Comentário de João 17:24
A oração
aproxima-se do fim. Nesse momento, porém, ela também atinge seu majestoso
clímax.730
“Pai, aquilo que me deste.” Jesus contempla agora todos os seus até o
fim dos tempos. Ele vê a “grande multidão…” (Ap 7.9),o fruto maduro de sua
obra. Por ser ela o “salário de suas dores”, a prece de Jesus pode tornar-se um
“quero”: “Quero que onde eu mesmo estou, estejam também comigo
aqueles, para que vejam a minha glória.” Por trás de toda oração genuína
existe uma vontade clara. Quando uma pessoa que ora de fato não “quer” mais
algo, sua oração se torna mera falação. Contudo, enquanto nós precisamos
condicionar nosso querer, mesmo o mais puro, à vontade de Deus, prontos para o
arrependimento, Jesus pode ter tanta certeza da unidade com Deus que pode
afirmar: “Pai, eu quero.” O Filho tem a liberdade de dizer ao Pai o que
“quer” com a máxima seriedade de seu amor. Ele não tem apenas um
interesse temporário e instável pelos seus. Com amor pleno, ele “quer” a
comunhão indissolúvel e completa com eles. Nesse querer ele tem a certeza de
que essa é também a vontade incondicional do Pai. É para isso que o Pai lhe “deu”
essas pessoas, separando-as do mundo. O que inicialmente era exigência a seus
discípulos: “Onde eu estou, ali estará também o meu servo” (Jo 12.26), torna-se
agora promessa de vida eterna: “que, onde eu mesmo estou, estejam comigo
também aqueles”. É nessa situação que “vêem a sua glória”. Até o
aperfeiçoamento na eternidade, o ser humano como criatura persiste na situação
de não conseguir encontrar a vida e a alegria em si mesmo. O ser humano precisa
ter algo para “ver”. Contudo, como tudo isso continua sendo transitório e
precário! Estaremos eternamente realizados e repletos de alegria indizível (1Pe
1.8), quando virmos a glória de Jesus de forma desvelada, a glória que procede
do amor eterno de Deus.
Isso não é algo completamente novo para os
discípulos de Jesus! Já na sua vida atual vale o que diz Jo 1.14: “Vimos sua
glória”. Porém, o que até agora não passava de um começo, torna-se cumprimento
pleno. Nessa afirmação a glória de Jesus não é apenas um resplendor indefinido
e brilhante. Jesus sentado à direita de Deus sobre o trono do mundo, Jesus
retornando para arrebatar e aperfeiçoar sua igreja (1Ts 4.13-17), Jesus
derrubando o poder mundial anticristão com o hálito de sua boca (2Ts 2.8; Ap
19.11-16), Jesus governando sacerdotalmente com os seus (Ap 20.4-6), Jesus realizando
o juízo sobre o mundo (Ap 20.11-15), Jesus entregando ao Pai uma criação
redimida após completar sua obra (1Co 15.28): tudo isso deve estar diante de
nós quando Jesus diz: “minha glória”.731
Contudo, tampouco o Filho possui essa glória em si
mesmo como propriedade sua, e nem quer possuí-la dessa maneira. Somente a tem
como uma glória “que me conferiste”. A razão, porém, para essa concessão
por parte do Pai reside no Seu próprio amor: “porque me amaste antes da
fundação do mundo.” Nesse último diálogo com o Pai o pensamento do Filho
chega até aquele “princípio” com o qual o próprio evangelho começa em Jo 1.1.732 Nesse amor ele também estará
abrigado quando o clamor do abandono por Deus em prol dos pecadores brota de
seu coração.[1]
730 Pela leitura notamos
como é estranha a construção da frase. No entanto, temos de respeitar o modo
com que João nos relata a sentença da oração de seu Senhor. Igualmente a
antecipação de Jesus possui um sentido profundo: “Pai, aquilo que me deste.” O
Filho vive da doação por parte do Pai. O Filho vê com gratidão a plenitude
dessa doação.
731 A respeito de “ver a
sua glória” Deus havia falado por intermédio do profeta Isaías, em Is 40.5; 66.18s. O
“Eu sou” (“Javé”) que fala por intermédio de Isaías, e o “Eu sou” que fala na
pessoa de Jesus, é o mesmo Deus único.
732 Quem rejeita isso como algo
“mitológico”, terá de interromper qualquer falar sobre Deus. O mero vocábulo
“Deus” não diz nada. Ele se enche de conteúdo apenas através daquilo que Deus
faz. A mensagem do NT o atesta com toda a clareza: Deus amou desde o começo! A
quem? Não inicialmente o “mundo” que ainda não existe, mas o Filho. É evangelho
“segundo João” que esse Filho nos amou, veio até nós, morreu por nós,
ligando-nos para sempre com ele e nos tornando participantes de sua condição de
ser amado e presenteado.
[1]Boor, W. d. (2002; 2008). Comentário Esperança,
Evangelho de João; Comentário Esperança, João (p. 392). Editora Evangélica
Esperança; Curitiba.