João 6:1-71 — Interpretação

A multiplicação dos pães para cinco mil pessoas, e o discurso sobre o Pão da Vida (Jo 6.1-7.1)

Este é o único milagre comum a todos os quatro Evangelhos. Ver notas, Mt 14.13-23; Mc 6.30-46; Lc 9.10-17. "A narração de uma cena crítica na obra de Cristo na Galileia é seguida pela narração de uma cena semelhante em Jerusalém" (Westcott). "O evangelista já descreveu e explicou a incredulidade dos judeus em Jerusalém. Agora, não obstante Jo 4.45-54, expõe a incredulidade dos Galileus" (Hoskyns). Os dois sinais relatados neste capítulo constituem o fundo para o discurso sobre o pão da vida. A multiplicação dos pães para os cinco mil ocorre depois destas cousas (1) e quando a páscoa estava próxima (4). Embora seja praticamente impossível estabelecer uma cronologia exata dos acontecimentos, é bem provável que o ministério de Jesus na Galileia, como narrado nos sinóticos, se enquadre dentro do tempo marcado pelos limites do capítulo 6. A narrativa episódica do capítulo 6 abrange "o essencial do ministério na Galileia" (Westcott). A multiplicação dos pães para os cinco mil tem lugar nos textos sinóticos depois da volta dos discípulos, após suas lidas missionárias e o triste anúncio da morte do Batista. A turba foi conquistada pela benevolência de Jesus que sempre fazia o bem, e o seguiu de lugar em lugar. Note-se que Jesus desejou passar um tempo quieto (cfr. Mt 14.13; Mc 6.31; Lc 9.10). A narrativa joanina difere das sinóticas em diversos pormenores. Não lhe faltam evidências autênticas de uma testemunha ocular. A páscoa estava próxima (4). Este detalhe explica a presença de uma grande multidão, e sugere algo para compreender o sentido espiritual do milagre. Jesus vê a turba chegando, e propõe que se coma (5). Tomando a iniciativa, Ele fala sobre o assunto com Filipe, possivelmente com o intuito de prová-lo, porque ele bem sabia o que estava para fazer (6). Filipe responde de uma maneira eficiente e calculada (7). Na sua resposta, ele não avalia a situação à luz da fé, nem contempla a capacidade do Senhor de satisfazer as necessidades do povo. Alguém sugere que a exatidão da resposta pressuponha uma consideração prévia do problema, e que a importância citada represente o total dos seus recursos materiais. Um rapaz (9); gr. paidarion, "rapazinho". Cevada (9); comida dos pobres. O detalhe salienta mais ainda a insuficiência dos recursos dos discípulos. Jesus manda aos discípulos que façam assentar-se o povo. Povo, homens (10). É possível que a referência específica aos homens indique chefes de famílias, e que todo o povo se sentou em famílias. Jesus abençoa a parca provisão, que se multiplica milagrosamente para o povo (11). João preserva a ordem de Jesus que recolham os pedaços, em conseqüência da qual doze cestos ficaram cheios dos pedaços de pão (12,13). A turba fica sobremaneira impressionada e reconhece a significação messiânica do milagre: Este é verdadeiramente o profeta que devia vir ao mundo (14). Ver Dt 18.15. O milagre sem dúvida relembra ao povo a provisão do maná, séculos antes. Ver comentário sobre a discussão mais tarde na sinagoga.

Marcos relata que depois do milagre da multiplicação dos pães para cinco mil, Jesus constrange os Seus discípulos a embarcarem e saírem do lugar do milagre (Mc 6.45). João oferece a razão (15): o povo estava prestes a levá-lo e aclamá-lo rei na próxima festa. Jesus afasta primeiro os seus discípulos do perigoso entusiasmo da turba, então sobe à montanha para oração e comunhão (15). Os discípulos esperavam que Jesus voltasse para eles mais tarde, possivelmente em Betsaida (Mc 6.45), mas "Jesus ainda não viera ter com eles" (17). Na ausência de Jesus, os discípulos seguem rumo a Cafarnaum, mas em caminho um temporal não tarda a desfechar. Estando no meio do mar, vêem Jesus andando por sobre as águas, e ficam atemorizados pela aparição. Jesus os acalma dizendo, Sou eu. Não temais! (20). De bom grado, recebem-no no barco.

O resultado imediato dos dois sinais é que a multidão vai atrás de Jesus. João não menciona o fato que Jesus despediu a multidão, mas pode-se concluir que muitos ficaram no lugar onde foi realizado o milagre (22). No dia seguinte, atravessaram para a outra banda do mar, e estavam admirados de descobrirem Jesus ali primeiro (24-25). Vós me procurais ... porque comestes dos pães (26). Jesus condena a atitude deles por ser puramente materialista, sem interesse espiritual, Procuraram-No por benefícios apenas materiais. Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna (27).

Jesus os exorta a apropriarem-se do alimento espiritual que somente Ele dá; ao mesmo tempo aponta para a aprovação divina da sua missão: Deus o Pai o confirmou com o seu selo (27). Os judeus entendem o fato que tal dádiva se verifica somente pelas obras que a acompanham. Perguntam o que devem fazer para realizar tais obras (28). Jesus responde que a obra que lhes compete é fé nAquele a quem Deus mandou (29). Embora aceitando Sua pretensão, eles insistem que o dom intangível da fé requer uma evidência externa. Pede-se-lhe um sinal dos céus para confirmar que Ele é autor da vida (30).

Porventura será inaugurada a era messiânica com um milagre comparável ao do maná sobrenatural? (31; cfr. Êx 16.15). O Senhor replica a inferência, negando que fosse Moisés que lhes deu o maná, e mais ainda, que esse maná fosse, no sentido espiritual, "pão do céu". É meu Pai quem vos dá (32). O verbo do original grego significa ação continua, em contraste com o aoristo deu.

Outrossim, Jesus define o verdadeiro pão como o que desce do céu e da vida ao mundo (33). Os judeus desejam este pão, julgando que seja uma provisão miraculosa descida do céu (34). Jesus responde que Ele mesmo é o pão da vida (35), que satisfaz a fome espiritual do crente. Os galileus já O viram sem crer nEle, e agora perdem o direito à vida eterna por causa da sua incredulidade (36). Na sua busca, foram motivados por interesses puramente materiais. O motivo que conduz a Cristo é a fé e os que têm essa fé são dados por Deus a seu Filho. Todo aquele que o Pai me dá (37). Não é por acaso que o Pai traz os homens para Si (cfr. vers. 44). O dom é irrevogável, pois o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora (37). Eu o ressuscitarei (40). A ressurreição é complemento essencial ao dom da vida eterna. No último dia (40). Ver também vers. 39,44,54. O termo representa o conceito escatológico usado comumente pelos judeus para referir-se ao tempo da plena vindicação e glória do Messias. Cfr. Jo 11.24.

Os judeus são ofendidos pela reivindicação de Jesus, que é o pão da vida que desceu do céu, por ser Ele do proletariado, de família humilde (41-42). Nos vers. 43-51, Jesus responde, desenvolvendo a idéia, já mencionada, da felicidade de quem crê verdadeiramente nEle (36-40). Somente os que são trazidos e iluminados pelo Pai podem vir a Jesus (44), e tal iluminação vem diretamente por meio da atividade de Deus. Os profetas (45); referência àquela seção das Escrituras do Velho Testamento que leva este nome. E serão todos ensinados por Deus (45). Cfr. Is 54.13; Jr 31.34; Mq 4.2. Jesus é o único que desfruta do supremo privilégio de ver a Deus (46). De novo Jesus se declara ser o pão da vida (48) e afirma, solenemente, que ter fé nEle é ter a vida eterna (47). Contrasta o maná dado no deserto com o pão que Ele dá: enquanto o maná não impediu a operação da morte, (49), quem comer do pão da vida que Ele oferece nunca perecerá (50-51). Opera na Sua pessoa o princípio da vida eterna, em contraste com o maná que perece. Então Jesus identifica este pão espiritual que Ele dá com a sua própria carne, que dará pela vida do mundo (51). É pela assimilação da Sua natureza divina que os homens se alimentam espiritualmente.

Neste ponto os judeus se mostram completamente descrentes e começam a disputar entre si (52). O discurso chega ao seu apogeu com a declaração singular de Jesus no vers. 53. O ato de dar a Sua carne pela vida do mundo assume agora um caráter sacrifical. A linguagem é figurada, e muitos comentaristas dão um sentido sacramental aos termos, que se relacionam com os símbolos usados na Ceia do Senhor, para representarem o comer e o beber do corpo e do sangue de Cristo. Entretanto, neste contexto, a ideia primordial se limita ao caráter redentor da morte de Jesus e aos benefícios que resultam duma apropriação dos valores espirituais da Sua morte. É secundário o conceito da maneira em que os homens participam desses benefícios. Quem comer a minha carne (54). Jesus assevera que a apropriação dos valores espirituais da sua vida e de sua morte resulta na possessão imediata de vida eterna, e a certeza da ressurreição vindoura. Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida (55). Sua carne e seu sangue alimentam realmente a alma.

Uma íntima união procede da assimilação da Sua natureza (56), tal união sendo parecida com a que existe entre o Pai e o Filho (57). Vers. 58 dá em síntese todo o ensino que precede, e o vers. 59 acrescenta um detalhe histórico, quanto ao lugar onde o discurso fora entregue.

O evangelista descreve os diferentes resultados do discurso. A apresentação das reivindicações de Jesus, e sua revelação de si mesmo como o pão vivo de Deus, partido pela humanidade, produz a incredulidade. Duro é este discurso (60). Mesmo os discípulos acharam difícil entender Sua doutrina, e se escandalizaram. O conhecimento sobrenatural de Jesus revela os pensamentos deles, e Ele diz: Isto vos escandaliza? Que será, pois, se virdes o Filho do homem subir para o lugar onde primeiro estava? (61-62). Sua ascensão para a presença do Pai, sem dúvida, removerá qualquer conceito materialista do comer da carne e do beber do sangue de Cristo, e mostrará o verdadeiro significado de participação espiritual nos Seus méritos e triunfo. A cruz e a ressurreição são os fatos básicos da revelação. A resposta espiritual a estes fatos se produz mediante a palavra de Jesus, que é espírito... e
vida (63). A vida carnal não pode evoluir para tornar-se vida espiritual. A apropriação espiritual é obra do Espírito. As palavras de Jesus neste discurso são vivificantes, e criam na alma desejos espirituais e vida.

A incredulidade dos discípulos não se constituiu em nenhuma surpresa para Jesus. Ele previu a deslealdade deles, e a traição de Judas era-lhe conhecida de antemão (64; cfr. Jo 13.11). Por esta razão, Jesus salienta o poder do Pai em despertar resposta espiritual em todos aqueles que realmente crêem (65). Este discurso marca o apogeu no ministério de Jesus, pois desde então muitos dos seus discípulos o abandonaram (66). As palavras de Jesus coam os genuínos discípulos dos demais homens. Jesus se dirige ao círculo de seus discípulos mais íntimos com as seguintes palavras: Porventura quereis também vós outros retirar-vos? (67). Jesus encontra lealdade e crescente convicção na magnífica declaração de Pedro: Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna (68). A confissão de Pedro é reforçada pelo testemunho unido dos Seus discípulos: Nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus (69). Pedro fala em nome de todos, mas há um traidor entre eles. O traidor já é conhecido por Jesus (70, cfr. nota sobre vers. 64). Judas, filho de Simão Iscariotes (71). Iscariotes provavelmente significa "homem de Queriote", e em tal caso, Judas seria o único discípulo que não era galileu. O evangelista acrescenta com pesar que seria ele o traidor do Mestre. Tal ato só pode ser cometido por alguém que é diabo (71; cfr. 7.20 n.). A tragédia se torna mais dramática por ser ele um dos doze.