João 2:1-23 — Interpretação

O testemunho de Jesus aos judeus (Jo 2.1-3.)

O milagre de Caná foi o primeiro dos "sinais" de Cristo (11). O problema que se nos apresenta é saber se o motivo do evangelista é histórico ou alegórico. O evento tem em si marcos de historicidade, os quais podem ser evidenciados pelos seus minuciosos pormenores. Não há dúvida que tais detalhes históricos facilitam uma interpretação alegórica. A história deste milagre tem, indubitavelmente, sua origem em um incidente que manifesta claramente a glória do Senhor. Enquanto que nenhum discurso segue este "sinal" tal qual verificamos no caso dos outros sinais, o evangelista procura associar o sinal com a interpretação e significado espiritual da "nova era" já operante no mundo. A menção das seis talhas de pedra usadas para as purificações dos Judeus (6, ARA) sugere a purificação messiânica.

Ao terceiro dia (1); isto é, três dias depois do dia referido em Jo 1.43 (ver ARA). Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora (4). Em tal resposta, Jesus não desrespeita sua mãe. O uso da palavra "mulher" não significa, necessariamente, repreensão. Entretanto, sua resposta é uma recusa. A hora de manifestar sua glória ainda não tinha chegado. "Minha hora" aponta também para o significado mais profundo da sua morte e glorificação (Cfr. Jo 7.30; Jo 8.20; Jo 12.23,27). Maria persiste em sua fé, sem abandonar a esperança (5). Então, Jesus ordena aos servos que encham os seis vasos de pedra com água, até transbordar.

As talhas cheias tinham a capacidade de mais de 450 litros. Uma mudança processou-se na água. O mestre-sala (8) prova o vinho, e chamando o noivo, comenta, admirado, da boa qualidade do vinho, e declara que o vinho novo é melhor do que o velho.

Este foi o primeiro dos milagres ou sinais que Jesus operou. Note-se de passagem que esta é a evidência mais segura contrária às histórias apócrifas de milagres operados na infância de Jesus. A palavra grega usada aqui é semeion. É distinta de dynamis que pode ser traduzida como "ato de poder", também de ergon, "trabalho". Os milagres do quarto Evangelho são sempre considerados como sinais, mais do que "atos de poder", ou "trabalhos". Os termos são relacionados por causa dos seus valores evidenciais. Jesus assim manifesta sua glória e proclama a nova "era messiânica". Aquele que aparece em carne será o autor de uma nova ordem mundial. E seus discípulos creram nele (11). A crença resultou do milagre; nos Evangelhos sinóticos, é a crença que condiciona o milagre.

Entre as duas narrativas relatando os dois sinais intercala-se a história de uma visita a Cafarnaum (12). Sendo perto do tempo da celebração da páscoa em Jerusalém, Jesus e os doze viajaram da região montanhosa a esta cidade, que fica ao lado norte do Mar da Galiléia. Cafarnaum é geralmente identificada como a moderna Tell Hum. Nesta viagem, Jesus estava acompanhado por sua mãe e seus irmãos e discípulos.

O tempo da páscoa estava próximo, e Jesus, junto com os discípulos, ia subindo a Jerusalém, a fim de participar da festa. Esta é a primeira das páscoas mencionadas neste Evangelho. É ocasião própria para inauguração pública do seu ministério. Jesus visita o templo e encontra, dentro do recinto sagrado, na corte dos gentios, um mercado estabelecido para a venda de animais a serem oferecidos como sacrifícios (14). Lá, os cambistas trocam moedas romanas por judaicas. Jesus sente-se indignado ao máximo por tal profanação do templo de Deus.

Tomando um azorrague de vimes entrelaçados, expulsa-os do templo (15). A ira do Cordeiro é uma realidade.

A precisão da narrativa e a exatidão das minúcias indicam uma testemunha ocular. Pela ordem de Jesus, bois e carneiros são expulsos, dinheiro dos cambistas é espalhado no chão, pombos são retirados. Não façais da casa do meu Pai casa de negócio (16). Não podemos deixar de reconhecer os propósitos de Jesus. O ato é messiânico em sentido. "O relato é um comentário sobre Ml 3.1" (Westcott). O Senhor vem inesperadamente ao seu templo. O julgamento começa na casa de Deus. O zelo que Jesus revela é messiânico em caráter. Ele protesta contra a falta de reverência e espiritualidade no culto do templo. Seu ato pode ser interpretado como purificação messiânica de todo o sistema sacrificial, ato este que tem a sanção do zelo profético.

Lembraram-se os seus discípulos de que está escrito: o zelo da tua casa me consumirá (17). Na palavra consumirá pode haver uma referência à morte de Jesus. "A purificação, da qual este ato é um sinal, depende do sacrifício do seu corpo" (Hoskyns e Davy, The Fourth Gospel).

Os judeus exigem um sinal, pois reconhecem a importância do ato. Pedem um visível atestado da sua autoridade (18). Recebem a resposta em linguagem metafórica, que não entendem: Destruí este santuário e em três dias o reconstruirei (19). Eles o matarão, porém Ele reconstruirá o santuário por eles destruído. A dificuldade neste versículo reside no duplo sentido dos verbos "destruir" e "reconstruir". O verbo "destruir" tem o duplo significado de desfazer, como seja na destruição de um edifício e também da dissolução do corpo. O verbo "reconstruir" aplica-se à construção de uma residência, ou de um santuário. Daí a inferência da ressurreição do corpo. Tendo os verbos dois sentidos, há duas possíveis interpretações. Jesus apresenta o sinal da Sua ressurreição como autoridade para purificar o templo. Os judeus supõem que Jesus se refira literalmente ao templo ainda em construção naquele tempo. Esta construção foi iniciada no ano 20 A. C., e terminada em 63 A. D. Decorreram quarenta e seis anos desde o início da obra, dando ao incidente uma data de 26 ou 27 A. D. Os judeus ainda não pensavam do corpo como templo ou santuário.

Estava Jesus pretendendo, simplesmente, o início de uma nova religião espiritual? O significado deste incidente está ligado com sua posição cronológica. Muitos comentaristas aceitam o acontecimento como fora do seu lugar cronológico e o identificam com o incidente verificado nos Evangelhos sinóticos, realizado no clímax do ministério público de Jesus (Mt 21.12-13; Mc 11.15-17; Lc 19.45-46). Esta identificação se baseia na improbabilidade de dois incidentes diferentes, um no início do ministério e outro no fim. Os dois incidentes têm muitos pontos em comum, entretanto, as minúcias narradas e o caráter apropriado do evento no quarto Evangelho, colocam-no como ato inaugural no ministério de Jesus. A interpretação joanina do incidente confirma sua situação cronológica no início do ministério. A narrativa de João não apresenta nenhum aspecto histórico ou cronologicamente improvável. O evangelista vê imensa significação no fato de que, para ele, o incidente se constitui em a chave da controvérsia entre Jesus e os judeus.

O fundo do discurso sobre o novo nascimento consiste na insuficiência de uma crença baseada em sinais externos (23). Jesus não podia confiar naqueles cuja fé era apenas superficial. Tinha conhecimento perfeito de motivação humana (24-25), como se vê na entrevista com Nicodemos.