Problema Crítico do Evangelho de João

Nos capítulos a respeito da missão e ensino de Jesus fizemos uso primariamente dos Evangelhos Sinópticos, com referência somente ocasional ao Quarto Evangelho. Uma abordagem não-crítica pode não ver problemas em estudar os ensinos de Jesus de modo sintético em todos os quatro Evangelhos; mas a teologia bíblica crítica deve proceder ao estudo da teologia do Quarto Evangelho em separado. A razão para tal procedimento é evidente. O Quarto Evangelho é tão diferente dos Sinópticos que, honestamente, deve-se encarar a questão se ele registra acuradamente os ensinos de Jesus ou se a tradição foi tão modificada, pela fé cristã, ao ponto de a história ser absorvida na interpretação teológica.

As diferenças entre João e os Sinópticos não devem ser encobertas. Tais diferenças na teologia são corolários às diferenças relacionadas a problemas de introdução. Há uma diferença no que se refere ao local do ministério de Jesus. Nos Sinópticos, com a exceção da última semana, o ministério de Jesus transcorre em sua maior parte na Galiléia, ao passo que em João seu ministério centraliza-se em torno de várias visitas a Jerusalém. Há uma diferença no tempo. Os Sinópticos mencionam somente uma páscoa e parecem registrar os eventos de apenas um ano ou dois, mas em João há pelo menos três páscoas (2:13; 6:4; 13:1) e, possivelmente quatro (5:1). O Quarto Evangelho deixa de mencionar importantes eventos encontrados nos Sinópticos: o nascimento de Jesus, o batismo, a transfiguração, o exorcismo de demônios, a agonia no Getsêmane, a última ceia, o discurso no Monte das Oliveiras.

Uma outra diferença bem importante, intimamente relacionada à questão da teologia, é a do uso literário. A forma literária mais distintiva encontrada nos Sinópticos é a parábola; e ali também há uma série de ensinos breves, vívidos, fáceis de lembrar, e pequenos incidentes unidos a uma declaração de ensino. Em João, o estilo do ensino de Jesus é o de longos discursos. Parábolas foram grandemente substituídas por discursos e constata-se a ausência de pequenas declarações de caráter incisivo.

O estilo do Grego também é diferente. O estilo paratático simples do Quarto Evangelho é encontrado no Evangelho e nas epístolas de João. A solução mais razoável que se apresenta é a de que os ensinos de Jesus são expressos no modo peculiar de expressão de João. Esta é uma conclusão mais fácil do que pensar que o estilo de João foi assimilado ao estilo de Jesus, e que João escreveu sua epístola no modo peculiar de expressão que ele aprendera de Jesus.

Se esta é a solução correta e se devemos concluir que o Quarto Evangelho é expresso no modo peculiar de João, segue-se esta importante questão: Até que ponto a teologia do Quarto Evangelho é a teologia de João, e não a de Jesus? Até que ponto é possível que o ensino de Jesus tenha sido tão assimilado pela mente de João que se possa dizer que o que temos é uma interpretação Joanina, em lugar de uma apresentação acurada do próprio ensino de Jesus?

Que este problema não é simplesmente acadêmico, pode-se observar a partir do fato de que alguns dos temas mais destacados nos Sinópticos não se acham em João; e ênfases das mais características em João não se apresentam tão óbvias nos Sinópticos. João nada tem a dizer a respeito do arrependimento; nem a forma verbal nem o substantivo aparece no Quarto Evangelho. O Reino de Deus, tema central nos Sinópticos, quase completamente desapareceu dos ensinos de Jesus (ver João 3:3,5; 18:36). Seu lugar é assumido pelo conceito de vida eterna como mensagem central de Jesus. Entretanto, ao passo que a vida eterna aparece umas poucas vezes nos Sinópticos, é sempre como uma bênção escatológica futura (Mar. 9:43,45 e par.; Mat. 7:14; 25:46), enquanto em João a ênfase principal é sobre vida eterna como uma bênção presente realizada (João 3:36passim).

Por outro lado, ênfases Joaninas mais distintivas estão ausentes nos Sinópticos. Talvez a expressão peculiar mais distintiva de João seja a declaração ego eimi: “Eu sou o pão da vida” (João 6:35), “ a luz do mundo” (João 8:12), “ a porta” (João 10:7), “o bom pastor” (João 10:11), “ a ressurreição e a vida” (João 11:25), “o caminho, a verdade, e a vida” (João 14:6), “ a videira verdadeira” (João 15:1). Todas essas declarações são reflexões de uma consciência absoluta: “ antes que Abraão fosse, eu sou” (João 8:58).

Não existem somente diferenças em ênfases teológicas específicas, mas toda a estrutura do Quarto Evangelho parece ser diferente da dos Sinópticos. Nos Sinópticos a estrutura básica do ensino de Jesus é a do apocalipse judaico, com sua expectativa do ato escatológico de Deus para trazer a história à sua consumação e estabelecer o Reino de Deus na era vindoura. O dualismo é um dualismo temporal de duas eras, com seu contraste entre o presente e o futuro (Mar. 10:15; Mat. 7:21).

A estrutura do pensamento de João, à primeira vista, parece mover-se em um mundo diferente. Já não se fala mais em termos desta era e da era vindoura. O discurso no Monte das Oliveiras, com sua expectação escatológica do fim dos tempos e da vinda do Filho do Homem em glória para estabelecer o Reino de Deus, é omitido. Esse dualismo temporal-escatológico parece ser substituído por um diferente tipo de dualismo.

Em lugar da tensão entre o presente e o futuro, encontra-se a tensão entre o acima e o abaixo, céu e terra, a esfera de Deus e do mundo. Este fato é mais vividamente expresso na declaração: “Vocês são daqui, eu sou de cima, vocês são deste mundo, eu não sou deste mundo” (João 8:23; ver João 3:12, 13, 31; 6:33, 62). A expressão “o mundo” (kosmos), que aparece somente umas poucas vezes nos Sinópticos, é uma das palavras favoritas de João e designa a esfera dos homens e dos afazeres humanos colocada em contraste ao mundo acima e ao reino de Deus. Quando Jesus disse que seu Reino não era deste mundo (João 18:36), ele queria dizer que sua autoridade não era derivada do mundo inferior, como a dos governos humanos, mas do mundo de Deus. Outro elemento marcante, no dualismo Joanino, é o contraste entre luz e trevas.

Um dos temas que transparece nas primeiras palavras do Evangelho é o conflito entre a luz e as trevas. “A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela” (1:5). O mundo é o reino das trevas, mas Deus é luz (I João 1:5), e Jesus veio para trazer a luz para dentro das trevas (3:19; 12:46; 8:12). Esta é a única fonte da verdadeira luz; todo homem que acha a luz deve encontrá-la em Cristo (1:9).1 Esta luz ainda está brilhando e a treva não foi capaz de extingui-la (1:5). A antítese de luz e trevas é um aspecto a mais do dualismo joanino do superior versus inferior, céu versus o mundo, e parece substituir um presente dualismo “vertical” para o dualismo temporal escatológico dos Sinópticos.

O vocabulário básico de Jesus como registrado por João é diferente do registrado pelos Sinópticos.Além de tais palavras como vida eterna, luz e trevas, muitas outras, que são utilizadas de modo esparso nos Sinópticos, aparecem com freqüência em João: o verbo amar e o substantivo amor; verdade, verdadeiro e genuíno (aléthinos) conhecer; trabalhar; mundo; julgar; permanecer; enviar; testemunhar; e especialmente crer em (eis). Além do mais, muitas palavras comuns dos Sinópticos estão ausentes em João: justo, poder ou milagre (dunamis); sentir misericórdia ou piedade; chamar; arrepender; parábola; orar.2

Essas diferenças acentuadas entre João e os Sinópticos levaram muitos eruditos de uma geração ou mais atrás a interpretar o Evangelho como um produto secundário do mundo helenístico, no qual a mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus fora transmudada em uma religião de salvação helenística. “Por muitos anos a opinião crítica prevalecente era a de que o Evangelho de João foi ‘o Evangelho dos Helenistas’; foi escrito por um pensador grego para os gregos; assinala um ponto decisivo na helenização da fé cristã.”3

Desde esse ponto de vista, o Evangelho está bem longe de Jesus. Seu interesse está na verdade eterna, não em fatos objetivos; em teologia, não em história. Seus milagres são apenas símbolos de realidades espirituais; suas declarações são alegorias.4 Desde então a descoberta dos três papiros, contendo todo ou parte de João, datando do princípio do segundo século, excluem tais perspectivas.5 Contudo, continua a pesquisa para encontrar o Sitz im Leben religioso, que possa explicar a linguagem e teologia do Quarto Evangelho.6 Não se pode negar que algo da terminologia característica de João é bem semelhante à linguagem peculiar da Hermética — uma coleção de escritos religiosos produzidos no Egito provavelmente no segundo e terceiro séculos. Tais escritos têm muito a dizer sobre luz e vida, a palavra e salvação através do conhecimento, como também regeneração ou novo nascimento. C.H. Dodd sente que a Hermética provê um contexto histórico valioso para a compreensão de João.7 Entretanto, muitos dos temas teológicos mais distintivos na Hermética, como gnósis8 mystêrion, athanasia, demiourgos, nous, estão ausentes em João, e a linguagem de João, de modo geral, condiz mais com a LXX do que com a literatura Hermética.9

Bultmann patrocinou uma perspectiva crítica, que tem sido aceita por muitos dos seus discípulos, de que, da literatura Mandeana datada dos séculos sétimo e oitavo de nossa era, pode ser reconstruído um movimento que recua a tempos pré-cristãos, o qual representava um sincretismo entre a filosofia helenística popular e o misticismo oriental, originando um tipo de religião “proto-gnóstica” . Esta “gnósis” pré-cristã finalmente deu surgimento a um gnosticismo plenamente desenvolvido no segundo e terceiro séculos A.D., movimento esse refletido em pais apostólicos como Irineu. Ao passo que o ponto de vista crítico prevalecente fora o de que o gnosticismo do segundo século era uma heresia distintamente cristã, esta nova perspectiva assumiu que tal gnosticismo foi somente a cristalização de um movimento que em seus pontos fundamentais antedatou o cristianismo e que influenciou grandemente a teologia Joanina. Os elementos essenciais desta teologia gnóstica consistem de um dualismo cosmológico em que o mundo material é mau. As almas dos homens, que pertencem ao reino celestial da luz e vida, caíram no mundo material das trevas e morte. Deus enviou um remidor celestial aos homens, para iluminá-los, outorgando-lhes conhecimento (gnõsis) de sua verdadeira natureza, assim habilitando-os, por ocasião da morte, a escaparem de seu envolvimento no mundo material e retornarem ao seu verdadeiro lar celestial. O céu é o lar natural do homem; o mundo é uma prisão.

Salvação resulta do conhecimento conferido pela descida e ascensão do remidor celestial.10 Os eruditos têm debatido vigorosamente se esta teologia gnóstica antedatou o cristianismo e influenciou a teologia do Cristo pré-existente, encarnado, e que foi assumpto aos céus. Deve-se enfatizar que, se bem que esta teologia gnóstica possa ser encontrada no gnosticismo do segundo século A.D. como uma aberração cristã, a teoria de que ele foi um movimento sincretista pré-cristão, que ajudou a moldar a cristologia cristã, especialmente Joanina, é uma reconstrução crítica baseada em textos pós-cristãos. Ao passo que as tendências em direção ao pensamento gnóstico podem ser encontradas no judaísmo e no helenismo, a figura de um remidor celestial não pode ser encontrada em qualquer dos documentos pré-cristãos.11

A descoberta de uma biblioteca gnóstica em 1947, na localidade de Nag Hammadi, no Egito, formada de treze manuscritos, contendo quarenta e nove diferentes documentos, deu-nos, pela vez primeira, uma grande coleção de fontes primárias para o estudo do gnosticismo egípcio.12 Ao passo que Robinson manifesta a esperança de que esta literatura possa prover a documentação para sobrepujar o abismo cristão,13 uma das nossas maiores autoridades em religião helenística manifestou a convicção de que os novos textos de Nag Hammadi “ indicam completamente o ponto de vista tradicional do gnosticismo como uma heresia cristã com raízes no pensamento especulativo.” 14 Nock também nos relembra que a literatura Hermética não tem a figura de um remidor pessoal.

Uma outra descoberta arqueológica revolucionou a pesquisa com mitos quanto à esquematização do ambiente formativo da teologia do Quarto Evangelho. Começando com uma descoberta acidental, em 1947, de vários rolos antigos, na localidade de Khirbet Qumran, perto da parte norte onde começa o Mar Morto, foram encontrados os remanescentes da biblioteca de um grupo monástico separatista, ao qual a maior parte dos eruditos identifica como os essênios ou os precursores dos essênios.15 Existem paralelos tão surpreendentes de linguagem e pensamento entre João e os escritos de Qumran que muitos eruditos sentem que deve haver alguma ligação significativa entre os dois. Possivelmente João Batista tenha sido um Qumraniano durante os anos em que permaneceu no deserto.16

Mesmo que não possa ser estabelecida uma dependência direta entre João e os escritos de Qumran, as semelhanças têm provado que a linguagem peculiar e os padrões de pensamento do Quarto Evangelho poderiam ter surgido na Palestina na metade do primeiro século A.D. — uma posição que poucos eruditos de uma geração atrás teriam ousado apoiar. Este fato tem conduzido ao chamado “The New Look on the Fourth Gospel” (A Nova Perspectiva sobre o Quarto Evangelho),17 que tem causado verdadeira revolução na crítica relacionada a João. Muitos eruditos contemporâneos reconhecem agora uma sólida tradição Joanina, independente dos Sinópticos, originária da Palestina e que pode ser datada entre 30 a 66 A.D.18 e atribuem ao Quarto Evangelho um certo grau de valor histórico, que dificilmente poderia ser sequer sonhado há uma geração atrás, exceto pelos eruditos mais conservadores.

Apesar de tudo quanto foi dito, ainda permaneceu o problema da diferença entre o Jesus conforme apresentado pelos Sinópticos e o Jesus conforme João o apresenta. O problema torna-se mais complexo pelo fato de que a linguagem e teologia do Evangelho são bem semelhantes ao que se encontra na Primeira Epístola de João. Precisamos confrontar a alternativa de que o Quarto Evangelho é o produto final de uma tradição que João relembrou, proclamou e ponderou, até tornar-se completamente absorvido por essa tradição, ao ponto de expressá-la em suas próprias palavras e idéias. Se, entretanto, a linguagem e pensamento vieram mais de João do que de Jesus, deparamo-nos com o problema de que o autor do Evangelho foi um gênio criativo maior que o próprio Jesus.19

Uma outra solução é que João deliberadamente reformula e interpreta as palavras de Jesus a fim de adequá-las à sua própria situação contemporânea, percebendo, atrás de sua obra, a autoridade do próprio Jesus, agora glorificado e ressuscitado dentre os mortos, continuando a instruir o seu povo através do Espírito (João 14:26; 16:12).20 Uma outra possível solução é a de que Jesus foi um mestre grande demais para poder ser limitado a um único estilo e fraseado de ensino. Possivelmente ele utilizou um estilo vivo, pitoresco, parabólico, quando se dirigiu às multidões na Galiléia, e numa forma mais alongada e profunda de discurso, quando falou às pessoas mais cultas em Jerusalém e aos seus próprios discípulos.21 Uma dificuldade neste ponto é o discurso sobre o pão da vida, em João 6, proferido na Galiléia após a alimentação dos cinco mil, o qual se encontra completamente formulado na fraseologia peculiar chamada “Joanina” . Contudo, João 6:39 afirma que Jesus proferiu este discurso na sinagoga em Cafarnaum, e não como uma oração pública às multidões, e um estudo recente mostra que as idéias centrais neste discurso são completamente consistentes com as concepções judaicas da páscoa.22 É possível que, nos últimos dias, Jesus de fato tenha usado um estilo diferente, que descortinou as mais profundas verdades de sua pessoa e missão aos seus discípulos, e João tenha deliberadamente formulado o Evangelho no seu todo nessa maneira peculiar de expressão. Este é um problema para o qual talvez nunca se encontre uma solução final. Podemos, entretanto, citar as enfáticas palavras de W.F. Albright:

Não há diferença fundamental de ensino entre João e os Sinópticos; o contraste entre eles reside no fato da concentração de tradição ao longo de certos aspectos dos ensinos de Cristo, particularmente aqueles que parecem ter-se assemelhado mais diretamente ao ensino dos essênios. 
Não há absolutamente nada para mostrar que qualquer dos ensinos de Jesus tenha sido distorcido ou falsificado, ou que algum novo elemento vital lhe tenha sido acrescentado. Que as necessidades da igreja primitiva influenciaram a seleção de itens, visando a sua inclusão no Evangelho, deve ser admitido prontamente, mas não há razão para supormos que as necessidades daquela igreja foram responsáveis por quaisquer invenções ou inovações de significado teológico. 
Uma das mais estranhas pressuposições dos eruditos e teólogos do Novo Testamento é a de que a morte de Jesus foi tão limitada que qualquer contraste aparente entre João e os Sinópticos deve ser atribuído a diferenças existentes entre teólogos cristãos primitivos. Todo grande pensador, assim como toda grande personalidade será interpretada diferentemente por diferentes amigos e ouvintes, que hão de selecionar aquilo que parece mais congenial ou útil daquilo que eles viram e ouviram.23

Isto não significa que venhamos a fazer vista grossa para as diferenças entre João e os Sinópticos, especialmente nas ênfases teológicas divergentes. É difícil evitar a conclusão de que João reflete uma medida maior de interpretação teológica do que os Sinópticos. Contudo, já vai longe o tempo quando os Sinópticos eram considerados “simples” história. Foram escritos por homens que tornaram-se convictos, através da ressurreição, de que Jesus era o Messias e o Filho de Deus (Mar. 1:1) e escreveram “boas-novas” à luz dessa fé. Os Evangelhos Sinópticos são tanto teologia quanto história.24 João não faz mais do que tornar ainda mais explícito o que estava sempre implícito nos Sinópticos e que, algumas vezes, tornou-se explícito (Mat. 11:25-30).

“A diferença entre eles não está no fato de que João é teológico e os outros não o são, mas que todos são teológicos de modos diferentes.”25 Uma história interpretada pode repres entar com mais fidelidade os fatos de uma situação do que na mera crônica deeventos. Se João é uma interpretação teológica, é uma interpretação de eventos a respeito dos quais ele estava convicto que se deram na história. Obviamente não é o intento dos Evangelhos Sinópticos dar um registro da ipsissima verba de Jesus nem uma biografia dos eventos de sua vida. São descrições de Jesus e sumários do seu ensino.

Mateus e Lucas sentiram-se livres para dar uma nova disposição ao material de Marcos e para registrar o ensino de Jesus com considerável liberdade.26 Se João usou mais liberdade que Mateus e Lucas, é porque ele desejava dar descrição mais profunda e, em última análise, mais real de Jesus. A tradição histórica, “objetiva” , está tão interligada com a interpretação Joanina que é impossível separá-las.27

O fato de que João escreve uma interpretação teológica profunda não pode ser responsabilizado pela forma e linguagem particular do Evangelho. As semelhanças entre João e Qumran provam, no mínimo, que a fraseologia e idéias do Quarto Evangelho poderiam ter surgido na Palestina no princípio do primeiro século A.D.

Isto, entretanto, não fornece uma solução para o problema da razão, porque o Quarto Evangelho assumiu sua forma diferente e distinta. A tese de que o Evangelho deve ser compreendido como um produto do pensamento filosófico ou gnóstico helenístico tem pouca consistência para ser recomendada.28 Entretanto, dificilmente as semelhanças entre João, e o pensamento helenístico popular podem ser atribuídas ao mero acaso, em virtude das semelhanças com relação aos escritos de Qumran.

A melhor solução parece ser a de que João foi escrito, conforme sugere a tradição patrística, ao final do primeiro século, para refutar uma tendência gnóstica na Igreja. Uma pista pode ser encontrada na Primeira Epístola, a qual provavelmente teve origem no mesmo círculo que o do Evangelho: a negação de que Jesus tivesse vindo em carne (I João 4:2). Falsos mestres se levantaram na Igreja, os quais incorporaram o espírito do anticristo (I João 2:18,19) e negavam a verdadeira messianidade de Jesus.

Se o Evangelho, da mesma forma que a Primeira Epístola,29 foi escrito para refutar um gnosticismo incipiente, torna-se clara a razão para sua mensagem e fraseologia particular. João utiliza palavras e idéias familiares nos círculos gnósticos para refutar as próprias tendências gnósticas. A base de sua fraseologia remonta à Palestina, e, sem dúvida, ao próprio Jesus. Mas João escolheu formular o seu Evangelho, como um todo, em linguagem que provavelmente tenha sido usada por nosso Senhor somente em diálogo íntimo com os seus discípulos ou em argumentação teológica, com os escribas, bem preparada, com a finalidade de trazer à baila o pleno significado do Verbo eterno que se tornou carne (João 1:14) no evento histórico de Jesus Cristo.30

De qualquer forma, a nossa tarefa, ao estudarmos a teologia do Quarto Evangelho, é não somente afirmar positivamente o pensamento de João, mas procurar descobrir até que ponto ele é semelhante ou diferente do pensamento registrado pelos Sinópticos. Expõe João uma teologia radicalmente reinterpretada, ou o seu Evangelho incorpora a mesma teologia essencial, mas com ênfases diferentes? Esta é a nossa tarefa, com seu duplo aspecto.




Fonte: Teologia do Novo Testamento de George Eldon Ladd; tradução Darci Dusilek, Jussara Marindir e Pinto Simões Árias. São Paulo: Hagnos, 2001, pp. 201-207.



1 “Todo homem” é potencial, não real. Ver W. F. Howard em IB VIII, 470. Entretanto, o verbo pode significar “ lançar luz sobre” , i. é., mostrar se alguém é bom ou mau. A luz é judicial, como também iluminadora.
2 Ver a tabela em C.K. Barrett,John, p. 5 e 6.
3 C.K. Barrett, J o h n , p. 3. Uma boa ilustração deste fato é o livro de E.F. Scott, The Fourth Gospel: Its Purpose and Its Theology (1906). Recentemente, E. Kásemann defendeu a tese de que a cristologia de João é um docetismo naive, paralelo à linha principal da teologia cristã. Ver The Testament o f Jesus (1968).
4 Ver B.W. Bacon, The Gospel o f the Hellenists (1933).
5 Ver J. L. Price, Interpreting theNT(1961), p. 546.
6 Para levantamentos de tais esforços recentes, ver W.F. Howard, The Fourth Gospel in Recent Criticism (1955); C.H. Dodd, The Fourth Gospel (1953), p. 3-130; R.E. Brown, John , I, lii-lxv; W. G. Kümmel, Introduction to theNT( 1966), p. 154-61; R. Schnackenburg, John, I, 119-52.
7 C.H. Dodd, The Fourth Gospel, p. 10-53 et passim. Semelhanças entre João e a Hermética foram devidamente assinaladas pelo livro de W. D. Davies, Invitation to the NT(1966), p. 398-408.
8 Somente o verbo ocorre em João.
9 Ver G.D. Kilpatrick, “The Religious Background of the Fourth Gospel” , em Studies in the Fourth Gospel, ed, por F. L. Cross (1957), p. 36-44.
10 Ver R. Bultmann, Primitive Christianity in Its Contemporary Setting (1956), p. 163 e ss. Ver também H. Jonas, The Gnostic Religion (1958).
11 Ver R. McL. Wilson, The Gnostic Problem (1958); Gnosis and the NT (1968); J. Munck, “The NT and Gnosticism” , em Current Issues in NT Interpretation, ed. por W. Klassen (1962), p. 224-38. Para o problema de um movimento gnóstico pré-cristão, ver os ensaios por G. Quispel, R. McL. Wilson e H. Jonas, “Gnosticism and the NT", em The Bible in Mod em Scholarship, ed. por J.P. Hyatt (1965),
p. 252-93.
12 Para um breve levantamento, ver W.C. van Unnick, Newly Discovered Gnostic Writings (1960); para um estudo detalhado, ver J. Doresse, The Secret Books o f the Egyptian Gnostics (1958); para um
relatório mais recente, ver J.M. Robinson, “The Coptic Gnostic Library Today", NTS 14 (1968), 356-401.
13 J. M. Robinson in NTS 14, 380. Um remidor celestial aparece no livro cóptico “Apocalypse of Adam” , mas ainda não está claro que isto representa uma tradição pré-cristã. Ver G.W. MacRae, “The Coptic Gnostic Apocalypse of Adam” , em Heythrop Journal, 6 (1965), 27-35; K. Rudolph, em TLZ 90 (1965), 361-62.
14 A.D. Nock, “Gnosticism” , HTR 57 (1964), 276.
15 Para o conhecimento desta comunidade e o significado de sua literatura,ver K. Stendahl,ed.,77ie Scrolls and the NT (1958); F.M. Cross, Jr., The Ancient Library o f Qumran and Modern Biblical Studies (1957); J. T. Milik, Ten Years of Discovery in the Wilderness o fJu d a ea (1959). Para uma boa tradução dos textos de Qumram, ver A. Dupont-Sommer, The Essene Writings fr om Qumran (1961).
16 Cf. R.E. Brown, “The Qumran Scrolls and the Johannine Gospel and Epistles” , em NT Essays (1968), p. 138-73. Para outras conexões possíveis, ver W.G. Kümmel, Introduction to the NT, p. 156-58. L. Morris (Studies in the Fourth Gospel (1969), p. 353), admite a necessidade de reconhecer um relacionamento indireto, se não direto.
17 J.A.T. Robinson, Twelve NT Studies (1962), p. 94-106; ver também A.M. Hunter, According to John. The New Look at the Fourth Gospel (1968).
18 Ver C.H. Dodd, Historical Tradition in the Fourth Gospel (1963). Dodd, entretanto, não apela aos
escritos de Qumran para dar apoio às suas conclusões.
19 D. Guthrie, NT Introduction (1965), I, 268.
20 Ver G.W. Barker et al.. The NTSpeaks (1969), p. 395. Este ponto de vista é defendido pormenorizadamente pelo erudito católico, F. Mussner, The Historical Jesus in the Gospel ofSt. John (1967).
21 D. Guthrie, NT Introduction, p. 266 e ss. Ver também H. Riesenfeld, The Gospel Tradition and Its
Beginnings (1957), p. 28. R.E. Brown (John, I, lxiv) reconhece que provavelmente Jesus utilizou mais
de um estilo de expressão e A.J.B. Higgins reconhece que Jesus possivelmente usou fraseologia e idéias “Joaninas” . Ver A.J.B. Higgins, “The Words of Jesus According to St. John” , BJRL 49 (1966-67), 384.
22 B. Gärtner, John 6 and the Jewish Passover (1959). R.E. Brown pensa que há um núcleo de tradição
autêntica em João 6 (John, I, xlix).
23 W.F. Albright, “Recent Discoveries in Palestine and The Gospel of John” , em The Background o f the NT and Its Eschatology, ed. por W. D. Davies e D. Daube (1956), p. 170-71.
24 Ver G.E. Ladd, The NT and Criticism (1967), p. 153 e ss.
25 A.M. Ward, em £T 8 1 (1969/70), 69.
26 Ver G.E. Ladd. The N T and Criticism, Cap. 5.
27 Ver R. Schnackenburg “The Origin of the Fourth Gospel” , em Jesus and Man s Hope (1970), p. 226.
28 Ver a crítica de A.M. Ward com relação a Kâsemann em AT 81 (1969-70), 72.
29 VerF.V. Filson, “First John: Purpose and Message", Int (1969), 268 e ss.
30 Uma excelente ilustração de como João escreve com uma “visão histórica bifocal", i. é., registrando os eventos do passado, mas adaptando-os ao seu próprio tempo, é encontrado no ensaio de J.P. Martins, “History and Eschatology in the Lazarus Narrative", SJTh 17 (1964), 332-43.