Parábola da Morte como um Sono
(Jo 11:11-15,23-26)
Não estamos preocupados com a exposição do milagre da ressurreição de Lázaro, pois o leitor pode achar uma explanação sobre o miraculoso poder de Cristo em Betânia, em nosso livro Todos os Milagres da Bíblia. O que atualmente nos preocupa é o expressivo símile que Cristo usou para morte. Quatro dias depois do falecimento de Lázaro por doença, ele disse: "Nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo". Entre as parábolas bíblicas que ilustram a "morte", dormir parece a favorita. Daniel escreveu sobre os que estão fisicamente mortos como os que "dormem no pó da terra" (Dn 12:2). Jesus tinha afeição por essa figura de linguagem. Ele disse da fi-lha do chefe da sinagoga: "A menina não está morta, mas dorme" (Mt 9:24). Evidentemente a morte era real para Jesus, mas ele sabia que isso se aplicava só ao corpo. Na serenidade da consciência da divindade, ordenou que o povo se retirasse do quarto, onde estava a morte, para que pudesse despertar a menina do sono, i.e., trazer a vida consciente a um corpo inconsciente.
Nosso Senhor tinha em mente um pensamento semelhante quando respondeu aos hostis fariseus: "Se alguém guarda a minha palavra, nunca verá a morte". Como cristãos, possuímos a vida espiritual a qual pode ver, ou experimentar, que a morte é uma vida que passa para uma vida espiritual plena e glorificada no porvir. A morte ataca o corpo, e deixa-o sem vida até a sua ressurreição na volta de Cristo; mas a pessoa dentro do corpo não morre, mas vive com ele que é "A ressurreição e a vida". Quando Jesus ressuscitou e subiu ao céu, tornou-se as primícias dos que dormem (ICo 15:20). Quando ele voltar, os espíritos dos corpos que dormem retornarão com ele e experimentarão "A redenção do corpo" (lTs 4:13-18).
Dormir como imagem da morte é comum na literatura secular dos tempos primitivos. Escritores pagãos, bem como os judeus, usaram essa ilustração. Para Homero, os poetas falam sobre sono e morte como irmãos gêmeos. Por exemplo, observe as citações abaixo:
Samuel Daniel no século XVI em Defense of rhyme [Em defesa da rima]:
Cuidado sedutor, filho da negra
noite, Irmão da morte, nascido numa
noite silenciosa e escura."
Fletcher e Beaumont, do mesmo período, tinham uma linha seme-lhante:
Dorme leito de sono, teu alívio de todos os inimigos, Irmão da morte [...] Tu, filho da noite."
Lord Byron, em And thou art dead [E tu estás morto], diz:
O silêncio dos que dormem sem sonhos eu invejo agora o muito chorar."
Phineas Fletcher, 1582-1650 escreveu:
Dormir é apenas uma morte curta; a morte é um longo sono."
John Milton, o poeta cego, em Paradise regained [Paraíso revisto], expressou-se assim:
Um sono semelhante à morte, um brando flutuar à vida imortal."
Shakespeare, em Hamlet, tem as impressionantes linhas:
Pois naquele sono da morte de onde podem vir os sonhos, quando nos livramos deste tumulto mortal."
De várias fontes alinhamos essas próximas citações:
Dormir é belo como a morte, e eu não me atrevo a confiar nisto com orações."
E o sono, irmão da morte, contudo amigo da vida, deu à enfadonha natureza uma restauradora."
O, sono, tu imitas a morte."
Como é maravilhosa a morte, a
morte e seu irmão sono." Sono é o alívio da morte."
Haverá sono suficiente na sepultura."
Paz, repouso e sono são tudo o que sabemos da morte, e tudo o que sonhamos sobre conforto."
Com essa universal concepção da morte, vamos às palavras confortadores do Senhor aos discípulos: "Nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo". Sem compreender a parábola que dizia respeito à morte, os discípulos disseram: "Senhor, se dorme melhorará". Se ele superara a crise de sua doença, com certeza, o sono era um dos seis sintomas positivos de que a febre ou enfermidade tinha passado. Pedro, Tiago e João, que estavam entre os discípulos que imaginavam que Jesus falava da morte de Lázaro, como o descanso em sono natural, deveriam ter lembrado que ele já aplicara a palavra "dormir" para morte antes (Mt 9:24). Então Jesus respondeu-lhes claramente: "Lázaro está morto". As palavras verdadeiramente profundas "nosso amigo Lázaro dorme" não transmitiu seu verdadeiro sentido à mente deles. Morto era a única palavra que entendiam, precisamente porque olhavam o corpo sem vida de Lázaro.
Por que Jesus usou essa apropriada metáfora do "sono" quando falou da morte? Ele sabia, e nós também, da semelhança que há entre quem dorme e quem está morto; repouso e paz normalmente caracterizam ambas as citações ilustradas. Vine, em seu Dictionary of the New Testament Words [Dicionário das palavras do NT], diz: "O objetivo total da metáfora é sugerir que, como aquele que dorme não deixa de existir enquanto seu corpo descansa, assim o morto continua a existir, não obstante a sua ausência da região em que os que ficaram podem comunicar-se com ele, e que, como se conhece o sono como temporário, assim será considerada a morte do corpo".
É nesse sentido que se usa o verbo "dormir" para os santos que morreram antes da vinda de Cristo (Mt 27:52; At 13:36); para os crentes antes de sua ascensão (lTs 4:13-18; At 7:60; ICo 7:39; 11:30; 15:6,18,51; 2Pe 3:4); e para Lázaro. Um aspecto, contudo, precisa ser acentuado: o verbo "dormir" é usado apenas para o corpo, e o termo "ressurreição" semelhantemente aplica-se somente ao corpo. Cito Vine novamente: "Quando a estrutura física do cristão (A casa terrestre do nosso tabernáculo — 2Co 5:1) se dissolve e retorna ao pó, a parte espiritual do seu ser, altamente complexa, a sede da personalidade, parte para estar com Cristo (Fp 1:23). E desde que aquele estado em que o crente, ausente do corpo, está em casa com o Senhor (2Co 5:6-9), é apresentado como 'muito melhor' do que o estado presente de gozo em comunhão com Deus, e de feliz atividade em seu serviço, e reflete-se por toda parte nos escritos de Paulo. E evidente que o verbo 'dormir', quando aplicado aos cristãos que partiram, não traduz a ideia de que o espírito esteja inconsciente". Não há confirmação em algum lugar para a teoria do "sono da alma", ensinada por alguns teólogos. Lázaro, que se encontrava no seio de Abraão (Lc 16), estava vivo e consciente, exatamente como o rico também estava. E interessante observar que os primeiros cristãos usavam uma palavra para o lugar do sepultamento, para significar uma "casa de repouso". Em português, a palavra cemitério tem a mesma origem e significa "lugar de dormir".
À noite, quando vamos dormir, não significa dizer que nós mesmos tenhamos um fim, mas que misteriosamente desce uma cortina e ficamos inconscientes das coisas ao redor; e vem o sono equivalente ao repouso. Os discípulos consideravam o sono uma "doce restauração da natureza, o bálsamo do sono", ou como Shakespeare expressou:
... Em sono inocente,
Dorme para tecer a delicada seda,
A morte de cada dia da vida, certamente o banho do labor.
Bálsamo das mentes feridas, seguindo o curso da grande natureza,
Principal alimentador na festa da vida.
O famoso poeta dá-nos ainda essa ode adicional sobre as benéficas qualidades do sono:
Ó sono! Ó sono tranqüilo!
Suave protetor da natureza, quão muitas vezes te assusto,
Que tu nunca mais pesarás para baixo as minhas pálpebras
E impregnarás os meus sentidos de esquecimento.
Diante da presença da morte, os discípulos perceberam-na como um fato, como Jesus fizera há quatro dias, mas Cristo pensava nesse acontecimento por outra ótica. Os discípulos viam somente o imediato, o cadáver de Lázaro; Jesus olhou além, e sabia que aquele corpo dormente seria ressuscitado. Tudo que Maria e Marta viam era a figura morta de seu amado irmão, mas o Filho de Deus via onde o próprio Lázaro estava, e quão inconsciente encontrava-se do mundo que ele recentemente deixara. Lázaro não estava morto; por isso Jesus trouxe-o de volta a seu corpo, da inconsciência quanto as coisas terrenas, para a consciência delas.
Uma lenda diz que os primeiros cristãos nunca diziam "adeus", mas "boa-noite" quando se separavam dos crentes que estavam enfermos. Eles sabiam que, se os seus corpos dormissem, levantar-se-iam na manhã da ressurreição. Vivendo no reino celestial, onde a voz de Jesus é ouvida e obedecida, os primeiros cristãos sabiam que, com a sua morte feliz, não deixariam de existir, mas que ressurgiriam para a ressurreição da vida. Essa é a bendita esperança: todos os que dormem em Jesus, Deus os trará de volta através de Cristo. Não nos entristeçamos como os que não têm esperança, pois sabemos que o espírito consciente encontrará o inconsciente, ou os restos mortais dormentes, naquele glorioso dia da ressurreição.
Dorme, amada, dorme e descansa;
Deita tua cabeça no peito do Salvador;
Nós te amamos muito, mas Jesus ama muito mais —Boa-noite! Boa-noite!
Boa-noite!
Fonte: Todas as Parábolas da Bíblia de Herbert Lockyer, São Paulo, Editora Vida, 2006.