João 1:1-8 — Contexto Judaico
No pano de fundo judeu havia quatro correntes que contribuíam de certo modo à idéia do Verbo.
(1) Para o judeu uma palavra era muito mais que um mero som; uma palavra era algo que tinha uma existência ativa e independente e que de fato fazia coisas. Como disse o professor John Paterson: "Para o hebreu a palavra falada era algo muito vivo... Era uma unidade de energia carregada de poder. Voa como uma bala a seu destino". Por essa mesma razão o hebreu era parco em palavras. O vocabulário hebreu tem menos de dez mil palavras; o grego tem duzentas mil. Um poeta moderno nos relata como em uma ocasião o autor de um fato heróico foi incapaz de relatar-lhe a seus companheiros de tribo por falta de palavras. Diante disso ergueu-se um homem "dotado com a magia necessária das palavras", e relatou a história em termos tão vivos e estremecedores que "as palavras adquiriram vida e caminhavam de um lado a outro no coração de seus ouvintes". As palavras do poeta converteram-se em um poder.
A história tem muitos exemplos desse tipo de coisas. Quando John Knox pregava durante o tempo da Reforma na Escócia se dizia que a voz desse homem só infundia mais coragem no coração de seus ouvintes que dez mil trompetistas soando em seus ouvidos. Suas palavras agiam sobre as pessoas. Nos dias da Revolução Francesa, Rouget de Lisle escreveu a Marselhesa e essa canção fez com que os homens partissem à revolução.
As palavras faziam coisas. Nos dias da Segunda Guerra Mundial, quando a Inglaterra carecia tanto de aliados como de armas, as palavras do Primeiro-Ministro, Sir Winston Churchill, ao falar com todo o país pelo rádio, elas exerciam influência nas pessoas. Isto era mais certo no Oriente, e o é ainda. Para os orientais uma palavra não é um mero som; é uma força que faz coisas. O professor Paterson recorda um incidente que Sir Adam Smith relata. Em uma ocasião em que Sir George Adam Smith viajava pelo deserto asiático, um grupo de maometanos lhe deram as costumeiras boas-vindas: "A paz seja contigo". No momento não perceberam que era um cristão; mas quando descobriram que haviam proferido uma bênção a um infiel, apressaram-se a voltar pedindo que a devolvesse. A palavra era como uma coisa que se podia enviar para fazer coisas e a ela se podia trazer de volta.
Podemos compreender como, para os povos orientais, as palavras tinham uma existência independente, carregada de poder.
(2) O Antigo Testamento está cheio dessa idéia geral do poder das palavras. Uma vez que Isaque foi enganado para que abençoasse a Jacó em lugar de Esaú, não teria podido fazer nada para recuperar essa bênção (Gênesis 27). A palavra tinha saído e tinha começado a agir e não havia nada que pudesse detê-la. Vemos a palavra de Deus em ação de maneira especial no relato da Criação. A cada passo lemos: "E disse Deus...." (Gênesis 1:3,6,11). A Palavra de Deus é o poder criador.
Aqui e ali nos confrontamos com esta idéia da palavra de Deus criativa, atuante, dinâmica. “Pela palavra do SENHOR foram feitos os céus” (Sal. 33:6). “Enviou-lhes a sua palavra, e os sarou” (Sal. 107:20).
“Ele envia as suas ordens à terra, e sua palavra corre velozmente” (Salmo 147:15). “Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei” (Isaías 55:11). “Não é a minha palavra fogo, diz o SENHOR, e martelo que esmiúça a penha?” (Jeremias 23:29). "Falaste desde o começo da criação, já no primeiro dia, e disseste: 'Sejam feitos o céu e a terra'. E sua palavra foi uma obra perfeita" (2 Esdras 6:38). O autor de Sabedoria se dirige a Deus como "Aquele que com sua palavra fez todas as coisas" (Sabedoria 9:1).
No Antigo Testamento por toda parte se vê esta idéia da palavra poderosa, criadora. Inclusive as palavras dos homens têm uma sorte de atividade dinâmica; quanto mais a de Deus?
(3) Na vida religiosa hebréia intervinha algo que acentuou em grande medida o desenvolvimento desta idéia da Palavra de Deus. Durante mais de um século antes da vinda de Jesus, o hebraico tinha sido um idioma esquecido. O Antigo Testamento estava escrito em hebraico mas os judeus já não o conheciam. Os estudiosos sabiam, mas não o povo comum.
O povo comum falava um desenvolvimento do hebraico chamado aramaico. O aramaico é para o hebreu um pouco parecido com o que o inglês moderno é para o anglo-saxão. Visto que essa era a situação, era preciso traduzir as escrituras do Antigo Testamento a este idioma que o povo entendia, e estas traduções eram chamadas targuns. Na sinagoga se liam as escrituras no hebraico original, mas depois eram traduzidas ao aramaico que o povo falava e as traduções que se empregavam eram os targuns. Agora, os targuns foram redigidos em uma hora em que o povo estava fascinado com a transcendência de Deus. Quer dizer, foram produzidos em um momento em que os homens só podiam pensar na distância e Deus como um ser distante e diferente.
Devido a isso os homens que fizeram as traduções, que aparecem nos targuns sentiam muito temor em atribuir pensamentos e emoções, ações e reações humanas a Deus. Em termos técnicos, fizeram todos os esforços possíveis por evitar o antropomorfismo ao falar de Deus. Quer dizer, fizeram todos os esforços possíveis por evitar atribuir sentimentos e ações humanas a Deus. Agora, o Antigo Testamento em geral fala de Deus de maneira humana; e em qualquer lugar que ocorria algo semelhante no Antigo Testamento, os targuns substituem o nome de Deus por palavra de Deus. Vejamos que efeitos teve este costume.
Em Êxodo 19:17 lemos que “E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus ״ . Os targuns consideravam que isso era uma maneira muito humana de falar de Deus e diziam que Moisés tirou o povo do acampamento para ir ao encontro da palavra de Deus. Em Êxodo 31:13 lemos que Deus disse ao povo que na sábado “é sinal entre mim e vós nas vossas gerações”. Essa é uma forma muito humana de falar para os targuns, portanto dizem que o sábado é um sinal "entre minha palavra e vós". Deuteronômio 9:3 diz que Deus é um fogo consumidor, mas os targuns traduzem que a palavra de Deus é um fogo consumidor. Isaías 48:13 mostra uma grande imagem da criação: “Também a minha mão fundou a terra, e a minha destra mediu os céus a palmos”. Para os targuns esta é uma imagem de Deus muito humana, e fazem Deus dizer: "Por minha palavra fundei a terra; e por meu poder suspendi os céus". Inclusive mudam uma passagem tão maravilhosa como Deuteronômio 33:27, que fala dos "braços eternos" de Deus, e o convertem nisto: "O eterno Deus é seu refúgio, e por sua palavra o mundo foi criado". No Targum de Jônatas esta frase a palavra de Deus aparece não menos de trezentas e vinte vezes. É certo que não é mais que uma paráfrase do nome de Deus, que os tradutores empregavam quando queriam evitar atribuir pensamentos e ações humanos a Deus; mas o certo é que a frase a palavra de Deus se converteu em uma das formas mais comuns da expressão judaica. Tratava-se de uma frase que qualquer judeu devoto podia ouvir e reconhecer porque a tinha ouvido tantas vezes na sinagoga quando se liam as escrituras. Todo judeu estava acostumado a falar da Memra, a Palavra de Deus.
(4) A esta altura devemos tomar nota de um fato que é fundamental para o desenvolvimento posterior desta idéia da palavra. O termo grego para palavra é Logos; mas Logos, não significa somente palavra, também quer dizer razão. Para João, e para todos os grandes pensadores que fizeram uso desta idéia, estes dois significados sempre estavam intimamente entrelaçados. Quando usavam a palavra Logos sempre tinham presente as idéias paralelas da palavra de Deus e a razão de Deus.
Agora, os judeus tinham um tipo de literatura chamada literatura sapiencial. Esta literatura sapiencial era a sabedoria concentrada dos sábios e dos homens inteligentes. Em geral não é especulativa ou filosófica; pelo contrário, trata-se de uma sabedoria prática para a vida e seu desempenho. No Antigo Testamento o maior exemplo deste tipo de literatura é o livro de Provérbios. No livro de Provérbios há certas passagens que atribuem um poder misterioso, criativo, vitalizador e eterno à sabedoria (Sophia). Poderia dizer-se que nestas passagens se personificou a sabedoria e ela foi considerada como o agente, instrumento e colaborador eterno de Deus.
Três são as passagens principais. O primeiro é Provérbios 3:13-26. De toda a passagem podemos destacar em forma especial:
“É árvore de vida para os que a alcançam, e felizes são todos os que
a retêm. O SENHOR com sabedoria fundou a terra, com inteligência
estabeleceu os céus. Pelo seu conhecimento os abismos se rompem, e as
nuvens destilam orvalho” (Provérbios 3:18-20).
Agora recordamos que Logos significa palavra e também significa razão. Já vimos o que pensavam os judeus a respeito da palavra poderosa e criadora de Deus. Aqui vemos o outro aspecto que começa a fazer sua aparição. A sabedoria é o agente de Deus na iluminação e na criação. E a sabedoria e a razão são duas coisas muito parecidas. De maneira que aqui vemos aparecer o outro lado da palavra Logos. Vimos quão importante era esse termo no sentido de palavra; agora vemos que está começando a ser importante no sentido de sabedoria ou razão.
A segunda passagem importante é Provérbios 4:5-13. Dentro da passagem podemos destacar: “Retém a instrução e não a largues; guarda-a, porque ela é a tua vida”. A palavra é a luz dos homens, e a sabedoria é a luz dos homens. Agora as duas idéias se estão amalgamando com rapidez. A passagem mais importante é Provérbios 8:1—9:2. Nele podemos fazer ressaltar de maneira especial:
Quando lemos essa passagem encontramos um eco atrás de outro do que diz João sobre o Verbo, a Palavra, o Logos, no primeiro capítulo do quarto Evangelho. A sabedoria tinha essa existência eterna, essa função iluminadora, esse poder criador que João atribuía à Palavra, ao Verbo, aos Logos, com o que identificava a Jesus Cristo.
O desenvolvimento desta idéia de sabedoria não parou aqui. Entre o Antigo e o Novo Testamento, os homens continuaram escrevendo e produzindo este tipo de literatura chamado literatura sapiencial. Possuía tanta sabedoria concentrada; tirava tanto da experiência dos homens sábios que era uma preciosa guia para a vida. Escreveram-se dois grandes livros em particular, que se incluem entre os apócrifos, e que são livros que ajudarão a alma de qualquer pessoa que as leia.
(a) O primeiro é o livro chamado A Sabedoria de Jesus, filho do Sirac, ou, segundo seu título mais comum, Eclesiástico. Este livro também dá muita importância à sabedoria criadora e eterna de Deus.
"Mas areias do mar; as gotas da chuva E os dias do passado, quem poderá contá-los?
A altura do céu, a amplidão da terra, a profundeza do abismo, quem as poderá explorar?
Antes de todas estas coisas foi criada a Sabedoria,
e a inteligência prudente existe desde sempre."
(Eclesiástico 1:2-4, Bíblia de Jerusalém, ênfase do autor)
"Saí da boca do Altíssimo,
E como nuvem cobri a terra.
Armei a minha tenda nas alturas
e meu trono era uma coluna de nuvens.
Só eu rodeei a abóbada celeste,
Eu percorri a profundeza dos abismos"
(Eclesiástico 24:3-5, Bíblia de Jerusalém).
"Criou-me antes dos séculos, desde o princípio,
e para sempre não deixarei de existir".
(Eclesiástico 24:14, Bíblia de Jerusalém).
Aqui voltamos a encontrar a sabedoria como o poder eterno, criador, de Deus que esteve a seu lado nos dias da criação e no princípio do tempo.
(b) O Eclesiástico foi escrito na Palestina ao redor de 100 a.C. mas quase ao mesmo tempo se estava escrevendo um livro igualmente importante em Alexandria, Egito. Chama-se A Sabedoria de Salomão.
Neste livro está a imagem mais grandiosa da sabedoria. A sabedoria é o tesouro que usam os homens para participar da amizade de Deus (7:14). A sabedoria é o artífice de todas as coisas (7:22). É o hálito do poder divino e um puro eflúvio da glória de Deus (7:25). Pode fazer todas as coisas e renova tudo (7:27). Mas o autor deste livro faz algo mais que falar da sabedoria; iguala a sabedoria com a palavra. Para ele as duas idéias eram iguais. Podia falar na mesma frase, da sabedoria de Deus e da palavra de Deus dando-lhes o mesmo sentido. Quando ora a Deus, é assim como se dirige a ele:
"Deus dos pais, Senhor de misericórdia,
que tudo criaste com tua palavra,
e com tua sabedoria formaste o homem"
(Sabedoria 9:1-2, Bíblia de Jerusalém, ênfase do autor ).
Pode falar da palavra quase como João o faria mais tarde:
"Quando um silêncio profundo envolvia tidas as coisas
e a noite mediava o seu rápido percurso,
tua Palavra onipotente lançou-se, guerreiro inexorável,
do trono real dos céus para o meio de uma terra de extermínio.
Trazendo a espada afiada de tua ordem irrevogável,
deteve-se e encheu de morte o universo:
de um lado tocava o céu, de outro pisava a terra.”
(Sabedoria 18:14-16, Bíblia de Jerusalém, ênfase do autor).
Para o autor do Livro da Sabedoria, a sabedoria era o poder eterno, iluminador, criador, de Deus; a sabedoria e a palavra eram uma e a mesma coisa. Os instrumentos e agentes de Deus na criação foram a sabedoria e a palavra, e são elas quem sempre traz ao coração e a mente dos homens a vontade de Deus.
De maneira que quando João procurava uma forma de apresentar o cristianismo encontrou a idéia da palavra dentro de sua própria fé e na tradição de seu próprio povo; a palavra comum que, em si mesma, não é um mero som, e sim algo dinâmico, a palavra de Deus mediante a qual Deus criou o mundo, a palavra dos targuns; que expressavam a idéia da ação de Deus, a sabedoria da literatura sapiencial que era o eterno poder criador e iluminador de Deus. Assim, pois, João disse: "Se querem ver essa palavra de Deus, se querem ver o poder criador de Deus, se querem ver essa palavra que deu existência ao mundo e que dá vida e luz a todos os homens, olhem a Jesus Cristo. Nele a palavra de Deus habitou entre vós."
(1) Para o judeu uma palavra era muito mais que um mero som; uma palavra era algo que tinha uma existência ativa e independente e que de fato fazia coisas. Como disse o professor John Paterson: "Para o hebreu a palavra falada era algo muito vivo... Era uma unidade de energia carregada de poder. Voa como uma bala a seu destino". Por essa mesma razão o hebreu era parco em palavras. O vocabulário hebreu tem menos de dez mil palavras; o grego tem duzentas mil. Um poeta moderno nos relata como em uma ocasião o autor de um fato heróico foi incapaz de relatar-lhe a seus companheiros de tribo por falta de palavras. Diante disso ergueu-se um homem "dotado com a magia necessária das palavras", e relatou a história em termos tão vivos e estremecedores que "as palavras adquiriram vida e caminhavam de um lado a outro no coração de seus ouvintes". As palavras do poeta converteram-se em um poder.
A história tem muitos exemplos desse tipo de coisas. Quando John Knox pregava durante o tempo da Reforma na Escócia se dizia que a voz desse homem só infundia mais coragem no coração de seus ouvintes que dez mil trompetistas soando em seus ouvidos. Suas palavras agiam sobre as pessoas. Nos dias da Revolução Francesa, Rouget de Lisle escreveu a Marselhesa e essa canção fez com que os homens partissem à revolução.
As palavras faziam coisas. Nos dias da Segunda Guerra Mundial, quando a Inglaterra carecia tanto de aliados como de armas, as palavras do Primeiro-Ministro, Sir Winston Churchill, ao falar com todo o país pelo rádio, elas exerciam influência nas pessoas. Isto era mais certo no Oriente, e o é ainda. Para os orientais uma palavra não é um mero som; é uma força que faz coisas. O professor Paterson recorda um incidente que Sir Adam Smith relata. Em uma ocasião em que Sir George Adam Smith viajava pelo deserto asiático, um grupo de maometanos lhe deram as costumeiras boas-vindas: "A paz seja contigo". No momento não perceberam que era um cristão; mas quando descobriram que haviam proferido uma bênção a um infiel, apressaram-se a voltar pedindo que a devolvesse. A palavra era como uma coisa que se podia enviar para fazer coisas e a ela se podia trazer de volta.
Podemos compreender como, para os povos orientais, as palavras tinham uma existência independente, carregada de poder.
(2) O Antigo Testamento está cheio dessa idéia geral do poder das palavras. Uma vez que Isaque foi enganado para que abençoasse a Jacó em lugar de Esaú, não teria podido fazer nada para recuperar essa bênção (Gênesis 27). A palavra tinha saído e tinha começado a agir e não havia nada que pudesse detê-la. Vemos a palavra de Deus em ação de maneira especial no relato da Criação. A cada passo lemos: "E disse Deus...." (Gênesis 1:3,6,11). A Palavra de Deus é o poder criador.
Aqui e ali nos confrontamos com esta idéia da palavra de Deus criativa, atuante, dinâmica. “Pela palavra do SENHOR foram feitos os céus” (Sal. 33:6). “Enviou-lhes a sua palavra, e os sarou” (Sal. 107:20).
“Ele envia as suas ordens à terra, e sua palavra corre velozmente” (Salmo 147:15). “Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei” (Isaías 55:11). “Não é a minha palavra fogo, diz o SENHOR, e martelo que esmiúça a penha?” (Jeremias 23:29). "Falaste desde o começo da criação, já no primeiro dia, e disseste: 'Sejam feitos o céu e a terra'. E sua palavra foi uma obra perfeita" (2 Esdras 6:38). O autor de Sabedoria se dirige a Deus como "Aquele que com sua palavra fez todas as coisas" (Sabedoria 9:1).
No Antigo Testamento por toda parte se vê esta idéia da palavra poderosa, criadora. Inclusive as palavras dos homens têm uma sorte de atividade dinâmica; quanto mais a de Deus?
(3) Na vida religiosa hebréia intervinha algo que acentuou em grande medida o desenvolvimento desta idéia da Palavra de Deus. Durante mais de um século antes da vinda de Jesus, o hebraico tinha sido um idioma esquecido. O Antigo Testamento estava escrito em hebraico mas os judeus já não o conheciam. Os estudiosos sabiam, mas não o povo comum.
O povo comum falava um desenvolvimento do hebraico chamado aramaico. O aramaico é para o hebreu um pouco parecido com o que o inglês moderno é para o anglo-saxão. Visto que essa era a situação, era preciso traduzir as escrituras do Antigo Testamento a este idioma que o povo entendia, e estas traduções eram chamadas targuns. Na sinagoga se liam as escrituras no hebraico original, mas depois eram traduzidas ao aramaico que o povo falava e as traduções que se empregavam eram os targuns. Agora, os targuns foram redigidos em uma hora em que o povo estava fascinado com a transcendência de Deus. Quer dizer, foram produzidos em um momento em que os homens só podiam pensar na distância e Deus como um ser distante e diferente.
Devido a isso os homens que fizeram as traduções, que aparecem nos targuns sentiam muito temor em atribuir pensamentos e emoções, ações e reações humanas a Deus. Em termos técnicos, fizeram todos os esforços possíveis por evitar o antropomorfismo ao falar de Deus. Quer dizer, fizeram todos os esforços possíveis por evitar atribuir sentimentos e ações humanas a Deus. Agora, o Antigo Testamento em geral fala de Deus de maneira humana; e em qualquer lugar que ocorria algo semelhante no Antigo Testamento, os targuns substituem o nome de Deus por palavra de Deus. Vejamos que efeitos teve este costume.
Em Êxodo 19:17 lemos que “E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus ״ . Os targuns consideravam que isso era uma maneira muito humana de falar de Deus e diziam que Moisés tirou o povo do acampamento para ir ao encontro da palavra de Deus. Em Êxodo 31:13 lemos que Deus disse ao povo que na sábado “é sinal entre mim e vós nas vossas gerações”. Essa é uma forma muito humana de falar para os targuns, portanto dizem que o sábado é um sinal "entre minha palavra e vós". Deuteronômio 9:3 diz que Deus é um fogo consumidor, mas os targuns traduzem que a palavra de Deus é um fogo consumidor. Isaías 48:13 mostra uma grande imagem da criação: “Também a minha mão fundou a terra, e a minha destra mediu os céus a palmos”. Para os targuns esta é uma imagem de Deus muito humana, e fazem Deus dizer: "Por minha palavra fundei a terra; e por meu poder suspendi os céus". Inclusive mudam uma passagem tão maravilhosa como Deuteronômio 33:27, que fala dos "braços eternos" de Deus, e o convertem nisto: "O eterno Deus é seu refúgio, e por sua palavra o mundo foi criado". No Targum de Jônatas esta frase a palavra de Deus aparece não menos de trezentas e vinte vezes. É certo que não é mais que uma paráfrase do nome de Deus, que os tradutores empregavam quando queriam evitar atribuir pensamentos e ações humanos a Deus; mas o certo é que a frase a palavra de Deus se converteu em uma das formas mais comuns da expressão judaica. Tratava-se de uma frase que qualquer judeu devoto podia ouvir e reconhecer porque a tinha ouvido tantas vezes na sinagoga quando se liam as escrituras. Todo judeu estava acostumado a falar da Memra, a Palavra de Deus.
(4) A esta altura devemos tomar nota de um fato que é fundamental para o desenvolvimento posterior desta idéia da palavra. O termo grego para palavra é Logos; mas Logos, não significa somente palavra, também quer dizer razão. Para João, e para todos os grandes pensadores que fizeram uso desta idéia, estes dois significados sempre estavam intimamente entrelaçados. Quando usavam a palavra Logos sempre tinham presente as idéias paralelas da palavra de Deus e a razão de Deus.
Agora, os judeus tinham um tipo de literatura chamada literatura sapiencial. Esta literatura sapiencial era a sabedoria concentrada dos sábios e dos homens inteligentes. Em geral não é especulativa ou filosófica; pelo contrário, trata-se de uma sabedoria prática para a vida e seu desempenho. No Antigo Testamento o maior exemplo deste tipo de literatura é o livro de Provérbios. No livro de Provérbios há certas passagens que atribuem um poder misterioso, criativo, vitalizador e eterno à sabedoria (Sophia). Poderia dizer-se que nestas passagens se personificou a sabedoria e ela foi considerada como o agente, instrumento e colaborador eterno de Deus.
Três são as passagens principais. O primeiro é Provérbios 3:13-26. De toda a passagem podemos destacar em forma especial:
“É árvore de vida para os que a alcançam, e felizes são todos os que
a retêm. O SENHOR com sabedoria fundou a terra, com inteligência
estabeleceu os céus. Pelo seu conhecimento os abismos se rompem, e as
nuvens destilam orvalho” (Provérbios 3:18-20).
Agora recordamos que Logos significa palavra e também significa razão. Já vimos o que pensavam os judeus a respeito da palavra poderosa e criadora de Deus. Aqui vemos o outro aspecto que começa a fazer sua aparição. A sabedoria é o agente de Deus na iluminação e na criação. E a sabedoria e a razão são duas coisas muito parecidas. De maneira que aqui vemos aparecer o outro lado da palavra Logos. Vimos quão importante era esse termo no sentido de palavra; agora vemos que está começando a ser importante no sentido de sabedoria ou razão.
A segunda passagem importante é Provérbios 4:5-13. Dentro da passagem podemos destacar: “Retém a instrução e não a largues; guarda-a, porque ela é a tua vida”. A palavra é a luz dos homens, e a sabedoria é a luz dos homens. Agora as duas idéias se estão amalgamando com rapidez. A passagem mais importante é Provérbios 8:1—9:2. Nele podemos fazer ressaltar de maneira especial:
"O SENHOR me possuía no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra. Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. Ainda ele não tinha feito a terra, nem as amplidões, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando traçava o horizonte sobre a face do abismo; quando firmava as nuvens de cima; quando estabelecia as fontes do abismo; quando fixava ao mar o seu limite, para que as águas não traspassassem os seus limites; quando compunha os fundamentos da terra; então, eu estava com ele e era seu arquiteto, dia após dia, eu era as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo.” (Provérbios 8:22-30).
Quando lemos essa passagem encontramos um eco atrás de outro do que diz João sobre o Verbo, a Palavra, o Logos, no primeiro capítulo do quarto Evangelho. A sabedoria tinha essa existência eterna, essa função iluminadora, esse poder criador que João atribuía à Palavra, ao Verbo, aos Logos, com o que identificava a Jesus Cristo.
O desenvolvimento desta idéia de sabedoria não parou aqui. Entre o Antigo e o Novo Testamento, os homens continuaram escrevendo e produzindo este tipo de literatura chamado literatura sapiencial. Possuía tanta sabedoria concentrada; tirava tanto da experiência dos homens sábios que era uma preciosa guia para a vida. Escreveram-se dois grandes livros em particular, que se incluem entre os apócrifos, e que são livros que ajudarão a alma de qualquer pessoa que as leia.
(a) O primeiro é o livro chamado A Sabedoria de Jesus, filho do Sirac, ou, segundo seu título mais comum, Eclesiástico. Este livro também dá muita importância à sabedoria criadora e eterna de Deus.
"Mas areias do mar; as gotas da chuva E os dias do passado, quem poderá contá-los?
A altura do céu, a amplidão da terra, a profundeza do abismo, quem as poderá explorar?
Antes de todas estas coisas foi criada a Sabedoria,
e a inteligência prudente existe desde sempre."
(Eclesiástico 1:2-4, Bíblia de Jerusalém, ênfase do autor)
"Saí da boca do Altíssimo,
E como nuvem cobri a terra.
Armei a minha tenda nas alturas
e meu trono era uma coluna de nuvens.
Só eu rodeei a abóbada celeste,
Eu percorri a profundeza dos abismos"
(Eclesiástico 24:3-5, Bíblia de Jerusalém).
"Criou-me antes dos séculos, desde o princípio,
e para sempre não deixarei de existir".
(Eclesiástico 24:14, Bíblia de Jerusalém).
Aqui voltamos a encontrar a sabedoria como o poder eterno, criador, de Deus que esteve a seu lado nos dias da criação e no princípio do tempo.
(b) O Eclesiástico foi escrito na Palestina ao redor de 100 a.C. mas quase ao mesmo tempo se estava escrevendo um livro igualmente importante em Alexandria, Egito. Chama-se A Sabedoria de Salomão.
Neste livro está a imagem mais grandiosa da sabedoria. A sabedoria é o tesouro que usam os homens para participar da amizade de Deus (7:14). A sabedoria é o artífice de todas as coisas (7:22). É o hálito do poder divino e um puro eflúvio da glória de Deus (7:25). Pode fazer todas as coisas e renova tudo (7:27). Mas o autor deste livro faz algo mais que falar da sabedoria; iguala a sabedoria com a palavra. Para ele as duas idéias eram iguais. Podia falar na mesma frase, da sabedoria de Deus e da palavra de Deus dando-lhes o mesmo sentido. Quando ora a Deus, é assim como se dirige a ele:
"Deus dos pais, Senhor de misericórdia,
que tudo criaste com tua palavra,
e com tua sabedoria formaste o homem"
(Sabedoria 9:1-2, Bíblia de Jerusalém, ênfase do autor ).
Pode falar da palavra quase como João o faria mais tarde:
"Quando um silêncio profundo envolvia tidas as coisas
e a noite mediava o seu rápido percurso,
tua Palavra onipotente lançou-se, guerreiro inexorável,
do trono real dos céus para o meio de uma terra de extermínio.
Trazendo a espada afiada de tua ordem irrevogável,
deteve-se e encheu de morte o universo:
de um lado tocava o céu, de outro pisava a terra.”
(Sabedoria 18:14-16, Bíblia de Jerusalém, ênfase do autor).
Para o autor do Livro da Sabedoria, a sabedoria era o poder eterno, iluminador, criador, de Deus; a sabedoria e a palavra eram uma e a mesma coisa. Os instrumentos e agentes de Deus na criação foram a sabedoria e a palavra, e são elas quem sempre traz ao coração e a mente dos homens a vontade de Deus.
De maneira que quando João procurava uma forma de apresentar o cristianismo encontrou a idéia da palavra dentro de sua própria fé e na tradição de seu próprio povo; a palavra comum que, em si mesma, não é um mero som, e sim algo dinâmico, a palavra de Deus mediante a qual Deus criou o mundo, a palavra dos targuns; que expressavam a idéia da ação de Deus, a sabedoria da literatura sapiencial que era o eterno poder criador e iluminador de Deus. Assim, pois, João disse: "Se querem ver essa palavra de Deus, se querem ver o poder criador de Deus, se querem ver essa palavra que deu existência ao mundo e que dá vida e luz a todos os homens, olhem a Jesus Cristo. Nele a palavra de Deus habitou entre vós."