Comentário sobre João 17:2
Jesus
pode ter tanta certeza de que essa prece será atendida porque essa glorificação
do Filho no sofrimento não é nada mais que a concretização de uma soberania que
há muito foi concedida ao Filho: “Assim como lhe conferiste autoridade sobre
toda a carne.” A expressão “toda a carne”, já utilizada diversas
vezes no AT, abrange a totalidade da existência das criaturas, a criação como
um todo, porém refere-se de modo bem especial à humanidade como criada e
transitória.682 “Autoridade sobre toda a carne” é
precisamente o poder de Deus. Já Moisés e Arão adoraram a Deus como o “Deus do
espírito de toda a carne” (Nm 16.22). E o próprio Deus declara ao profeta
Jeremias: “Eu sou Deus de toda a carne” (Jr 32.27). O Pai transfere essa
autoridade de Deus a Jesus. Nisso Jesus vê o motivo que o faz orar cheio de
certeza pela “glorificação”. Também nesse caso o termo grego “kathos” =
“como” possui um sentido causal.683 Essa autoridade, porém, não é
simplesmente “poder” em si, mas serve à vontade do amor de e à salvação das
pessoas. Jesus a possui “a fim de que ele conceda a vida eterna a tudo os
que lhe deste”. O fato de ser “carne” torna passageira a criatura, que na
verdade não possui “vida eterna” (Jo 3.6).684 Contudo, através de
Jesus as pessoas devem obter “vida eterna”. Novamente transparece a idéia da
eleição, para nós tão difícil, de Jo 6.37. Jesus não fala simplesmente da
autoridade sobre toda a carne, para que ele conceda vida eterna a toda a carne.
O verdadeiro teor, bastante complicado, “para que tudo que tu lhe deste, ele
lhes conceda vida eterna” mostra com mais clareza que se trata apenas de
uma “seleção” de pessoas, às quais é concedida a dádiva inaudita.685
Essa dádiva da vida eterna, no entanto, somente vem aos eleitos pelo fato de que
o Filho de Deus se deixa transformar em pecado na cruz (Jo 3.15).[1]
682 Temos em mente Is 40.6-8;
mas também Gn 6.12s; Sl
65.3; Is 31.3; 49.26.
Igualmente deve ser entendida a formulação no Credo Apostólico “ressurreição da
carne”.
683 Cf. p319s; 326.
684 Paulo enfatiza mais ainda que na “carne” o pecado,
a inimizade contra Deus, possui um campo especial de atuação. Essa oração de
Jesus não ressalta isso. Porém, pelo fato de que Jesus somente pode dar vida
eterna a pessoas por sua morte na cruz, vê-se também nesse aspecto uma
correlação entre “carne” e “pecado”.
685 Deus não tem nenhum “dever” para com pessoa alguma,
precisando presenteá-la com vida eterna. Por meio de nosso pecado anula-se
cabalmente qualquer “reivindicação” perante Deus. Deus não tem a obrigação de
escolher a todos. Trata-se de graça livre, não de justiça. Ao “eleger”, Deus
seleciona. Toda cisma a esse respeito é vã e perigosa. Nós somente podemos
agradecer maravilhados pelo fato de fazermos parte daqueles que o Pai
“concedeu” ao Filho.
[1]Boor, W. d. (2002; 2008). Comentário Esperança,
Evangelho de João; Comentário Esperança, João (378). Editora Evangélica
Esperança; Curitiba.