuestia, Cirilo de Alexandria, pelo lado grego, não sabem nada a respeito dele nem o mencionam. O primeiro comentarista grego que fala sobre este relato é Eutimio Zigabeno, 1118, e diz que não aparece nos melhores manuscritos.

De onde veio, então? Sabemos com toda segurança que Jerônimo o conhecia no quarto século pois o incluiu na Vulgata. Sabemos que tanto Agostinho como Ambrósio o conheciam porque ambos o comentam. Sabemos que está nos manuscritos posteriores. Devemos assinalar que sua localização varia muito. Em alguns manuscritos aparece ao final do Quarto Evangelho. Em alguns aparece depois de Lucas 21:38. Não obstante, podemos rastreá-lo ainda mais atrás. É citado em um livro do século três denominado As constituições apostólicas, o qual o apresenta como uma advertência aos bispos muito estritos. Eusébio, o historiador da Igreja, diz que Papias relatou uma história "de uma mulher que foi acusada de muitos pecados perante o Senhor" e Papias não viveu muito depois do ano 100.

De maneira que aqui temos os dados. Podemos rastrear o relato até princípios do século dois. Quando Jerônimo produziu a Vulgata, ele o incluiu, sem dúvida alguma. Os manuscritos posteriores e os medievais o incluem. Entretanto, nenhum dos grandes manuscritos o menciona. Nenhum dos grandes pais gregos da Igreja o menciona, comenta-o ou prega sobre ele. Entretanto, alguns dos grandes pais latinos o conheciam e falam sobre ele.

Qual é a explicação? Não devemos temer porque não há razão para passar por alto este relato formoso pois é garantia suficiente o fato de poder rastreá-lo até o ano 100. Mas necessitamos alguma explicação de sua ausência dos grandes manuscritos. Moffat, Weymouth e Rieu o incluem entre parêntese e a Revised Standard Version o escreve com um tipo pequeno no rodapé.

Agostinho nos dá uma pista. Diz que se tirou este relato do texto do Evangelho porque "alguns tinham pouca fé" e "para evitar o escândalo". Não podemos estar absolutamente seguros mas pareceria que nos primeiros tempos as pessoas que publicaram o texto do Novo Testamento pensaram que se tratava de um relato perigoso, que justificava uma opinião leviana do adultério e portanto o passaram por alto. Depois de tudo, a Igreja cristã era uma pequena ilha em muito paganismo. Seus membros podiam voltar a cair com muita facilidade em um modo de vida que desconhecia a castidade e estavam permanentemente expostos ao contágio dos pagãos. À medida que o tempo passou decresceu o perigo ou possivelmente não houve tanto temor e retornou este relato que sempre tinha circulado por via oral e que um dos manuscritos tinha conservado.

Não é provável que agora esteja no lugar original. Provavelmente foi aqui inserido para ilustrar a frase de Jesus em João 8:15: “Eu a ninguém julgo”. Apesar da dúvida que lhe adjudicam as traduções modernas e apesar de que os manuscritos primitivos não o incluem não temos por que pensar que não é um relato verdadeiro de Jesus apesar de tratar-se de um relato tão caridoso que durante muito tempo os homens não se animaram a repeti-lo.

NOTAS SOBRE A DATA DA CRUCIFICAÇÃO

No Quarto Evangelho há um problema muito importante que não assinalamos ao estudá-lo. Só o mencionaremos brevemente pois em realidade não está resolvido e a bibliografia sobre o tema é muito extensa.

Não há dúvida de que o Quarto Evangelho e outros dão distintas datas para a crucificação e têm pontos de vista diferentes sobre a Última Ceia.

Nos Evangelhos Sinóticos aparece claramente que a Última Ceia foi a páscoa e que Jesus foi crucificado no dia de páscoa. Devemos lembrar que o dia judeu começa às seis da tarde do que para nós é no dia anterior.

A páscoa caiu em 15 de Nisã mas esse dia começava no que para nós seria o 14 de Nisã, às seis da tarde. De maneira que o dia de páscoa ia das seis da tarde de um dia até a mesma hora do dia seguinte. Marcos é muito claro; diz: “E, no primeiro dia da Festa dos Pães Asmos, quando se fazia o sacrifício do cordeiro pascal, disseram-lhe seus discípulos: Onde queres que vamos fazer os preparativos para comeres a Páscoa?” Jesus lhes dá as instruções. E Marcos continua: “Prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, foi com os doze” (Marcos 14:12-17). Sem dúvida alguma, Marcos quis mostrar a Última Ceia como a ceia pascal e quis assinalar que Jesus foi crucificado no dia de páscoa. Mateus e Lucas, é óbvio, seguem a Marcos.

Por outro lado, João deixa bem estabelecido que Jesus foi crucificado no dia antes da páscoa. Começa seu relato da Última Ceia: “Antes da Festa da Páscoa...” (João 13:1). Quando Judas abandonou o cenáculo creram que tinha ido preparar a páscoa (João 13:29). Os judeus não queriam entrar no recinto do juízo para não poluir-se e não poder comer a páscoa (João 18:28). O juízo se desenvolve durante a preparação para a páscoa (João 19:14).

Encontramo-nos diante de uma contradição para a qual não há solução de compromisso. Um dos dois, os evangelhos sinóticos ou João, devem estar certos. Os especialistas não estão de acordo. Entretanto, pareceria mais provável que os Evangelhos Sinóticos estivessem corretos. João sempre buscava sentidos ocultos. Em seu relato, crucificam a Jesus perto da sexta hora (João 19:14). O que acontecia esse momento? Nesse mesmo momento se matavam os cordeiros pascais no templo. O mais provável é que João tenha ordenado os atos de maneira tal que a crucificação de Jesus acontecesse exatamente no mesmo momento em que se matavam os cordeiros pascais para que se visse Jesus como o grande Cordeiro pascal que salvou a seu povo e tirou os pecados do mundo. Parece que os Evangelhos Sinóticos são corretos quanto aos fatos e o Evangelho de João é correto quanto à verdade e a João sempre interessou mais a Verdade eterna que o puro dado histórico. Não há uma explicação definitiva sobre esta discrepância evidente mas esta nos parece a mais aceitável.