Estudo sobre João 18

Estudo sobre João 18
Estudo sobre João 18


A detenção no jardim - 18:1-11
A detenção no jardim - 18:1-11 (cont.)
Jesus perante Anás - 18:12-14, 19-24
O herói e o covarde - 18:15-18, 25-27
O herói e o covarde - 18:15-18, 25-27 (cont.)
Jesus perante Pilatos; os judeus - 18:28-40
Jesus perante Pilatos; os judeus - 18:28-40 (cont.)
Jesus perante Pilatos; Pilatos o governador - 18:28-40 (cont.)
Jesus perante Pilatos; a atuação de Pilatos - 18:28-40 (cont.)
Jesus perante Pilatos; Barrabás - 18:28-40 (cont.)



A DETENÇÃO NO JARDIM
Estudo sobre João 18:1-11

Quando a Última Ceia terminou e quando chegou ao fim a conversação e a oração de Jesus com seus discípulos, saíram do cenáculo. Dirigiam-se ao jardim do Getsêmani. Sairiam pelas portas da cidade, baixariam pelo vale íngreme e cruzariam o canal da corrente Cedrom. Ali deve ter acontecido algo simbólico. Todos os cordeiros pascais eram sacrificados no templo e se vertia seu sangue sobre o altar como oferta a Deus. A quantidade de cordeiros que se matava para a páscoa era imensa. Em certa ocasião, trinta anos depois da época de Jesus, fez-se um censo e se contaram 256.000. Podemos imaginar o que seriam os pátios do templo quando se vertia todo o sangue destas ovelhas sobre o altar. Do altar havia um canal que ia ao arroio Cedrom e o sangue fluía por ele. Quando Jesus cruzou o arroio certamente ainda estava vermelho com o sangue dos cordeiros sacrificados. E sem dúvida alguma ao ver esse sangue vislumbraria de maneira mais clara seu próprio sacrifício.

Depois de cruzar o canal do Cedrom, chegaram ao monte das Oliveiras. Sobre a ladeira desse monte estava o pequeno jardim do Getsêmani que significa prensa de azeite: a prensa de onde se extraía o azeite das azeitonas que cresciam no monte. Muita gente acomodada tinha seu jardim particular nesse lugar. Em Jerusalém não havia muito espaço para jardins particulares porque estava construída sobre o topo de um monte. Por outro lado, certas regulamentos cerimoniais proibiam o emprego de abono no solo da cidade sagrada. Essa era a razão pela qual o povo rico tinha seus jardins privados fora da cidade nas ladeiras monte das Oliveiras.

Até o dia de hoje se mostra aos peregrinos um pequeno jardim sobre o monte. Os monges franciscanos cuidam dele com amor e há oito grandes oliveiras de tal tamanho que, como diz H. V. Morton, parecem rochas em vez de árvores. São muito velhos, sabe-se que se remontam à época anterior à conquista da Palestina pelos muçulmanos. Não é muito provável que pertençam à época de Jesus mas sem dúvida alguma os pequenos caminhos que cruzam o monte das Oliveiras foram transitados por Jesus. De maneira que Jesus foi a este jardim. Algum cidadão abastado, um amigo anônimo de Jesus cujo nome jamais conheceremos, deve ter-lhe dado a chave da porta e o direito a fazer uso do jardim enquanto estava em Jerusalém. Jesus e seus discípulos tinham ido ali muitas vezes em busca de paz e silêncio. Judas sabia que encontraria a Jesus ali e decidiu que esse seria o lugar onde poderiam prendê-lo com maior facilidade.

Há algo surpreendente na força que foi prender a Jesus. João diz que havia uma companhia de soldados junto com oficiais dos principais sacerdotes e dos fariseus. Os oficiais seriam a polícia do templo. As autoridades do templo tinham uma espécie de polícia particular para manter a ordem e o Sinédrio tinha polícia e oficiais para fazer cumprir seus regulamentos. Os oficiais eram a força policial judia. Mas também havia um grupo de soldados. A palavra é speira. Agora, se empregada de maneira correta, essa palavra pode ter três sentidos. É a palavra grega para designar a coorte romana. Cada uma delas tinha seiscentos homens.

Se fosse uma coorte de homens de auxílio, a speira tinha mil homens, duzentos e quarenta de cavalaria e setecentos e sessenta de infantaria. Às vezes, embora com menor freqüência, empregava-se a palavra para referir-se a um manípulo formado por duzentos homens. Inclusive se tomarmos a palavra neste último sentido, que expedição para enviar contra um carpinteiro da Galiléia desarmado! Na época da páscoa sempre tinha soldados de mais em Jerusalém aquartelados na Torre de Antonia da qual se via o templo. Portanto não era difícil contar com homens.

Mas que reconhecimento do poder de Jesus! Quando as autoridades decidiram prendê-lo enviaram quase um exército. Havia tal poder neste único homem que seus inimigos sentiram que necessitavam um exército para reduzi-lo e garantir seu captura.


A DETENÇÃO NO JARDIM
Estudo sobre João 18: 1-11 (continuação)

Há poucas cenas em todas as escrituras que nos mostrem as qualidades de Jesus como o faz este arresto no jardim.

(1) Mostra-nos sua coragem. Na época da páscoa havia Lua cheia e a noite estava quase tão iluminada como o dia. Entretanto, os inimigos de Jesus tinham chegado com lâmpadas e tochas. Por que? Não precisavam delas para ver o caminho à luz argêntea da Lua. Devem ter pensado que teriam que buscar entre as árvores, sobre as ladeiras e nas entradas e covas do monte para encontrar a Jesus. Devem ter suposto que se esconderia. Longe de fazer algo semelhante, quando chegaram Jesus deu um passo à frente. “A quem buscais?” perguntou. “A Jesus, o Nazareno”, responderam. “Sou eu”, chegou a resposta. O homem que criam que deveriam buscar entre as árvores e as covas estava de pé diante deles com um desafio glorioso e arriscado. Aqui temos a coragem de um homem que está disposto a encarar as coisas. 

Durante a Guerra Civil Espanhola se sitiou uma cidade. Havia alguns que queriam entregar-se, mas surgiu um líder. "É melhor", disse, "morrer de pé que viver ajoelhados". Se Jesus devia morrer, morreria como um herói.

(2) Mostra-nos sua autoridade. Ali estava; uma única figura, solitária, desarmada. Ali estavam eles, centenas de homens, armados e equipados. Entretanto, ao vê-lo, retrocederam e caíram ao solo. Nesse
momento, o poder irradiava de Jesus. Fluía do um sentimento de autoridade que, apesar de sua solidão, o fazia mais forte que o poder de seus inimigos.

(3) Mostra-nos que Jesus escolheu morrer. Mais uma vez, é evidente que Jesus poderia ter evitado a morte se o quisesse. Poderia ter caminhado em meio deles e ter-se ido para longe. Mas não o fez. Jesus chegou até a ajudar a seus inimigos a prendê-lo. Escolheu morrer.

(4) Mostra-nos seu amor protetor. Não pensava em si mesmo, mas em seus amigos. Disse: “Já vos declarei que sou eu; se é a mim, pois, que buscais, deixai ir estes.” Pensava mais no perigo que enfrentavam os discípulos que no próprio.

Entre as muitas histórias imortais da Segunda Guerra Mundial se destaca a do Alfred Sadd, o missionário da Tarrawa. Quando os japoneses chegaram a sua ilha estava formado com outros vinte homens, em sua maioria soldados de Nova Zelândia que tinham formado parte das tropas. Os japoneses estenderam uma bandeira da Inglaterra no solo e ordenaram ao Sr. Sadd que caminhasse sobre ela. O Sr. Sadd se aproximou da bandeira e, ao chegar a ela deu a volta rumo à direita.

Voltaram-lhe a ordenar que pisasse na bandeira e desta vez girou rumo à esquerda. A terceira vez o obrigaram a chegar até ela; levantou-a nos braços e a beijou. Quando os japoneses os fizeram sair a todos para matá-los muitos deles eram tão jovens que estavam afligidos, mas o Sr. Sadd levantou-lhes o ânimo. Ficaram de pé em fila, com Sadd no meio e nesse momento o Sr. Sadd se separou um pouco da fila e lhes dirigiu palavras de alento. Quando terminou, retornou à fila mas se manteve um pouco mais adiante que outros para ser o primeiro a morrer. Alfred Sadd pensava mais nos problemas dos outros que nos próprios. O amor protetor de Jesus se ocupava dos discípulos inclusive no Getsêmani.

(5) Mostra-nos sua obediência máxima. "A taça que o Pai me deu", disse, "não a hei de beber?" Essa era a vontade de Deus e isso era suficiente para Ele. Foi fiel até a morte.

E há uma pessoa neste relato a quem devemos fazer justiça: Pedro. 

Pedro, um só homem, desembainhou sua espada contra centenas. Como disse Macaulay:

Que melhor morte pode pretender um homem que fazer frente a riscos temíveis? Pedro negaria a seu mestre pouco tempo depois, mas nesse momento estava disposto às ver-se com centenas de homens para defender a Cristo. Podemos falar da covardia e o fracasso de Pedro, mas jamais devemos esquecer a coragem sublime que demonstrou nesse momento.


JESUS PERANTE ANÁS
Estudo sobre João 18:12-14, 19-24

Para manter a continuidade da narração nos ocuparemos das duas passagens que tratam sobre o juízo perante Anás ao mesmo tempo. Faremos o mesmo com as duas passagens que se ocupam da tragédia de Pedro.

João é o único que diz que levaram a Jesus a Anás antes que nada. Anás era um personagem notável. Edersheim escreve sobre ele: “Não há nenhuma outra figura tão conhecida na história judia contemporânea como Anás. Ninguém o reputava tão afortunado ou triunfante mas tampouco havia outra pessoa tão execrável como o antigo sumo sacerdote”.

Anás era o poder que estava atrás do trono em Jerusalém. Ele mesmo tinha sido sumo sacerdote desde 6 a 15 d C. Quatro de seus filhos também tinham ocupado essa acusação e Caifás era seu genro. Esse dado é sugestivo e esclarecedor por si mesmo. Houve um tempo quando os judeus eram livres, então os sumos sacerdotes ocupavam o cargo vitalício. Mas quando chegou o governo romano, o cargo se converteu em tema de controvérsia, intrigas, corrupção e suborno.

Agora a acusação ia ao maior adulador e o melhor lançador, a quem estivesse mais disposto a baixar a cabeça perante o governador romano.

O sumo sacerdote era o grande colaborador, o homem que comprava o conforto, a facilidade, o prestígio e o poder à custa de gastar dinheiro em subornos e de colaborar estreitamente com os senhores de seu país. A família de Anás tinha uma fortuna imensa e um por um tinham participado de intrigas e subornos para chegar a ocupar seus cargos; enquanto isso Anás mantinha seu poder por trás de todos eles.

Até a forma em que Anás juntou sua fortuna deve ter sido vergonhosa. No Pátio dos gentios havia vendedores das vítimas para o sacrifício. Eram os mesmos vendedores que Jesus expulsou do templo. Não eram comerciantes e sim chantagistas. Cada vítima que se oferecia no templo devia estar limpa de toda mancha ou defeito. Havia inspetores que controlavam tudo isto. Se fosse comprada uma vítima fora do templo era preciso inspecioná-la e examiná-la e sem dúvida alguma seria encontrado algum defeito. Recomendava-se ao fiel que comprasse nos postos do templo onde se vendiam vítimas que já tinham passado pelo exame dos sacerdotes e não corriam o risco de ser rechaçadas. Isso teria sido conveniente e útil exceto por um detalhe. Fora do templo um casa de campo de pombas custaria 22,50 dólares e dentro do templo seu preço ascendia a 37,50 dólares. Todo o comércio do templo era uma exploração declarada e os negócios onde se vendiam os animais se chamavam as Lojas de Anás. Pertenciam à família de Anás. Este tinha conseguido sua fortuna mediante a exploração de fiéis que foram oferecer sacrifícios sagrados. Os próprios judeus odiavam essa família. Uma passagem do Talmud diz: "Maldita seja a casa de Anás. Maldito seja seu assobio de serpente. São sumos sacerdotes; seus filhos cuidam o tesouro, seus genros são os guardas do templo e seus servos golpeiam às pessoas com paus". Anás e toda sua família eram muito conhecidos.

Agora compreendemos por que Anás dispôs as coisas de maneira que Jesus tivesse que comparecer perante ele em primeiro lugar. Jesus era o homem que atacou seus interesses financeiros, varreu do templo os vendedores de animais e feriu Anás num lugar doloroso: seu bolso e suas enormes economias. Anás queria ser o primeiro em desfrutar da captura, da derrota e da humilhação deste galileu perturbador.

O juízo perante Anás foi uma trapaça à justiça. Uma norma essencial da Lei judia estabelecia que não se podia fazer ao prisioneiro nenhuma pergunta que ao responder o fizesse reconhecer-s culpado. Maimonides, o grande erudito judeu, estabelece-o assim: "Nossa verdadeira Lei não impõe a pena de morte ao pecador por sua própria confissão". Anás violou os princípios da justiça judia ao interrogar a
Jesus. Jesus recordou justamente isso a Anás. “Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que lhes falei”. Jesus dizia, em realidade: "Recolhe o testemunho a respeito de mim como o manda a Lei. Interroga às testemunhas, coisa que tem todo o direito de fazer. Não me interrogue pois não tem direito de fazer algo semelhante".

Quando Jesus disse isso, um dos oficiais lhe deu uma bofetada. Disse: "Acaso quer ensinar ao sumo sacerdote como conduzir um juízo?" A resposta de Jesus foi: "Se houver dito ou ensinado algo ilegal, terá que chamar testemunhas. Só citei a Lei. Por que me fere, então?" Jesus jamais esperou justiça. Tinha tocado o interesse pessoal de Anás e seus colegas e estava condenado antes de passar pelo juízo. Quando alguém empreendeu um mau caminho a única coisa que quer é eliminar a qualquer que se lhe opõe. Não pode fazê-lo por meios justos, portanto, está obrigado a fazê-lo por meios injustos. Qualquer argumento que requer injustiças e bofetadas demonstra que não é válido. 


O HERÓI E O COVARDE
Estudo sobre João 18:15-18, 25-27

Quando os outros discípulos abandonaram a Jesus e escaparam Pedro se negou a segui-los. Seguiu a Jesus inclusive depois de seu arresto porque não podia suportar a idéia de separar-se dEle. De maneira que chegou até a casa de Caifás, o sumo sacerdote. Estava com outro discípulo que tinha direito a entrar na casa do sumo sacerdote porque o conhecia. Elaboraram-se muitas especulações a respeito da identidade deste discípulo pois o seu nome não aparece e não se sabe com certeza quem era. Alguns pensam que se trata de algum discípulo desconhecido cujo nome não poderemos saber jamais. Alguns o relacionam, como é natural, com Nicodemos ou José de Arimatéia. Ambos eram membros do Sinédrio e devem ter conhecido muito bem ao sacerdote.

Fez-se uma sugestão muito interessante. Afirmou-se que o discípulo que não se nomeia era Judas Iscariotes. Judas deve ter tido que entrar e sair várias vezes para acertar a traição e o devem ter conhecido tanto o servo que abria a porta como o próprio sumo sacerdote. O que parece invalidar a teoria é que depois da cena no jardim, quando Judas chegou com os soldados e os oficiais, deve ter ficado bem clara sua participação na traição. É quase incrível pensar que Pedro pode ter sequer falado com Ele depois de sua ação. A interpretação tradicional sempre afirmou que o discípulo a quem não se nomeia é o próprio João. A tradição é tão poderosa que é difícil deixar de lado. Mas, neste caso, expõe-se a pergunta, Como João da Galiléia pode ter sido um conhecido, aparentemente íntimo, do sumo sacerdote?

Sugeriram-se duas coisas para explicar esta relação entre João e a casa do sumo sacerdote.

(a) Em épocas posteriores um autor chamado Polícrates escreveu sobre o Quarto Evangelho e seu autor e sobre o discípulo amado. Polícrates jamais duvidou de que João escreveu o Quarto Evangelho e que foi o discípulo amado mas diz algo muito curioso sobre ele. Diz que, por nascimento, João era sacerdote e que vestia o pétala que era a franja dourada estreita, ou ziz, onde estavam escritas as palavras "Santidade ao Senhor" que o sumo sacerdote levava sobre a fronte. Se isto for certo, João pertencia à família e à casa do sumo sacerdote. Entretanto, é-nos difícil crer que João pertença à linha sacerdotal pois os Evangelhos nos indicam com toda clareza que era um pescador da Galiléia,

(b) A segunda explicação é mais fácil de aceitar. É evidente que o pai de João deve ter tido um comércio pesqueiro florescente pois podia permitir-se tomar servos pagamentos (Marcos 1:20). Uma das grandes indústrias da Galiléia era a do peixe salgado. Nesses tempos, o peixe fresco era um grande luxo porque não havia forma de transportá-lo para que conservasse sua frescura. Mas, por outro lado, o peixe salgado era um elemento essencial da dieta. Supõe-se que o pai de João estava na indústria do peixe salgado e que abastecia a casa do sumo sacerdote. Se era assim, o sumo sacerdote e seus servos conheciam João pois mais de uma vez teria levado peixe. Nesse caso, João assistiria de maneira regular à casa do sumo sacerdote. Acontece que certas lendas apóiam esta teoria.

H. V. Morton nos conta que até o dia de hoje há um pequeno edifício nas ruas laterais de Jerusalém que na atualidade é uma confeitaria árabe. Dentro há algumas pedras e arcos que formavam parte de uma Igreja cristã muito primitiva. Os franciscanos crêem que essa velha igreja estava no lugar que ocupava a casa de Zebedeu, o pai de João. A família, sempre segundo os franciscanos, eram comerciantes de peixe na Galiléia com uma sucursal em Jerusalém e abasteciam a casa do Caifás, o sumo sacerdote, com peixe salgado. Essa era a razão pela qual João podia entrar na casa do sumo sacerdote.

Sejam como forem todos estes detalhes, Pedro entrou no pátio da casa do sumo sacerdote e ali negou a seu Senhor três vezes. Há algo muito interessante sobre o canto do galo. Jesus havia dito que Pedro o negaria três vezes antes do cantar do galo. Agora, isso apresenta algumas dificuldades. Segundo a Lei ritual judia era ilegal ter galos na cidade santa mas não podemos assegurar que todos obedeciam essa Lei. Por outro lado, jamais se pode estar seguro de que o galo cantará. Não obstante, os romanos tinham um costume militar. A noite se dividia em quatro guardas: 18 a 21, 21 a 24, 24 a 3 e 3 a 6. Depois do terceiro guarda se trocavam os soldados de volta e para o assinalar se tocava a trombeta às três da manhã. Esse toque se chamava gallicinium em latim e alektorophonia em grego. Ambos os termos significam canto do galo. Pode ser que Jesus haja dito a Pedro: "Antes que a trombeta toque o canto do galo, você me negará três vezes". Todos os habitantes de Jerusalém devem ter conhecido o toque de trombeta das três da manhã. Essa noite ressonou por toda a cidade e Pedro se lembrou das palavras do Senhor.


O HERÓI E O COVARDE
Estudo sobre João 18:15-18, 25-27 (continuação)

De modo que no pátio da casa do sumo sacerdote Pedro negou a seu Senhor. Nunca se tratou a ninguém de maneira mais injusta do que o fizeram os comentaristas e pregadores com Pedro. O que sempre se acentua neste relato é o fracasso e a vergonha de Pedro. Entretanto, devemos lembrar algumas coisas.

(1) Devemos lembrar que todos os outros discípulos, com exceção de João, se ele for o discípulo a quem não se nomeia, tinham abandonado a Jesus e fugiram. Todos, exceto Pedro, foram embora. Pensemos no que fez Pedro. Foi o único que desembainhou a espada diante de um inimigo muito mais poderoso no jardim, foi o único que seguiu até ver o final.

Era o único valente. A primeira coisa que devemos lembrar ao pensar em Pedro não é seu fracasso mas a coragem que o manteve perto de Jesus quando todos os outros foram embora. O tremendo a respeito de Pedro é que seu fracasso só pôde ocorrer a alguém que tinha uma coragem imensa. É certo que Pedro fracassou mas o fez em uma situação que nenhum dos outros discípulos se animou a enfrentar. Não fracassou porque era um homem covarde mas sim porque era valente.

(2) Devemos lembrar quanto amava Pedro a Jesus. Seu amor era o único que tinha passado a prova. Outros tinham abandonado a Jesus; Pedro foi o único que permaneceu a seu lado. Pedro amava tanto a Jesus que não podia deixá-lo. É certo que falhou, mas o fez em uma situação a qual só podia chegar quem amava fielmente a Jesus.

(3) Devemos lembrar como Pedro se redimiu. As coisas não lhe devem ter sido fáceis. O relato de sua negação se difundiria com celeridade porque as pessoas gostam de contar coisas maliciosas. Pode acontecer, como sustenta a lenda, que as pessoas tenham imitado o canto do galo quando Pedro passava. Mas Pedro teve a coragem e a força de vontade de redimir-se, de partir de seu fracasso e tender rumo à verdadeira grandeza.

O essencial é que foi o Pedro autêntico quem afirmou sua lealdade no cenáculo; foi o Pedro genuíno quem desembainhou a espada solitária no jardim, à luz da Lua; foi o verdadeiro Pedro quem seguiu a Jesus porque não podia tolerar a idéia de deixá-lo sozinho; não foi o Pedro autêntico quem perdeu a coragem sob a tensão do momento e negou a seu Senhor. E isso era justamente o que Jesus podia ver.

O tremendo a respeito de Jesus é que sob todos nossos fracassos vê o homem verdadeiro. Jesus compreende. Ama-nos apesar do que fazemos porque não nos ama pelo que somos mas sim pelo que podemos chegar a ser. O amor perdoador de Jesus é tão imenso que vê nossa verdadeira personalidade não em nossa infidelidade mas em nossa lealdade, não em nosso fracasso diante do pecado mas em nossa tensão rumo à bondade, inclusive quando estamos vencidos.


JESUS PERANTE PILATOS; OS JUDEUS
Estudo sobre João 18:28-40

Este é o relato mais dramático do juízo de Jesus no Novo Testamento. Se o cortássemos em pequenas seções perderíamos seu pateticismo. É uma passagem que terá que ler como um tudo. Uma vez lido empregaremos vários dias para estudá-lo. O drama da passagem radica no choque e a inter-relação entre as personalidades. De maneira que a melhor forma de estudar esta parte não será seção por seção mas em função das pessoas que intervêm nele.

Começaremos por analisar os judeus. Na época de Jesus os judeus estavam submetidos aos romanos. Estes lhes permitiam exercer uma boa medida de auto-governo mas não tinham direito de aplicar a pena de morte. A iuz gladii, o direito da espada — era assim chamado — pertencia aos romanos. O Talmud testemunha: "Quarenta anos antes da destruição do templo foi tirado de Israel o julgamento em assuntos de vida ou morte." O primeiro governador romano da Palestina se chamava Coponio e ao mencionar sua designação Josefo diz que o enviou como procurador "com poder sobre a vida e a morte conferido por César" (Josefo, Guerras dos judeus, 2, 8, 1). Josefo fala de certo sacerdote, chamado Anano, que se propôs matar alguns de seus inimigos. Outros judeus mais prudentes protestaram contra sua decisão sobre a base de que não tinha direito de determinar essa pena nem de levá-la a cabo. Não permitiu cumprir com sua decisão e o destituiu de seu cargo pelo simples fato de tê-la pensado. (Josefo, Antiguidades dos judeus, 20, 9, 1). É certo que, em algumas oportunidades, como aconteceu com Estêvão, os judeus tomaram a Lei em suas próprias mãos. Mas do ponto de vista legal e oficial não tinham direito de infligir a pena de morte a ninguém. Essa é a razão pela qual tiveram que levar Jesus perante Pilatos antes de poder crucificá-lo.

Se os próprios judeus pudessem aplicar a sentença de morte o teriam apedrejado. A Lei o estabelece assim: “Aquele que blasfemar o nome do SENHOR será morto; toda a congregação o apedrejará” (Levítico 24:16). Nesse caso, a testemunha que demonstrou a existência do crime devia ser o primeiro em lançar as pedras. “A mão das testemunhas será a primeira contra ele, para matá-lo; e, depois, a mão de todo o povo” (Deuteronômio 17:7). Esse é o sentido do versículo 32. Ali se diz que tudo isto acontecia para que se cumprisse o ensino que Jesus repartiu dando a entender de que morte ia morrer. Jesus tinha dito que se Ele fosse levantado da terra, quer dizer, se fosse crucificado, atrairia a todos os homens (João 12:32). Se essa profecia tinha que cumprir-se, Jesus devia ser crucificado, não apedrejado. De maneira que, inclusive além do fato de a lei romana não permitir aos judeus aplicar a pena de morte, Jesus devia morrer com uma morte romana porque devia ser levantado.

De principio a fim, os judeus tentavam usar a Pilatos para seus próprios fins. Eles não podiam matar a Jesus, de maneira que tinham decidido que os romanos o fizessem.


JESUS PERANTE PILATOS; OS JUDEUS
Estudo sobre João 18:28-40 (continuação)

Entretanto, há mais elementos a respeito dos judeus. À medida que lemos este relato notamos certas coisas sobre eles.

(1) Começaram sentindo ódio para com Jesus mas terminaram em uma verdadeira histeria de ódio. Converteram-se em uma multidão enlouquecida, vociferante, gritando como lobos com as caras decompostas pelo ódio: "Crucifica-o! Crucifica-o!" No fim, os judeus alcançaram tal loucura em seu ódio que eram impermeáveis à razão e a misericórdia e até ao humanitarismo mais simples. Não há nada neste mundo que torça tanto o juízo de alguém como o ódio. É uma espécie de loucura. Uma vez que alguém se entrega ao ódio já não pode pensar, ver ou escutar sem distorções. É algo tão tremendo porque anula os sentidos do homem.

(2) O ódio dos judeus os fez perder todo sentido da proporção. Eram tão cuidadosos do ritual e da pureza cerimoniosa que não estavam dispostos a entrar nos quartéis de Pilatos e, entretanto, estavam muito ocupados em fazer todo o possível para crucificar o Filho de Deus. Para comer a páscoa o judeu devia estar cerimonialmente limpo. Se tivessem ingressado nos quartéis de Pilatos teriam ficado impuros em um duplo sentido. Em primeiro lugar, a Lei dos escribas dizia: "As casas dos gentios são impuras."

Em segundo lugar, a páscoa era a festa do pão sem levedar. Parte da preparação para essa festa era a busca cerimonial de levedura: fazia-se desaparecer cada partícula de levedura que havia nas casas. A levedura era o símbolo do mal e devia desaparecer de todas as casas. Se entravam na casa de Pilatos significava que ingressavam em um lugar onde podia haver levedura. Fazer algo semelhante quando estava sendo preparada a páscoa significava ficar impuro. Inclusive se o fizessem, teriam entrado na casa de um gentio onde podia haver levedura, ficavam impuros até o entardecer quando poderiam ter passado por um banho cerimonioso e se purificaram.

Agora, vejamos o que os judeus faziam. Cumpriam cada detalhe da Lei cerimonial com o maior cuidado e ao mesmo tempo empurravam rumo à cruz ao Filho de Deus que era a encarnação do amor. Esse é o tipo de coisas que sempre estão inclinados a fazer os homens. Há mais de um membro da Igreja que se preocupa com as pequenezas mais absolutas e entretanto todos os dias desobedece a lei do amor, do perdão e do serviço. Inclusive há muitas Igrejas onde se cuida com minuciosidade cada detalhe da vestimenta, dos móveis, do ritual e da cerimônia mas o espírito do amor e da comunidade brilham por sua ausência. Uma das coisas mais trágicas do mundo é a maneira em que a mente humana pode perder o sentido da proporção e sua capacidade de dar às coisas o lugar que lhes corresponde.

(3) Os judeus não titubearam em torcer sua acusação contra Jesus. Em seu interrogatório particular formularam a acusação de blasfêmia contra Jesus (Mateus 26:65). Sabiam muito bem que Pilatos não faria nada a partir de semelhante acusação. Diria que se tratava de uma controvérsia religiosa que não lhe incumbia e que podiam resolvê-la sem apelar à sua autoridade. No fim, acusaram a Jesus de rebelião e insurreição política. Acusavam a Jesus de afirmar que era um rei e sabiam que se tratava de uma mentira. O ódio é algo terrível, não vacila em torcer a verdade. Ninguém conta com um argumento válido quando deve sustentá-lo com uma mentira.

(4) A fim de conseguir a morte de Jesus os judeus negaram cada um de seus princípios. O mais surpreendente que disseram nesse dia foi: "Nosso único rei é César." Samuel havia dito ao povo que seu único rei era Deus (1 Samuel 12:12). Quando se ofereceu a coroa a Gideão, sua resposta foi: “Não dominarei sobre vós, nem tampouco meu filho dominará sobre vós; o SENHOR vos dominará” (Juízes 8:23). Quando os romanos chegaram a Palestina pela primeira vez tinham feito um censo para determinar os impostos que o povo podia pagar. E se produziu uma rebelião sangrenta porque os judeus insistiam que seu único rei era Deus e que só a Ele pagariam tributo. Quando o líder judeu disse: "Nosso único rei é César" deu as costas a toda a história de seu povo da forma mais surpreendente. A afirmação deve ter deixado sem fôlego a Pilatos que provavelmente os olhou com expressão de surpresa e diversão cínica ao mesmo tempo. Os judeus estavam dispostos a abandonar todos os seus princípios para eliminar a Jesus.

É uma imagem tremenda. O ódio dos judeus os converteu em uma multidão de fanáticos enlouquecidos e vociferantes. Esqueceram toda misericórdia, todo sentido da proporção, toda justiça, todos os seus princípios e até a Deus. Nunca se viu com tanta clareza a loucura do ódio.


JESUS PERANTE PILATOS; PILATOS O GOVERNADOR
Estudo sobre João 18:28-40 (continuação)

Agora vejamos o segundo personagem deste relato: Pilatos. Ao longo de todo o juízo a conduta de Pilatos é quase incompreensível. É muito evidente, não poderia ser mais claro, que Pilatos sabia que as acusações dos judeus eram uma série de mentiras e que Jesus era absolutamente inocente, que estava profundamente impressionado por Ele e que não desejava condená-lo à morte. Entretanto, ele o fez. Em primeiro lugar negou-se a tomar o caso em suas mãos; logo tentou libertar Jesus dizendo que sempre se deixava em liberdade a um criminoso para páscoa. Logo tentou ficar em paz com os judeus ao açoitar a Jesus e por último faz o chamado final. Mas se negou a ser forte e dizer aos judeus que não queria ter nada que ver com suas maquinações más. Jamais poderemos sequer começar a compreender a Pilatos se não entendermos seu historia. Nós a encontramos nos escritos do Josefo e nos de Filo.

Para entender a parte que desempenhou Pilatos neste drama devemos nos remontar muito atrás. Para começar, que fazia um governador romano na Judéia?

No ano 4 a.C. Herodes o Grande morreu. Herodes tinha sido rei de toda a Palestina. Apesar de todos seus defeitos, em mais de um sentido foi um bom rei e manteve muito boas relações com os romanos. No testamento, dividiu seu reino entre três de seus filhos. Antipas recebeu Galiléia e Peréia; Filipe recebeu Batanea, Auranitis e Traconites, as regiões selvagens e desertas do nordeste. Arquelau, que à maturação contava só dezoito anos, recebeu Iduméia, Judéia e Samaria. Os romanos aceitaram esta distribuição do reino e a ratificaram. Antipas e Filipe governavam bem e sem escândalos mas Arquelau se comportava como um tirano que extorquia até tal ponto que os mesmos judeus pediram aos romanos que o destituíssem e nomeassem um governador. O mais provável era que pretendessem ser incorporados à numerosa província de Síria. Como esta província era tão populosa o mais provável era que tivessem podido continuar os seus costumes. As províncias romanas se dividiam em duas classes. As que requeriam que houvesse tropas apostadas estavam sob o controle direto do imperador e eram províncias imperiais. As que não requeriam tropas, eram pacíficas e careciam de problemas sérios, estavam controladas pelo senado e eram províncias senatoriais.

Agora, a Palestina, como é evidente, era uma região rebelde. Precisava de tropas e portanto estava controlada pelo imperador. As províncias muito grandes estavam governadas por um procônsul ou um delegado; esse era o caso da Síria. As províncias mais pequenas, pertencentes à segunda categoria, estavam governadas por um procurador. Este controlava toda a administração militar e judicial da província. Visitava cada parte da província pelo menos uma vez ao ano e ouvia os problemas e as queixas. Fiscalizava a coleta de impostos mas não tinha autoridade para aumentá-los. Recebia um salário do tesouro e tinha estritamente proibido receber presentes ou subornos. Se fosse
excessivo em seus deveres, os habitantes de sua província podiam denunciá-lo ao imperador.

Augusto designou um procurador para controlar os problemas da Palestina e o primeiro deles foi acusado no ano 6 D.C. Pilatos assumiu sua funções no ano 26 d C. e permaneceu em seu povo até o 35. Palestina era um fervilhar de problemas, requeria uma mão firme, forte e sábia. Não conhecemos a história anterior de Pilatos mas deve ter tido fama de bom administrador porque do contrário jamais lhe tivessem atribuído a responsabilidade de governar a Palestina. Era necessário manter essa região em ordem pois, como se pode ver no mapa, era a ponte entre o Egito e Síria.

Entretanto, como governador Pilatos foi um fracasso. Parecia partir de um desprezo e uma falta de simpatia absolutos para com os judeus. Três incidentes famosos marcaram sua carreira. O primeiro ocorreu durante sua primeira visita a Jerusalém. Esta não era a capital da província. Os quartéis gerais da província estavam em Cesaréia. Mas o procurador fazia muitas visitas a Jerusalém e nessas ocasiões ficava no palácio dos Herodes na parte ocidental da cidade. Quando o procurador chegava a Jerusalém sempre o fazia em companhia de um destacamento de soldados. Estes tinham um estandarte em cuja ponta havia um pequeno busto de metal do imperador em volta. O imperador era um deus e para os judeus esse pequeno busto era uma imagem. Todos os governadores romanos anteriores, em sinal de respeito para com os escrúpulos religiosos dos judeus, faziam tirar a imagem antes de entrar na cidade. Pilatos se negou a fazê-lo. Os judeus lhe rogaram que o fizesse. Pilatos se indignou, não daria alento às superstições dos judeus. Voltou para Cesaréia. Os judeus o seguiram. Pisaram os seus calcanhares durante cinco dias. Eram humildes mas decididos em seus pedidos. Por
último, disse-lhes que o encontrassem no anfiteatro. Uma vez ali, os fez rodear por soldados armados e lhes disse que se não cessavam em seus requerimentos os mataria ali mesmo. Os judeus puseram seus pescoços à vista e ordenaram aos soldados que os matassem. Nem sequer Pilatos podia massacrar a homens indefesos. Ficou derrotado, teve que claudicar, viu-se obrigado a admitir que a partir desse momento se deviam tirar as imagens dos estandartes. Assim foi como começou Pilatos: foi um mau começo.

O segundo incidente foi este: a provisão de água de Jerusalém era inadequada. Pilatos se propôs construir um aqueduto novo. De onde proviria o dinheiro? Arrasou com o tesouro do templo. Havia milhões no tesouro. É muito pouco provável que tenha tomado o dinheiro depositado para os sacrifícios e o culto do templo. O mais factível é que tenha tomado o dinheiro chamado Corbã e que provinha de fontes que faziam impossível empregá-lo para o serviço sagrado. O aqueduto de Pilatos era muito necessário; valia a pena fazê-lo; a provisão de água inclusive beneficiaria o templo que precisava de uma boa medida de limpeza em razão de seus contínuos sacrifícios. Não obstante, o povo resistiu; rebelaram-se e saíram às ruas. Pilatos misturou seus soldados entre a multidão vestidos de civil e com armas escondidas entre a roupa. Diante de um sinal predeterminado, os soldados atacaram a multidão e muitos judeus morreram espancados ou esfaqueados. Mais uma vez Pilatos se
converteu em uma figura antipopular e corria perigo de ser denunciado ao imperador.

O terceiro incidente foi pior até para Pilatos. Como já vimos, quando ia a Jerusalém ficava no antigo palácio do Herodes. Mandou fazer certos escudos e lhes fez inscrever o nome de Tibério, o imperador. Tratava-se de escudos votivos. Agora, o imperador era um deus; aqui estava o nome de um deus estranho inscrito e desdobrado para que o reverenciassem na cidade santa. O povo gente se exaltou; os homens mais importantes, inclusive aqueles que os apoiavam com maior afinco, rogaram a Pilatos que os tirasse. Pilatos não quis fazê-lo. Os judeus denunciaram o assunto a Tibério e este ordenou a Pilatos que tirasse os escudos. 

É importante destacar como terminou Pilatos. Este último incidente ocorreu depois da crucificação de Jesus no ano 35 D.C. Houve uma rebelião em Samaria. Não foi muito séria. Pilatos a sufocou com uma ferocidade sádica e com uma quantidade de execuções. Os samaritanos sempre foram considerados cidadãos leais a Roma. O delegado de Síria interveio. Tibério mandou Pilatos retornar a Roma. Quando este estava a caminho, Tibério morreu. Segundo a informação que temos Pilatos nunca foi a juízo e a partir desse momento desaparece da história. 

Agora fica claro por que Pilatos agiu como o fez. Os judeus o chantagearam para que crucificasse a Jesus. Disseram-lhe: "Se você deixar em liberdade a este homem você não é amigo de César." O que
lhe diziam era o seguinte: "Sua atuação não é muito boa. Já o denunciaram uma vez. Se você não agradar nosso pedido voltaremos a denunciar você ao imperador e o destituirão." Nesse dia, em Jerusalém, o passado de Pilatos se apresentou perante seus olhos e o atormentou.

Pilatos foi chantageado para que aceitasse a morte de Jesus porque seus enganos anteriores faziam impossível desafiar os judeus e conservar seu posto. De algum modo, não podemos deixar de compadecê-lo. Queria fazer o correto mas não teve a coragem de desafiar os judeus. Pilatos crucificou a Jesus para manter seu posto.


JESUS PERANTE PILATOS; A ATUAÇÃO DE PILATOS
Estudo sobre João 18:28-40 (continuação)

Vimos a história de Pilatos, vejamos agora sua conduta durante o juízo a Jesus. Pilatos não queria condená-lo porque sabia que Jesus era inocente. Entretanto, viu-se apanhado por seu próprio passado. O que foi, então, o que Pilatos quis fazer e o que fez de fato?

(1) Começou procurou delegar a responsabilidade. Disse aos judeus: "Tomem este homem e julguem segundo suas leis." Tentou fugir da responsabilidade de ocupar-se de Jesus. Isso é justamente algo que ninguém pode fazer. Ninguém pode ocupar-se de Jesus em nosso nome, devemos fazê-lo nós mesmos.

(2) Pilatos passou a buscar uma via de escape do labirinto no qual se encontrava. Apelar ao costume pela qual se liberava um prisioneiro na páscoa para deixar livre a Jesus. Tentou evitar o confronto direto com Jesus. Mais uma vez, isso é algo que ninguém pode fazer. Não há forma de escapar a uma decisão pessoal com respeito a Jesus. Somos nós mesmos aqueles que devemos decidir o que faremos com Ele, se o aceitaremos ou o rechaçaremos.

(3) Pilatos passou logo a ver o que podia fazer com uma claudicação parcial. Ordenou que açoitassem a Jesus. Pilatos deve ter pensado que os açoites satisfariam ou, ao menos, suavizariam a hostilidade dos judeus. Sentia que possivelmente poderia evitar pronunciar o veredicto da cruz ao dar a ordem de açoitá-lo. Isto também é algo impossível. Ninguém pode andar com meias tintas com Jesus; ninguém pode servir a dois amos. Estamos a favor ou em contra e não há via intermediária.

(4) Pilatos tentou ver o que podia obter com um chamado à reflexão. Levou a Jesus destroçado pelos açoites e o mostrou às pessoas. Perguntou-lhes: "Querem que crucifique a seu rei?" Tentou derrubar o
peso da balança mediante este chamado à misericórdia e à piedade. Mas ninguém pode pretender que a apelação a outros substitua a decisão pessoal. Pilatos devia tomar sua própria decisão em lugar de tentar que a multidão tomasse por ele. Ninguém pode evadir esse veredicto pessoal e essa decisão com respeito a Jesus Cristo.

De maneira que, por último, Pilatos reconheceu seu derrota. Abandonou a Jesus nas mãos da multidão porque não teve a coragem necessária para tomar a decisão correta e fazer o que correspondia. Não obstante, há mais elementos a respeito de Pilatos.

(1) Vislumbra-se a atitude essencial de cinismo que o caracterizava. Perguntou a Jesus se era um rei. Jesus perguntou se o dizia em virtude do que ele mesmo tinha descoberto ou sobre a base da informação que tinha recebido de maneira indireta. A resposta de Pilatos é: "Acaso sou judeu? Como pretende que saiba algo dos assuntos dos judeus?" Pilatos era muito orgulhoso para misturar-se no que ele considerava superstições e rixas judias. E era esse mesmo orgulho que o convertia em um péssimo governador. Ninguém pode governar um povo se não fizer um esforço para compreendê-lo e entrar em suas mentes e idéias.

(2) Há uma espécie de curiosidade supersticiosa em Pilatos. Queria saber de onde vinha Jesus: ao perguntá-lo estava pensando em algo mais que sua cidade natal. Quando escutou que Jesus tinha afirmado que era o Filho de Deus se sentiu ainda mais perturbado. Pilatos era supersticioso antes que religioso. Temia que houvesse algo de verdade em todas essas afirmações. Tinha medo de tomar uma decisão que favorecesse a Jesus porque temia os judeus. Sentia o mesmo temor de decidir contra Jesus porque guardava uma leve suspeita que Deus estava metido em todo esse assunto. Pilatos não tinha coragem nem para desafiar os homens nem para reconhecer a Deus.

(3) Mas no coração de Pilatos havia um desejo profundo. Quando Jesus disse que tinha vindo para dar testemunho da verdade, a resposta de Pilatos é: "O que é a verdade?" Essa pergunta se pode formular de muitas maneiras. Pode-se fazê-la com um tom cínico e zombador. Bacon imortalizou a resposta de Pilatos quando escreveu: "O que é a verdade?" disse jocoso Pilatos, e não quis ficar para ouvir a resposta." Pilatos não formulou essa pergunta com um humor cínico; tampouco é a pergunta de alguém que não se importa com a resposta. Aqui vemos a greta na armadura de Pilatos. Formula a pergunta com desejo e cansaço. Segundo os valores do mundo, Pilatos era um homem que tinha triunfado. Tinha chegado quase à cúpula do serviço civil romano; era governador de uma das províncias do Império; mas faltava algo. Perante este humilde, perturbador e odiado galileu Pilatos sentiu que a verdade, para ele, continuava sendo um mistério; e que ficou em uma posição que fazia impossível descobri-la. Pode ser que Pilatos escarneceu, mas era a zombaria do desespero.

Em algum lugar, Philip Gibbs relata que ouviu um debate entre T. S. Eliot, Margaret Irwin, C. Day Lewis e outros personagens de renome sobre o tema: "Merece a tristeza viver esta vida?" "É certo que faziam piadas", escreve, "mas o faziam como bufões que golpeiam contra a porta da morte."

O mesmo acontecia com Pilatos. Jesus entrou em sua vida e nesse instante descobriu quanto tinha perdido. Nesse dia pôde ter encontrado todo aquilo que tinha perdido mas não teve a coragem de desafiar o mundo apesar de seu passado e se posicionar junto a Cristo assegurando um futuro glorioso.


JESUS PERANTE PILATOS; BARRABÁS
Estudo sobre João 18:28-40 (continuação)

Agora consideremos Barrabás. João relata o incidente de Barrabás com muito poucas palavras. Sobre o costume de libertar um prisioneiro na páscoa não sabemos mais que o que nos dizem os Evangelhos. Os outros Evangelhos completam, até certo ponto, a breve imagem que João dá de Barrabás. Depois de reunir toda a informação descobrimos que Barrabás era um prisioneiro muito famoso, que era um criminoso, que participou de uma insurreição na cidade e que tinha cometido um homicídio (Mat. 27:15-26: Mar. 15:6-15; Luc. 23:17-25; Atos 3:14).

O nome Barrabás é interessante. Há duas possibilidades com respeito a sua origem. Pode estar composto por Bar Aba que significaria "filho do pai" ou por Bar Rabban, que significaria "filho do rabino". Não é impossível que Barrabás fosse o filho de algum rabino, o membro de alguma família distinguida que tinha tomado um mau caminho. E pode ser que, apesar de seu caráter criminal, fosse popular entre o povo, como uma espécie do Robin Hood. O que é indubitável é que não devemos vêlo como um simples ladrão, ladrão de carteira ou um detento qualquer.

Era um lestes que significa criminal. Podia ser um desses criminosos belicosos que assolavam a estrada do Jericó, o tipo de homem em cujas mãos caiu o viajante da parábola, ou, o que é mais provável, era um dos zelotes que tinham jurado libertar a Palestina dos romanos, embora isso significasse cometer infinidade de crimes, roubos e assassinatos.

Barrabás não era um criminoso qualquer. Podia ser um homem violento mas sua violência tinha uma auréola romântica e podia muito bem convertê-lo no herói da multidão e no desespero da Lei ao mesmo tempo. Entretanto, há outro elemento interessante a respeito de seu nome. Barrabás não é, por certo, um nome cristão; é o segundo nome. Barrabás deve ter tido outro nome, tal como Pedro se chamava Simão bar Jonas, Simão, filho de Jonas. Há certos antigos manuscritos gregos e certas traduções siríacas e armênias do Novo Testamento que afirmam que o outro nome de Barrabás é Jesus. Não se trata de algo impossível porque naqueles tempos Jesus era um nome muito comum pois é uma versão grega do Josué. Se era assim, a opção da multidão aparece como um pouco mais dramática ainda, pois exclamariam: "Não a Jesus nazareno mas a Jesus Barrabás."

A escolha da multidão foi a opção de todos os tempos. Barrabás era o homem forte, o homem sanguinário, alguém que escolhia chegar a seu objetivo pelo caminho da violência. Jesus era o homem do amor e a suavidade, que não queria saber da força e cujo reino estava nos corações dos homens. O fato trágico da história é que ao longo dos séculos os homens escolheram o caminho de Barrabás e rechaçaram o de Jesus. Ninguém sabe o que aconteceu com Barrabás. Em um de seus livros, João Oxenham traça uma biografia imaginária. A princípio Barrabás só podia pensar em sua liberdade mas logo começou a olhar ao homem que morreu e que podia ter vivido. Havia algo em Jesus que lhe era fascinante e o seguiu até o fim. Quando o viu carregando a cruz, um pensamento iluminou sua mente: "Eu deveria carregar essa cruz em lugar dele, ele me salvou." E ao ver Jesus no Calvário, a única coisa que podia pensar era: "Eu deveria estar pendurado ali, ele não, ele me salvou." Pode que seja assim, pode que não, mas sem dúvida alguma Barrabás foi um dos pecadores por cuja salvação morreu Jesus.