Escatologia do Evangelho de João
Escatologia do Evangelho de João
O problema da escatologia neste Evangelho tem envolvido muito debate. Muitos estudiosos colocaram seu ensino em antítese ao tipo de escatologia apocalíptica encontrada nos Evangelhos sinóticos. Isso se deve principalmente à crença de que João está em dívida com a maneira helenista de pensar, ao passo que os sinóticos foram mais influenciados pelos conceitos judaicos. A ênfase no pano de fundo helenista deste Evangelho diminuiu um pouco como resultado da descoberta dos MSS, por causa de seu testemunho sobre o sincretismo dos conceitos judaicos e gregos no Judaísmo não conformista. Certamente uma avaliação correta do pano de fundo é essencial para uma verdadeira apreciação da escatologia de João. É certo que nenhuma avaliação verdadeira pode vir por meio de fortes antíteses. Existe evidência suficiente para demonstrar que o ensino semelhante a escatologia sinóptica não está ausente em João, como o estudo a seguir demonstrará.
Antes da consideração da evidência, seria de bom tom indicar as diversas escolas de interpretação. Algumas (e.g., Bultmann, Dodd) se concentram na escatologia realizada e rejeitam inteiramente os elementos futurísticos, quer recorrendo à tese de acréscimos editoriais (como Bultmann) quer explicando os textos futurísticos (como Dodd). Embora suas interpretações sobre o que significa escatologia realizada sejam bem diferentes, ambos concordam que a escatologia tem a ver com o presente e não com o futuro. A posição inversa foi adotada por outros que insistem que a escatologia atual não tem sentido a não ser que esteja inseparavelmente relacionada com uma ênfase futura (assim Stãhlin e Correll). Não há dúvida de que esta última abordagem leva mais em conta todos os dados do Evangelho. Dentro desta posição geral existe, é claro, espaço para muitas opiniões diferentes a respeito do relacionamento entre João e os sinóticos sobre a escatologia.
A. Relação com o AT. A firme crença da igreja primitiva de que a vida e o ensino de Jesus são o cumprimento das profecias do AT oferece uma ênfase escatológica. Num sentido as esperanças e promessas do passado são agora “realizadas”. Elas deixaram de ser futuro. No prólogo é visto que isto está implícito na abordagem de João, onde os benefícios recebidos por meio de Cristo, isto é, graça e verdade, são comparados à lei dada por intermédio de Moisés (Jo 1.17). Há considerável ênfase nos ensinos de Jesus sobre Abraão, e a superioridade de Jesus em relação a Abraão é especificamente sugerida (8.53s.). Uma superioridade semelhante em relação a Jacó é evidente (4.5,12; cp. 1.50,51). No que concerne aos padrões do AT, o advento de Jesus era o eschaton (fim), mas, no entanto, uma vez que ele mesmo deu profecias adicionais a respeito da sua parousia (retomo), a consumação final está ainda no futuro.
B. O uso do título "Filho do homem". A principal característica da ocorrência deste título em João é o contexto em que ocorre. E quase tão freqüente como nos sinóticos; nestes é usado às vezes de modo geral, às vezes em relação à paixão de Jesus, e às vezes escatologicamente, enquanto que em João é uniformemente usado no sentido escatológico. Tem a ver com o “levantar” de Jesus, que embora.se refira ao evento da paixão vai além dele, trazendo a ideia de exaltação. O Filho do homem devia ser glorificado. Este é o ápice da sua missão. Nisto está uma ênfase bem diferente daquela encontrada no uso sinótico, onde é usada a imagem apocalíptica; porém a diferença não é uma contradição. João concentra-se mais no estado do que no evento. Para ele a escatologia tem uma importância espiritual.
C. Referências à ressurreição e ao último dia. São registradas as declarações de Jesus com referência ao futuro (Jo 5.25-29). Os mortos devem ouvir a voz do Filho de Deus. O Filho recebeu do Pai autoridade para executar o julgamento. Virá o tempo da ressurreição de alguns para vida e de outros para o julgamento. Estas referências estão no estilo dos apocalipses judaicos (veja The Gospel According to St. John de Bemard, [ 1928], pág. clvi), e não podem ser explicadas em termos de escatologia realizada. Há um caráter final sobre estes conceitos que está completamente fora da conformidade com o presente. Do mesmo modo o tema do último dia é essencialmente futurista (cap. б). No discurso no qual estas referências ocorrem Jesus claramente supõe que seus ouvintes tenham algum entendimento sobre o “último dia”.
D. Referências de tempo no Evangelho. As palavras “hora”, “agora”, “ainda não”, “ainda mais um pouco” e expressões semelhantes, são freqüentes no Evangelho de João e devem ser consideradas como características. Uma dedução a partir delas é que o evento escatológico não é totalmente futuro. Existe um forte elemento presente. Em Cristo, e particularmente na sua morte, a hora “chegou” . Este sentido de perfeição está presente em (12.23), onde Jesus anuncia que sua hora tinha chegado, e (17.1) onde ele relata o início da hora do cumprimento da missão recebida do Pai. A principal característica dessas referências, no entanto, não é cronológica mas teológica. A “hora” de Jesus era decisiva para a história do mundo. Qualquer consumação futura deve, de alguma forma, estar relacionada a esta.
E. O julgamento vindouro. Já foram feitas referências ao julgamento futuro (5.25-28). Outras referências suscitam uma ideia diferente. João 3.19 e 12.31 parecem se referir a um julgamento que já aconteceu; o dominador deste mundo já foi deposto por Jesus. De acordo com C. H. Dodd isto mostra uma reinterpretação conclusiva do conceito escatológico sobre o julgamento. Embora a ação de Jesus em sua paixão demonstre a eficácia da derrota das agências do mal, isto não esgota os ensinos de João sobre o julgamento. O Evangelho não se preocupa, primeiramente, com este tema. Jesus deixa claro que ele veio para salvar, não para julgar o mundo (12.47). Embora a ênfase principal esteja no presente, o julgamento é uma parte indispensável da consumação da era presente.
F. Referências à parousia. No discurso de despedida Jesus se refere a sua segunda vinda em termos tais que deve ser entendida uma parousia futura (14.3,18 “voltarei para vós outros” e 16.16 “outra vez um pouco, e ver-me eis”). Estas declarações não são compreendidas no sentido de uma escatologia futura pelos defensores da escola da escatologia realizada, que as considera como “realizadas” na vinda do Paracleto (assim Dodd). Mas este não é o sentido mais óbvio de passagens como 14.2s., onde uma relação mais íntima entre o ir e o vir novamente parece ser necessária. Pode-se dizer, portanto, que embora seja possível interpretar as palavras no sentido de uma vinda espiritual, é mais natural interpretá-las como referindo-se a um retomo pessoal futuro.
G. O uso do termo "vida eterna". Já foram feitas referências a este conceito quando tratamos dos efeitos da obra de Cristo, mas é necessário notar seu sentido escatológico especial. Já foi observado que ela pode ser considerada como aproximadamente equivalente ao conceito do reino de Deus, pois sugere uma experiência tanto presente quanto futura, e é apropriada pela fé. De acordo com W. F. Howard, “vida eterna” é vida na era vindoura em contraste a vida na era presente. E, portanto, essencialmente futura, mas Dodd a considera como realizada na experiência atual dos crentes. E importante reconhecer sua apropriação presente (cp. Jo 3.16), mas o termo não pode ser esvaziado de um sentido etemo.
H. Sumário da escatologia. Tomando a evidência como um todo, é impossível negar que um aspecto duplo está envolvido. A perspectiva é tanto presente quanto futura. A salvação inclui uma experiência presente e, neste sentido, está realizada, ou, mais corretamente, é um processo contínuo de realização. Eventos futuros específicos como a parousia, a ressurreição e o julgamento apontam para uma consumação vindoura, que introduzirá características que estão além da experiência atual. Até agora nada foi mencionado sobre a escatoiogia das Epístolas de João ou de Apocalipse. Uma característica natural desta literatura é a ocorrência do tema do anticristo. As Epístolas têm poucos dados, com exceção do nome (lJo 2.18,22; 4.3; 2Jo 7). Numa passagem são mencionados anticristos (pl), o que sugere que não se tem em mente um indivíduo em particular. Outras referências são mais específicas (2Jo 7). Sobre este tema nada nas Epístolas de João é tão instrutivo quanto a declaração de Paulo (2Ts 2). Em Apocalipse existem várias descrições dos poderes do mal, e p leitor toma-se claramente consciente de que o tema principal do livro é o conflito espiritual e a derrota final dos poderes malignos. Termos como a besta, o grande dragão, uma outra besta e descrições semelhantes têm a intenção de transmitir a impressão de hostilidade altamente organizada.
Pode ser rejeitada a teoria de que algum destes sejam uma referência a Nero, pois o conceito de conflito espiritual é característico da literatura de João e a teoria é totalmente desnecessária. Uma vez que todo o mundo está nas mãos do maligno, deve ser esperado um intenso conflito entre o libertador e o usurpador. Porém o Cordeiro obterá a vitória final. A visão da Nova Jerusalém tem a intenção de ilustrar a era de bênçãos que resultará da derrota final do mal. Uma característica escatológica faz distinção entre as Epístolas de João e o Apocalipse — a ausência do elemento apocalíptico. As Epístolas têm muito a dizer sobre a “vida eterna”, como o Evangelho, mas não o Apocalipse. Em 1 João ela é vista como o resultado do testemunho da “palavra da vida” (isto é, Cristo).