Comentário sobre João 17:6-8

Para si próprio Jesus pediu ao Pai que o glorificasse. Agora sua oração se volta para os discípulos e se torna uma intercessão por eles. O que caracteriza seus discípulos? Por que Jesus consegue orar com convicção por eles? Por natureza são pessoas como todas as demais e fazem parte do “mundo”. Mas agora aconteceu algo com eles que os transforma completamente. São “pessoas que me deste para fora do mundo”. O Filho não é capaz de fazer nada por si próprio, nem mesmo transformar pessoas em discípulos. Somente pode acolher aqueles que o próprio Deus lhe dá. Sua “escolha” dos discípulos (Jo 15.16) está alicerçada sobre uma escolha de Deus. Por isso Jesus enfatiza: “Pertencem a ti, e tu mos confiaste.” No v. 9 ouviremos mais a esse respeito. Prevalece o que Jesus já afirmou com muita seriedade em Jo 6.37,44,65: somente os que o Pai lhe dá e por isso atrai para junto dele, vêm até ele. Porém agora Jesus pôde agir nessas pessoas que o Pai lhe encaminhou. “Manifestei teu nome às pessoas.” Para nós é penoso compreender corretamente todo o conteúdo, e também toda a alegria dessa declaração de Jesus. Será que há tanta importância no “nome de Deus”? Porventura um “nome” não é uma questão bastante exterior? Pode ser assim. Porém, também nós conhecemos essa situação, de que a um “nome” se associa todo o ser daquele que é portador desse nome. Quando dizemos “Abraão” ou “Moisés” ou “Paulo”, surge inicialmente toda uma realidade de vida. Conseqüentemente, também poderíamos traduzir a palavra da oração de Jesus por “Eu lhes revelei a tua essência”. O “nome” formula a essência.696 Em vista disso, o “nome” possibilita que tratemos ao outro como aquele que ele é. Conheço o outro e estou ligado a ele quando sei o seu “nome”.
Tudo isso vale de modo especial para Deus e para o nosso conhecimento de seu nome. O “nome” de Deus não está sob o controle de uma pessoa. A essência e a verdade de Deus estão ocultas para nós. Por isso, para Moisés não foi suficiente que Deus se apresentasse na sarça incandescente como “o Deus dos pais”, dando-lhe a incumbência de libertar o povo. Pelo seu bem e pelo bem do povo ele precisava saber o “nome” de Deus, a fim de poder confiar realmente Nele e invocá-lo corretamente.697 Naquele tempo Israel foi presenteado com o nome de “Javé” (“Jeová”; Êx 3.13-15).698 Agora, porém, esse nome, que não tem mais importância no NT, não está mais em questão. Agora esse “nome manifesto” é o nome de Deus como Pai.699 Ele se tornou acessível aos discípulos na palavra que Jesus podia transmitir-lhes como a palavra do próprio Deus. A revelação do “nome” caracteriza a revelação como revelação da palavra. O Pai se manifesta no Filho não em experiências místicas inexprimíveis, mas na “palavra” inequívoca.700
Em razão disso Jesus pode constata imediatamente o fruto de sua revelação: “E eles têm guardado a tua palavra.” Isto os capacitou a reconhecer por eles mesmos o aspecto crucial da revelação de Deus por meio de Jesus. “Agora eles reconheceram que todas as coisas que me tens dado provêm de ti.” Para Jesus, essa afirmação é tão grandiosa no diálogo com o Pai que ele a repete outra vez, com maior clareza. “Porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e chegaram a crer que tu me enviaste.” Justamente porque Deus “deu” as palavras a Jesus elas não são meras “palavras”, e sim “rhemata”,701 palavras eficazes e plenas de realidade. As pessoas que as “aceitaram”, chegaram a “conhecer” e a “crer” por meio delas. Captaram o envio de Jesus, motivo pelo qual conseguiram ver o próprio Pai naquele que “saiu do Pai”, e desse modo conhecer e dizer o seu “nome”. Não apenas ouviram uma pessoa que, como muitos antes e depois dele, tinha seus pensamentos sobre Deus e ensinava esses seus pensamentos. Não, “agora eles reconheceram que todas as coisas que me tens dado provêm de ti”. Jesus é o Revelador, que traz a realidade própria a Deus até as pessoas.
Entretanto, ao ouvirmos essas palavras de oração de Jesus cabe-nos superar ainda outra dificuldade. Com alegria, Jesus diz ao Pai o que realizou pela manifestação do Seu nome. Porém, será de fato assim? Será que seus discípulos realmente “guardaram” a sua palavra, a “receberam” e “reconheceram” e “chegaram a crer”? Não vemos até o final dos discursos de despedida (Jo 16.29-31) que Jesus não consegue considerar sua suposta fé como fé verdadeira? E a hora seguinte não há de mostrar que os discípulos de fato ainda não “reconheceram e creram”? É preciso que retornemos ao que explicitamos em relação a Jo 6.67-69. A atuação reveladora de Jesus não foi em vão. Crer e reconhecer na Páscoa e em Pentecostes somente foi possível porque já estavam fundamentados e haviam começado a germinar em todo o convívio de Jesus com os apóstolos. Diante de seu Pai, Jesus agora vê essa semente já desenvolvida, e olha para o futuro, como o fará expressamente no v. 20. Diante do Pai ele pode falar desse futuro como um acontecimento do passado. E aqui todos nós, que recebemos essas suas palavras por meio dos discípulos e igualmente chegamos a esse “conhecimento verdadeiro” e a essa “fé” bem definida, já estamos incluídos.[1]





696 A pessoa simples pensa assim ainda hoje. Por isso o africano escolhe um novo nome significativo em seu batismo. Não se chama mais, como até então, “Não tenho sossego”, mas “Acordei para a vida”, ou “a pessoa que encontrou alegria”.
697 É significativo que Deus atende o pedido de Moisés (“Deixa-me ver a tua glória”) com a “manifestação do nome do Senhor”. E esse “nome” constitui também nesse momento a revelação do ser de Deus na liberdade e glória de sua misericórdia (Êx 33.18s).
698 Por isso ocorre no AT a reiterada auto-apresentação de Deus: “Para que saibais que eu sou Javé” (1Rs 20.28; Is 42.8; 43.10s; Is 6.7).
699 Isso se torna claro no apóstolo Paulo, quando ele sempre chama “Deus” de nosso “Pai” nas saudações de suas cartas: 1Co 1.3; 2Co 1.3; Gl 1.1,4; Ef 1.2; 6.23; Fp 1.2; Cl 1.2; 1Ts 1.1,3; 2Ts 1.1s; 1Tm 1.2; 2Tm 1.2; Tt 1.4; Fm 3. Agregam-se a essas as passagens das palavras de gratidão nos preâmbulos das cartas, em que Deus é chamado de “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Co 1.3; Ef 1.3; Cl 1.3). Ele, “o único Deus verdadeiro”, tem o “nome” de “Pai”, e esse nome traz sua essência diante do apóstolo e da igreja.
700 Nesse aspecto fica explícito todo o contraste entre religiões humanas baseadas na emoção e a revelação bíblica. Para o Fausto de Goethe, o “nome” é apenas “ruído e bruma rodeando o ardor do céu”. Com essa espécie de “religião” no coração, Fausto obviamente é capaz de seduzir uma moça inocente, envenenar a mãe dela, assassinar o irmão, deixar a moça nas mãos do carrasco e seguir pessoalmente despreocupado pela vida! Quem recebeu revelação do nome de Deus já não é capaz disso.
701 Cf. para isso a nota 582 e p. 253s.
[1]Boor, W. d. (2002; 2008). Comentário Esperança, Evangelho de João; Comentário Esperança, João (p. 381). Editora Evangélica Esperança; Curitiba.