Adorar em Espírito e Verdade (João 4.1-26)
Adorar em Espírito e Verdade (João 4.1-26)
Evangelho de João 4.1-26

Ele escolhe ir por Samaria por causa da compulsão divina. Esta cena enfoca uma época de evangelismo e instrução em Samaria, destacando um diálogo entre Jesus e uma mulher. Os discípulos aparecem num papel secundário; eles desempenham o papel de realce no fato de que demonstram uma falta de consciência da missão de Deus feita por Jesus entre os samaritanos. No fim, Jesus os direciona a Samaria como um campo pronto para a colheita. Este evangelismo liga dois temas desta seção: a vida eterna, relacionada com a água viva, e um novo templo. Estes temas entrelaçados faziam parte do primeiro sinal em Caná da Galileia (cf. comentários sobre Jo 2). Este segundo tema explica em parte por que o autor inclui este relato samaritano: O relato permite que ele faça ampliações sobre o tema da implicação de um novo templo, que consiste no Cristo ressurreto e seu corpo de crentes. Visto que todos possuem vida eterna pelo Espírito, Ele habita neles como seu templo.
A província de Samaria achava-se entre a judeia, ao sul, e a Galileia, ao norte. O povo de Samaria tinha uma história de oitocentos anos de tensão racial e religiosa com os judeus. Embora os samaritanos tivessem formação geográfica e étnica mista, eles se consideravam, como os judeus, o verdadeiro Israel, o povo de Deus. As distinções samaritanas emergiram no tempo dos assírios quando, em 722 a.C., no assentamento de Israel em outras terras, povos de outras origens étnicas foram levados à terra de Israel. Destes colonos, desenvolveram-se as diferenças religiosas entre judeus e samaritanos. As tensões aliviaram no último quartel do século I d.C. Isto explica por que João acrescenta a nota parentética no versículo 9. A principal cidade em Samaria também se chamava Samaria, que se situava na colina a noroeste dos montes gêmeos de Gerizim e Ebal. Para chegar a esta cidade vindo do sul, viajava-se a oeste por uma passagem entre estes dois montes. Herodes, o Grande, tinha reconstruído a cidade e rebatizado-a de Sebaste. A tradição da igreja primitiva relaciona João Batista com esta cidade.
Ao sul, no topo do monte Gerizim, jaziam as ruínas do templo samaritano, destruído uns 150 anos antes (cf. a referência ao templo em jo 4.19-21). Sicar (v. 5), o lugar do poço de Jacó, situava-se a leste da passagem no fundo do vale. Não se pode saber se o autor associou Sicar com a antiga cidade de Siquém. Ninguém localizou com certeza a antiga Sicar, e Siquém ficava aproximadamente 180 a 270 metros do poço de Jacó. Túmulos escavados na área testemunham a presença cristã ali no século I. Jesus e seus discípulos chegam ao poço de Jacó à hora sexta, isto é, cerca do meio-dia. Considerando que as mulheres buscavam água nas primeiras ou nas últimas horas do dia, a hora era significativa. Ou João engenhosamente conecta esta hora com a hora da crucificação em joão 19.14 e, assim, com a salvação/vicia eterna, ou com o fato de a samaritana, como prostituta, ser um pária social. Ambas as idéias ajustam-se ao contexto.
Pertinente à ultima possibilidade (veja Jo 4.16-18), a samaritana diz que ela não tem “marido” {aner). Jesus prontamente admite que isto é verdade, porque ela tivera cinco a n e r (ou seja, homens) e está atualmente vivendo com outro a n e r (“marido”, v. 18). Há um óbvio trocadilho no sentido da palavra grega an er. Tanto Je sus quanto os samaritanos são fiéis à autoridade do Pentateuco. Sem dúvida esta mulher está ciente do que o Pentateuco ensina sobre a situação em que ela vive. Jesus a conscientiza de que esta é uma situação adúltera (ou seja, promíscua). Estes versículos não apóiam o fato que estes homens podem ter morrido, cada um por sua vez, e que ela casou com outro depois de cada um morrer. Caso contrário, ela poderia ter legitimamente respondido que o homem com quem ela vivia era seu marido; ela o nega (“Não tenho marido”, v. 17). Assim estes versículos indicam a rota que jesus tomou para convencer a mulher de seus pecados. Também lhe concede a oportunidade de revelar que Ele é realmente o Messias dos samaritanos. João oferece uma breve nota sobre a humanidade de jesus, comentando que a viagem cansou Jesus e fez com que Ele sentisse sede (vv. 6,7). Esta nota também dá a razão de jesus não ter entrado na cidade com os discípulos. Ele se senta ao lado do poço de Jacó (hoje em dia um muro de pedra cerca e tapa o poço).
O poço de Jacó é particularmente destacado nesta passagem, fato que é importante para o tema deste Evangelho. Jacó era figura importante para a religião judaica e samaritana. Ele era um antepassado, um patriarca, um pai fundamental, que servia como fiador das promessas de Deus aos patriarcas. Por causa de sua posição proeminente em ambas as religiões, Jacó era um dos mediadores entre Deus e seu povo na oração, perdão e extensão das promessas do concerto. Os lugares ligados a tais pessoas proeminentes também ancoravam propriedade de porções de terra e as tornavam lugares santos.
O pedido de água que Jesus fez, uma quebra dos costumes sociais da época, dá início ao diálogo com a samaritana. O versículo 9 estabelece o conflito entre judeus e samaritanos (o “gênero” não é a questão tanto quanto é mais tarde no v. 27). O verbo “comunicar-se” no parênteses do versículo 9 só ocorre aqui no Novo Testamento, e é difícil saber sua exata acepção. Temos de derivar seu significado do contexto. Visto que os discípulos tinham ido comprar comida — e não parece ser este o problema — este verbo toma implicações sociais especiais à parte de procedimentos comerciais. Refere-se a um diálogo social particular, como neste ato hospitaleiro de dar substância sustentadora de vida como a água. Ampliar tal ato de generosidade significa aceitar e dar as boas-vindas à pessoa. Com efeito, tal hospitalidade é ampliada e aprofundada na última parte deste capítulo: Jesus, Seus discípulos e os samaritanos se envolvem em tal ato.
Por que o autor chega a mencionar este conflito no versículo 9? Uma explicação é que os leitores de joão não conhecem esta animosidade, de forma que a declaração ajuda a fazer com que a pergunta da mulher faça mais sentido. Outrossim, o significado muda entre os versículos 9 e 10: da água literal da mulher para a água espiritual de jesus; este parêntese contribui para uma transição mais suave. Mas serve para um propósito adicional: ressaltar a divergência étnica, notando as diferenças entre a liderança religiosa judaica e os desprezados samaritanos. Estes líderes rejeitam Jesus, mas os samaritanos o recebem prontamente. João 1.10-13 é ilustrado aqui claramente: Sua própria gente não o recebeu; mas aos que o recebem Ele deu o direito de serem feitos filhos de Deus, não por processo físico, mas espiritual.
A água do poço ficava a uns vinte e sete a trinta metros abaixo da superfície e exigia equipamento adequado para tirá-la. Este fator é uma lembrança sutil das talhas de água vazias dos judeus em jo ã o 2.6-10. Jesus não tem corda nem balde com que tirar a água. Seu pedido para beber suscita a resposta da mulher, a partir da qual Ele chega ao ponto desejado. Quando Jesus diz que Deus tem para ela “água viva”, imediatamente ela percebe a implicação correta: “Es tu maior do que Jacó, o nosso pai”? Isto permite Jesus alargar seu ponto ressaltando a diferença entre a religião samaritana e o que foi ocasionado através do novo dom da vida pelo Espírito. “Água viva” aqui— como em joão, no Antigo Testamento e na literatura judaica — simboliza o Espírito. Em contraste com a água do poço ou a água de uma cisterna, ela dá vida a um país freqüentemente seco (sem vida); de modo semelhante, o Espírito dá vida eterna às pessoas (sem vida) que creem em jesus.
Significativo é o fato de o próprio Jesus dar esta água (ou seja, o Espírito), que produzirá vida eterna. Jesus, que tem vida em si mesmo (cf. Jo 1.4; 5.21) e é a fonte de vida; Dá o Espírito, que por sua vez dá a vida eterna. O Pai e o Filho Jesus dão o Espírito e a vida eterna, função ensinada claramente nos capítulos 14 a 16. Em João 4.14, a doação de vida do Espírito para o crente ocorre em termos figurativos como “uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”. Em jo ã o 7.37-39, onde é destacado Jesus como a fonte desta água, ocorre a expressão figurativa “rios de água viva”.1
Esta mulher tem a mesma condição que Nicodemos tinha no último capítulo. Sem a revelação que a vida eterna traz, ela entende mal o convite de jesus. Ela presume um significado para “água”, e Jesus tem outro. Se ela tivesse nascido de cima, teria tido o tipo certo de natureza para entender o que Jesus como Deus está lhe dizendo (v. 10). Este ponto é ampliado mais adiante (veja comentários sobre os w. 2 1 -2 6 ).
Não é senão no momento em que Jesus revela à mulher o passado e presente particular dela, acerca dos muitos homens que ela conheceu, que ela começa a perceber que alguém diferente está diante dela. Ela o trata três vezes (vv. 11,15,19) com o cortês e respeitoso “senhor”. O último “senhor” no versículo 19 é importante, porque agora ela o reconhece como profeta. Mas nos versículos 24 e 25, ela amplia sua percepção incluindo “Messias (que se chama o Cristo)”. Em resposta, Jesus vai mais longe dizendo: “Eu o sou, eu que falo contigo” (v. 26 ). Esta é a primeira ocorrência da expressão “Eu Sou” (ego eimi) em João — aqui com o predicado ho lalon (“que fala”). Ego eim i é um dos nomes de Javé no Antigo Testamento (cf. Ex 3.14) e sem dúvida contém esta conotação aqui. Também é um dos nomes do Messias em joão; a conexão é clara no versículo 26. Note como Jesus é hesitante em se referir a si como o Messias em contextos judaicos, mas não aqui.
A mudança de direção da conversação é naturalmente entendida quando emerge a formação samaritana. A mulher não desvia Jesus com suas observações. Antes, ela começa a entender, a partir de suas tradições passadas, que alguém que era esperado chegou — e isso é surpresa. As tradições samaritanas esperavam uma figura como Messias. Essa pessoa semelhante a profeta, semelhante a Moisés, podia revelar segredos. Quando ele aparecesse em cena, ele restabeleceria a verdadeira adoração. Essa pessoa era chamada Taebe (semelhante mas não igual ao Messias judaico). Mesmo assim, Jesus também cumpre as expectativas samaritanas. O local do templo samaritano destruído, que aparece em segundo plano no monte Gerizim, serve como fundo de cena apropriado para a discussão reveladora de adoração. À beira da virada do tempo, a adoração deles está a ponto de voltar à vida, mas de um modo novo e inesperado. O lugar e a maneira de adoração estão prestes a mudar.
A hora da vinda de Jesus no versículo 21 é o ponto no qual toda adoração — samaritana e judaica, ainda que a judaica seja a apropriada para agora (cf. v. 22) — é mudada. Se bem que em termos de lugar venha a ser estabelecida na cruz e ressurreição, em Jesus a mudança do fim do tempo já está presente (v. 23: “Mas a hora vem, e agora é”). Esta é uma das muitas ocasiões em que este Evangelho enfatiza o que é chamado escatologia realizada. Quer dizer, junto com o ensinamento sobre a vida que vem com a ressurreição futura (chamada escatologia consistente), a vida eterna chega agora nesta vida na regeneração e presença do Espírito.
O autor deste Evangelho, mais que qualquer outro escritor do Novo Testamento, focaliza o novo nascimento. É sobre esta perspectiva que Jesus fala aqui. A presença de Deus já não estará centralizada num edifício de templo. Antes, Ele morará nos crentes, o novo templo que tem o Espírito. Este ensino é parte do significado do primeiro sinal; estes versículos remontam a João 2.14-22 e são cumpridos em joão 20.19-23, quando Jesus assopra sobre os discípulos e cria a Igreja. Várias interpretações são oferecidas para os versículos 23 e 24. Alguns intérpretes os vêem como base para uma adoração mais espiritual, diferente de um tipo conquistado e ritualista (ou seja, adoração formalística). Esta opinião diz que há uma determinada maneira de adorar, a qual quando não é feita assim, não é a “verdadeira” adoração. A letra “e” minúscula em “espírito” no versículo 23 sugere esta interpretação. Outra interpretação refere-se ao Espírito que tornará a adoração possível depois da crucificação e ressurreição. (Similar diferença de interpretação sobre a palavra “espírito” ocorre no v. 24.) Minha opinião é que com “em espírito e em verdade” temos uma figura de linguagem chamada hendíadis (veja comentários so b rejo 3-3,5). Os dois substantivos devem ser considerados juntos e formam um conceito. Eles agem como advérbio, que modifica o verbo “adorarão”.
Em outras palavras, a tradução deveria ser: “Adorarão o Pai de maneira verdadeiramente espiritual”. O significado de “maneira verdadeiramente espiritual” diz respeito à natureza do crente que Jesus criou pelo Espírito. O nascido de novo assume a natureza espiritual de Deus, e assim tem a capacidade de comunicar-se e comungar com Deus. Num estado não-regenerado, ninguém entende o ensino de jesus, que é de cima. Além do mais, a afirmação “Deus é espírito” do versículo 24 alude à essência de Deus, mas indica que Deus é de natureza espiritual. Para que as pessoas se comuniquem com Ele, elas também têm de ter uma natureza semelhante. (Eu uso a palavra “semelhante” porque João deixa claro que os cristãos não são da mesma natureza que Jesus.) As implicações desta interpretação são grandes. João toma como base para a adoração cristã o novo nascimento. Trata-se de equilíbrio muito necessário na atual teoria, teologia e prática de adoração. A adoração pentecostal e carismática é dinâmica, seguramente uma característica valiosa, mas o “dinamismo” não é a base de adoração. A menos que alguém seja regenerado, não importa que forma ou estilo empregue, adorar a Deus é impossível: “E im porta [ênfase minha] que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade” (v. 24). Ademais, a verdadeira adoração é centralizada em Cristo. Sem Jesus e a nova natureza que Ele dá, é impossível adorar o Pai, o objeto de adoração. Este tipo de adoração é um estilo de vida de comunicação e comunhão constantes (w . 23,24).
Quando João usa a palavra “adorar”, ele o faz deliberadamente. Ele relaciona mais fortemente o material ao capítulo 2 e à idéia do novo templo. Isto também ajuda a explicar por que João colocou a purificação do templo no começo do seu Evangelho. Ele está dizendo que Jesus, através de sua pessoa e obra, deu um fim ao conceito mais antigo de templo. O novo templo não será impessoal, orientado para alguma preferência étnica ou religiosa ou situado num local geográfico. Antes, seu corpo de pessoas redimidas será o templo. Além do pensamento dissonante (para um judeu piedoso) de que os samaritanos possam ser membros iguais no templo, o que dizer de uma prostituta samaritana? É exatamente isto que João quer dizer: Tal pessoa pode participar do perdão de Deus e se tornar membro do seu corpo, o novo templo.
“O Pai procura” (v. 23) transmite consigo um empuxo missionário e um amplo significado de adoração. Mediante a obra de jesus, os crentes têm a oportunidade de ser alcançados na plena comunhão que se dá entre os membros da Trindade. Um pouco antes, Jesus fora contra o costume vigente ao pedir água para uma mulher samaritana (v. 9). No versículo 27, quando os discípulos voltam, eles encontram Jesus conversando com esta mulher. Isto os pega de surpresa. Aqui, João não menciona que ela é samaritana; antes, Jesus está falando com uma mulher (os leitores já sabem que ela é samaritana). Isto permite ao autor tirar algo acerca dos discípulos. Na literatura judaica era costume proibido um homem conversar com uma mulher. Os discípulos não são necessariamente contra os samaritanos (eles haviam acabado de entrar em Samaria para comprar comida), são apenas contra as mulheres. Esta atitude contribui para a predominância da passagem inteira. Je sus vê a surpresa deles e lhes antecipa a preocupação, visto que eles não lhe dizem nada. Eles apenas insistem que Ele coma o que tinham comprado. Este é o cenário para suas observações fortemente formuladas aos discípulos.