Comentário de João 17:22-23
Para
Jesus, a unidade dos seus é algo tão premente que ele não consegue desprender
sua oração dela.726 Naturalmente não nos será fácil acompanhar agora de
fato a Sua oração. Nesse momento, essa oração está unindo o que nos parece ser
extremamente divergente. “Eu mesmo lhes tenho transmitido a glória que me
tens dado.” A “glória” não é uma palavra do futuro distante? Não é
justamente por isso que o Filho a pede como dádiva da perfeição vindoura dos
seus, para que “vejam a sua glória” (v. 24)? E agora Jesus diz isso no
pretérito perfeito: ele já concedeu essa glória aos discípulos. Porventura o
futuro já é presente, para não obstante imediatamente continuar sendo futuro? É
exatamente isto! E precisamente o Filho de Deus em oração é capaz de vê-lo
desse modo. É verdade, ele lhes proferiu a palavra do Pai, ele os deixou ver o
Pai nele mesmo. Ele os atraiu consigo para dentro do amor que liga Pai e Filho,
Filho e Pai. Tudo isso é sua “glória”. De fato não a guardou para si,
porém a “transmitiu” aos discípulos, ainda que neste momento nem sequer
captem essa dádiva, e que a espelharão somente no decorrer de sua vida de
discípulos com o rosto descoberto.727
É precisamente essa glória concedida
aos discípulos que gera a sua unidade: “para que sejam um, como nós o somos:
Eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade.” A
unidade não é um alvo ideal que os discípulos precisam alcançar com esforços
próprios. Não lhes cabe primeiro “criar” a unidade.728 Pelo fato de
que o Único está “neles” como seu Senhor e Redentor, a união nele já lhes foi
presenteada. E pelo fato de que, por sua vez, o Pai está “em Jesus”,
concretiza-se aquela “unidade perfeita” que une Deus e seres humanos em Jesus e
viabiliza o alvo de toda a história: “que Deus seja tudo em todos” (1Co 15.28).
Essa unidade com Deus, essa vida a partir de Deus e para Deus é “a glória” que
o Pai concedeu ao Filho e que agora Jesus tornou a “conceder” a seus
discípulos. Ela foi “dada”, está aí: a qualquer momento pode-se viver a partir
dessa unidade perfeita. E ao mesmo tempo não deixa de ser o alvo da intercessão
de Jesus, que se empenha pela unidade dos seus.729
Também nesse instante o olhar do “Redentor do
mundo” passa da condição dos próprios discípulos para o alvo de seu envio: “para
que o mundo reconheça que tu me enviaste.” Contudo, essa unidade dos
discípulos, que não é meramente unidade entre os humanos, mas união em Deus,
não demonstra apenas o envio autorizado de Jesus, mas igualmente o amor do Pai
aos discípulos. Jesus suplica pela unidade de seus discípulos também “para
que o mundo reconheça que os amaste (os discípulos), como também amaste
a mim”. Unicamente pessoas amadas por Deus são libertas, em razão dessa
condição, do medo por si mesmas, e, conseqüentemente, são capazes de também
amarem aos outros. Nas chamas do amor de Deus incendeia-se o verdadeiro amor
entre os discípulos, o qual os congrega na unidade. E vice-versa: esse amor
entre os discípulos torna o amor de Deus perceptível até mesmo aos olhos do
mundo.[1]
726 Em contraposição,
como é curiosamente fraca entre nós a oração pela unidade e o empenho pela
comunhão! Também nesse aspecto Paulo compreendeu seu Senhor, quando solicita
que “nos esforcemos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no
vínculo da paz” e quando em seguida apresenta à igreja os poderosos elos da
unidade (Ef 4.3ss).
727 Paulo atesta à sua
maneira aquilo que seu Senhor previra em oração. Ao lado da visão do futuro em Rm 8.18; 2Co 4.17
encontra-se em Rm 8.29 igualmente a formulação
no pretérito perfeito, e em 2Co 3.18 ouvimos
que a glória de Jesus desde já determina o futuro de forma eficaz.
728 Por isso Paulo tala
também em Ef 4.3 de “preservar” a unidade.
Todos os esforços de unidade no cristianismo são desde já em vão se não
partirem da unidade preestabelecida da igreja. Justamente em vista da unidade
da igreja de Jesus, que é dada, necessária e “natural”, todos os cismas e
separações tornam-se intoleráveis, impelindo com ímpeto para que sejam
superados.
729 Vivemos dessa
intercessão de nosso Senhor e por isso também oramos pessoalmente pela
constante realização da unidade, já existente, de toda a igreja de Jesus.
[1]Boor, W. d. (2002; 2008). Comentário Esperança,
Evangelho de João; Comentário Esperança, João (p. 391). Editora Evangélica
Esperança; Curitiba.