Comentário sobre João 17:1

Essas coisas falou Jesus.” Podemos ver todo o evento concretamente diante de nós. Os discursos de despedida começam com a última ceia que Jesus realiza com seus discípulos (Jo 13). O discurso de Jesus se prolonga ainda no recinto da ceia, até partirem por ordem do próprio Jesus (Jo 14). O trajeto pela cidade e descendo a encosta ao vale do Cedrom não é percorrido em silêncio. Jesus continua falando com seus discípulos. A videira no jardim ao lado do caminho, claramente visível sob o brilho da lua cheia, pode ter sido o motivo para o discurso metafórico de Jesus em Jo 15. Agora já foi dito tudo o que preenche os capítulos de Jo 15 e 16. Jesus chegou diretamente ao Cedrom. Tão logo ele o atravessar e entrar no Jardim das Oliveiras (Jo 18.1s), estará à mercê de seu traidor e de seus inimigos. Por isso Jesus se detém ali, antes do último passo em direção ao sofrimento. Nessa hora ele precisa falar não apenas com pessoas. Sua última palavra não se dirige a elas, e sim ao Pai. Ouvimos o Filho em seu último diálogo com o Pai. Como todos os autores bíblicos, João mostra uma reverência singela diante do mistério, de modo que não tenta violá-lo com perguntas e análises. Por essa razão, ele permite apenas, por meio de alusões, que observemos o contato de Jesus com Deus, sua vida de oração.677 Agora, porém, enfim é permitido ouvir: desse modo orava Jesus, assim o Filho conversava com o Pai.678

Logo no começo dessa oração deparamo-nos com o mistério. “Essas coisas falou Jesus e levantou os olhos ao céu e disse: Pai.” Acaso Jesus não se empenhou com todas as forças para mostrar aos discípulos que ele está no Pai e o Pai está nele (Jo 14.10)? Será que de fato ainda existe um diálogo real entre Jesus e o “Pai nele”? Acaso Jesus ainda precisa e pode “levantar os olhos ao céu”, como se Deus estivesse lá “em cima”? Ainda que o fato de Deus estar “no céu” e “no Filho” não seja tão compreensível para nós de forma concreta e sem contradições nessas imagens espaciais,679 reconhecemos que ambos os aspectos são verdadeiros: a plena unidade do Pai e do Filho, e a plena autonomia das duas pessoas, que se expressa quando o Filho ergue o olhar ao Pai e quando há o diálogo genuíno de pedir e ser atendido. Igualmente leva-se a sério a plena encarnação do Filho. O Pai pode ser visto no Filho. Mas, como ser humano sobre a terra, o Filho ergue os olhos ao céu e interpela a Deus.680

Pai, é chegada a hora.” Quanto tempo Jesus esperou por essa “hora” (Jo 2.4)! Agora ela chegou. O que é preciso pedir ao Pai agora? Já temos essa resposta em Jo 12.27,28. Não pode ser salvação dessa hora, que “precisava” vir e pela qual o Filho esperava ardentemente. A única opção é que “a hora” alcance o grande alvo. Por essa razão a prece de Jesus é: “Glorifica teu Filho, para que o Filho te glorifique.” Esse alvo, porém, não está somente além da hora, como uma recompensa depois do sofrimento. Se quiséssemos interpretar a prece de Jesus dessa forma teríamos de esquecer tudo o que Jesus afirmou sobre sua “exaltação” na cruz. Não: é precisamente na “hora” em si, na trajetória do sofrimento que está para começar, que a glorificação do Filho, que se torna ao mesmo tempo glorificação do Pai pelo Filho, deve acontecer.681 Essa glorificação do Filho, no entanto, não acontece por si mesma. Tampouco é obra pessoal de Jesus. Unicamente o Pai pode efetuá-la, razão pela qual precisa ser solicitada pelo Filho, que obviamente tem plena certeza de ser atendido.[1]




677 Cf. Jo 6.11; 9.30s; 11.41s;12.27s.
678 Será que com idade avançada João ainda podia saber com tanta exatidão o que Jesus orara naquela ocasião? Também nós dizemos a respeito de palavras que nos impressionaram profundamente: “Posso ouvi-las como se fosse hoje.” No entanto, além desse fator temos de contar que em João havia o “lembrar” por obra do Espírito Santo (Jo 14.26).
679 Essa linguagem figurada é inevitável. Mesmo quem se opõe às conhecidas ilustrações de “céu”, “altura”, “em cima” por razões de visão de mundo e quem busca a Deus na “profundeza” do ser, também está fazendo uso de uma concepção de espaço (P. Tillich, J. A. T. Robinson). É muito questionável se a idéia de “profundeza” de fato é mais apropriada que a da “altura”!
680 Justamente nessa oração fica claro que o ser humano da Bíblia tinha muito pouco em mente o “céu” físico. Quanto uma pessoa que orava não teria de gritar, para ser ouvida lá acima das nuvens e estrelas! Jesus, porém, levanta os olhos, e não a voz.
681 Cf. o comentário a Jo 12.27s; 12.32; 14.31.
[1]Boor, W. d. (2002; 2008). Comentário Esperança, Evangelho de João; Comentário Esperança, João (p. 377). Editora Evangélica Esperança; Curitiba.