Quem Escreveu o Evangelho de João?
Quem Escreveu o Evangelho de João?
Em geral se afirma que o quarto evangelho não leva o nome do seu autor: à semelhança dos sinóticos, é formalmente anônimo. Até onde temos condições de provar, o título "Segundo João" foi acrescentado a ele assim que os quatro evangelhos começaram a circular juntos como "o quádruplo evangelho", em parte, sem dúvida alguma, para distingui-lo do restante da coleção; mas é possível que seu título tenha sido esse desde o início (veja acima o cap. 2, sobre Mateus). Mas, mesmo se a designação "Segundo João" foi acrescentada dois ou três decênios depois de o livro ter sido publicado, a observação de Bruce é sugestiva: "E digno de nota que, enquanto os quatro evangelhos canônicos podiam se dar ao luxo de serem publicados anonimamente, os evangelhos apócrifos, que começaram a aparecer a partir de meados do século II declaravam (falsamente) terem sido escritos por apóstolos ou outras pessoas ligadas ao Senhor."7
Evidências Externas
Conquanto existam diversos documentos antigos, tanto dentro do cristianismo histórico quanto dentro do gnosticismo, que aludem ao quarto evangelho ou citam-no (veja abaixo um exame do assunto), o primeiro escritor a fazer claras citações do quarto evangelho e a atribuir a obra a João é Teófilo de Antioquia (cerca de 181 d.C.). Mas já antes dessa data vários escritores, inclusive Taciano (um aluno de Justino Mártir), Cláudio Apolinário (bispo de Hierápolis) e Atenãgoro, fazem claras citações do quarto evangelho, tratando-o como fonte com informações existentes procedem basicamente de Ireneu (final do século II) e Eusébio, o historiador da igreja primitiva (século IV). Policarpo foi martirizado em 156, com a idade de 86, Não há, portanto, motivo para negar a veracidade das afirmações de que ele se relacionou com os apóstolos na Asia (João, André, Filipe) e de que "aqueles que foram testemunhas oculares e ministros do Senhor lhe confiaram a supervisão da Igreja em Esmirna" (H,E. 3,36). Ireneu conheceu pessoalmente Policarpo, e é por meio de Policarpo que temos as mais importantes informações a respeito do quarto evangelho. Escrevendo a Florino, Ireneu recorda:
A maioria dos estudiosos reconhece que esse "João", certamente uma referência ao apóstolo João, o filho de Zebedeu, é (no que diz respeito a Ireneu) ninguém menos do que o João que ele enfaticamente insiste que é o quarto evangelista. Para Ireneu, o fato de que o evangelho devia ser quádruplo (no sentido já descrito) era algo tão natural quanto o fato de que era necessário haver quatro ventos. Quanto ao quarto evangelho propriamente dito, ele escreveu: "João, o discípulo do Senhor, que recostou-se em seu peito, publicou o evangelho enquanto / / residia em Efeso, na Asia" (.Adu. Haer. 2,1.2). Em outras palavras, o nome do quarto evangelista é João e deve ser identificado com o discípulo amado referido em João 13.23.
As evidências apresentadas por Papias semelhantemente dependem de fontes secundárias. Papias foi contemporâneo de Policarpo e pode ter sido um aluno de João (Ireneu, Adv. Haer 5.33,4, afirma-o; Eusébio, H.E. 3.39.2, nega-o). É irrelevante que Eusébio não mencione que Papias citou o quarto evangelho: o objetivo declarado de Eusébio foi examinar tanto as partes contestadas do Novo Testamento quanto também algumas daquelas pessoas que vinculavam o século I com aquilo que se seguia, e não apresentar uma lista de citações de livros "reconhecidos".9
Outra evidência que provém de Papias é mais difícil avaliar. Por volta de 140 d,C. um seguidor excêntrico dos escritos de Paulo, de nome Marcião, que se convencera de que só esse apóstolo havia verdadeiramente seguido os ensinos de Jesus enquanto todos os demais haviam recaído no judaísmo, foi a Roma tentar convencer a igreja ali da veracidade de suas idéias. Ele defendeu, sem sucesso, que o cânon correto do Novo Testamento abrangia dez cartas de Paulo e um único evangelho, uma versão mutilada de Lucas. Marcião era tão perigoso que conseguiu provocar reações. Em especial os denominados prólogos antimarcionitas dos evangelhos têm sido entendidos como parte destas reações (embora devase reconhecer que alguns estudiosos acreditam que estes prólogos surgiram num período posterior). O prólogo antimarcionita de João chegou até nós numa versão em latim bastante corrompida. Conta que o evangelho de João foi publicado enquanto João ainda vivia e que João o ditou a Papias, um homem originário de Hierápolis e um dos discípulos mais chegados de João, Quanto a Marcião, ele fora expulso pelo próprio João, O prólogo afirma que essa informação baseia-se nos cinco livros exegéticos do próprio Papias: a referência é à sua Exegese das Logia Dominicais, que sobreviveu até à Idade Média em algumas bibliotecas da Europa, mas que lamentavelmente não mais existe.
Algumas das informações fornecidas pelo prólogo antimarcionita estão _ s claramente errôneas, E extremamente duvidoso que João tenha excomungado Marcião: para isso, seria preciso forçar demais a cronologia, Além disso, uma hipótese levantada tem sido a de que Papias pode ter dito que as igrejas ou certos discípulos "escreveram" aquilo que João disse e que mais tarde ele foi citado erroneamente como tendo dito "escrevi", visto que em grego esta última palavra pode ser formalmente indistinguível de "escreveram".10 Assim mesmo, nesse documento não há qualquer dúvida de que o próprio João foi responsável pelo quarto evangelho.
Não só Ireneu, mas Clemente de Alexandria e Tertuliano fornecem sólidas evidências no século II em favor da convicção de que o apóstolo João escreveu esse evangelho, De acordo com Eusébio (H.E. 6.14.7), Clemente escreveu: "Mas aquele João, por último, cônscio de que os fatos exteriores foram expostos nos evangelhos, foi instado por seus discípulos e, divinamente movido pelo Espírito, escreveu um evangelho espiritual." Uma versão mais enigmática e, em seus detalhes, menos crível da mesma história acha-se preservada no Cânon Muratoriano, a mais antiga lista ortodoxa de livros do Novo Testamento a chegar até nós, elaborada provavelmente em cerca de 170 a 180 d,d Conta não apenas que aqueles que foram discípulos e bispos junto com João instaram-no a escrever, mas também que, por meio de um sonho ou profecia, foi revelado a André que João devia de fato assumir a tarefa, escrevendo em seu próprio nome, mas que os outros iriam rever sua obra e fazer contribuições a ela. A maioria dos estudiosos entende que isto é uma dedução que alguém tirou de João 21.24.
Algumas evidências indiretas são em certos aspectos muito mais notáveis. Taciano, um aluno de Justino Mártir, elaborou a primeira harmonia do evangelho quádruplo: ele dividiu os livros em partes e organizou-os numa única narrativa contínua conhecida como Diatessaron. Escrita inicialmente em grego, essa harmonia exerceu uma enorme influência em sua tradução em siríaco. Mas a lição crucial a observar é que é o evangelho de João que fornece a moldura em que se encaixam os outros três evangelhos. Isso não poderia ter acontecido caso houvesse dúvidas quanto à autenticidade do livro.
Aliás, perto do fim do século II as únicas pessoas que negavam a autoria joanina do quarto evangelho eram os denominados "alogoi" — um adjetivo substantivado que tem o sentido de "os ignorantes", empregado pelos ortodoxos como trocadilho para referirem-se àqueles que rejeitavam o Logos (o "Verbo" de Jo 1.1) revelado no quarto evangelho e, conseqüentemente, rejeitavam o próprio quarto evangelho. (Epifânio deu-lhes esse nome em Haer. 51.3; são provavelmente o mesmo grupo mencionado por Ireneu emAdv. Haer. 3.11,9). Mesmo dentro dos grupos algumas vezes houve forças de mútua concorrência em ação. Por exemplo, Gaio, um ancião da igreja em Roma que era um dos alogoi, defendia a ortodoxia em todos os aspectos, à exceção de sua rejeição do evangelho de João e do Apocalipse. No entanto, pelo menos parte de sua motivação era a oposição virulenta que fazia ao montanismo, um movimento carismático descontrolado que surgiu em meados do século II e que dizia que seu líder, Montano, era o porta-voz do Paracleto prometido, Uma vez que todas as declarações sobre o Paracleto referentes ao Espírito acham-se no evangelho de João (14.16, 26; 15.26; 16.7-15), Gaio não precisou de muita persuasão para, nessa questão, colocar-se ao lado dos alogoi.
É certo que, a partir do final do século II, há na igreja um consenso virtual quanto à autoridade, canonicidade e autoria do evangelho de João. Nesse caso um argumento do silêncio é notável: "É significativo que Eusébio, que teve acesso a muitas obras agora perdidas, fale sem reserva do quarto evangelho como obra indisputável de São João."11 O silêncio é mais significativo justamente porque a preocupação de Eusébio era discutir os casos duvidosos. As evidências externas que sustentam que o quarto evangelista não foi ninguém menos do que o apóstolo João são, portanto, virtualmente unânimes, embora não seja impressionante a sua antiguidade. Mas, mesmo tendo que recorrer a Ireneu, perto do fim do século II, como uma das primeiras testemunhas totalmente claras a respeito, a ligação pessoal este com Policarpo, o qual conheceu João, significa que em termos de lembranças pessoais a distância não é muito grande. Até mesmo Dodd, que rejeita a ideia de que o apóstolo João escreveu o quarto evangelho, considera impressionantes as evidências externas e acrescenta: "Desconheço quaisquer evidências externas contrárias que possam ser tidas como convincentes".12
O fato permanece que, apesar do apoio dado à autoria joanina por uns poucos estudiosos de escol neste século e por muitos escritores populares, uma grande maioria de eruditos contemporâneos rejeita esse ponto de vista. Conforme veremos, grande parte de sua argumentação gira em torno da interpretação que fazem das evidências internas. Assim mesmo, isso exige que praticamente rejeitem as evidências externas. Isso é particularmente lamentável. A exceção de estudiosos do Novo Testamento, a maioria dos historiadores da antiguidade não poderia ignorar assim tão facilmente evidências tão abundantes e tão uniformes.
Uma maneira de contornar a força das evidências externas é apelar às palavras de Papias, relatadas e interpretadas por Eusébio, em apoio à hipótese de que houve dois homens chamados João. Papias escreve (segundo Eusébio): "E se acontecia de vir alguém que tinha sido realmente um seguidor dos antigos, eu indagava acerca dos discursos dos antigos, o que disseram André ou Pedro, ou Filipe, ou Tomé ou Tiago, ou João ou Mateus ou quaisquer outros dos discípulos do Senhor; e coisas que disseram Aristião e o presbítero João, discípulos do Senhor/5 Eusébio então comenta: "Aqui vale assinalar que em sua enumeração ele menciona duas vezes o nome João: ele coloca o primeiro na mesma lista com Pedro e Tiago e Mateus e os outros apóstolos, indicando claramente o evangelista; mas coloca o outro com os demais, numa frase separada, fora do grupo dos apóstolos, colocando Aristião antes dele; e ele claramente o chama de "presbítero5" (HE. 3.39.4-5).13 Com base nessa passagem, muitos têm inferido que foi esse segundo João, um discípulo de João filho de Zebedeu, que escreveu o quarto evangelho. Aliás, é possível que Ireneu e Teófilo e outros Pais antigos tenham feito confusão entre essas duas pessoas.
Estudos recentes, contudo, têm mostrado que, por quatro motivos, esse apelo a Papias é precário:
1) Hoje em dia é amplamente reconhecido que, enquanto Eusébio faz distinção entre apóstolos e presbíteros, entendendo que estes últimos são Papias não faz esse tipo de distinção. Na expressão de Papias, os "discursos dos antigos" significam o ensino de André, Pedro e dos outros apóstolos, É Eusébio quem, em outro trecho, escreve: "Papias, de quem agora estamos falando, reconhece que recebeu os discursos dos apóstolos daqueles que tinham sido seguidores deles" (H.E. 3,39.7). É evidente que não foi isso o que Papias disse.H
2) Na citação de Papias, João é chamado de "presbítero" exatamente porque estão sendo colocado no grupo dos antigos recém-mencionados, ou seja, os apóstolos. Vale a pena notar que "apóstolos" e "anciãos" são chamados de "presbíteros" em 1 Pedro 5.1, Aliás, a sintaxe grega utilizada por Papias favorece a idéia de que "Aristião e o presbítero João" significa algo do tipo "Aristião e o i r* já mencionado presbítero João". Não somente aqui, mas em H.E. 3.39.14 é João e não Aristião quem é chamado de "o presbítero". Ao escolher referir-se aos apóstolos como presbíteros, Papias pode muito bem estar ecoando as palavras de 3 João (pressupondo que Papias entendeu que a epístola foi escrita pelo apóstolo João).
3) Parece que a distinção que Papias está fazendo em suas duas listas não é entre apóstolos e presbíteros da geração seguinte, mas entre testemunhas da primeira geração e que haviam morrido (aquilo que disseram) e testemunhas da primeira geração que ainda viviam (aquilo que dizem). Aristião, então, pode ser vinculado a João não porque ambos não são apóstolos, mas porque são da primeira geração de discípulos do Senhor. E isso dá força ao testemunho de Ireneu, que diz que Papias, e não somente Policarpo, foi um "ouvinte de João".
4) De qualquer modo, Eusébio tinha suas próprias prioridades. Ele tinha uma aversão tão grande à linguagem apocalíptica do Apocalipse que ficou mais do que satisfeito quando viu que era possível atribuir sua autoria a um João que não o apóstolo, aproveitando a menção ao "presbítero João", feita por Papias.lb Recentemente Martin Hengel dedicou toda uma monografia à tese de que foi o presbítero João e não o apóstolo João quem escreveu a penúltima versão do quarto evangelho (a qual então, depois da sua morte, foi ligeiramente editada, com o acréscimo também de 21.24-25).17 Mas o "presbítero" de Hengel não é o discípulo do idoso apóstolo, que teria vivido no século II, conforme reconstrução feita por muitos estudiosos contemporâneos. Hengel defende que "o presbítero João" é ninguém menos do que o "discípulo amado" (13.23; 19.26-27; 20.2-9; 21.24), um judeu palestino que viveu na mesma época de Jesus e foi testemunha ocular de pelo menos alguns eventos da vida de Jesus, mas não o João filho de Zebedeu. O próprio Hengel reconhece que sua "hipótese pode soar incrível",18 Ele é forçado a reconhecer que "João filho de Zebedeu e o professor da escola [Le,, seu
hipotético "presbítero João"] ... estão deliberadamente sobrepostas de forma velada" e, por isso, reconhece que "é admissível que, ao usar a expressão discípulo amado', o 'presbítero João' tenha desejado ressaltar o filho de Zebedeu, que para ele era um discípulo ideal, até mesmo o único discípulo ideal, em contraste com Pedro, ao passo que na conclusão os alunos imprimem neste personagem enigmático o rosto de seu professor ao identificá-lo com o autor, a fim de trazer o evangelho o mais próximo possível de Jesus",É difícil imaginar como alguém poderia chegar mais próximo de afirmar a autoria apostólica e ao mesmo tempo negá-la!
Não está claro por que Hengel prefere ao apóstolo João sua hipótese de um judeu de outra forma desconhecido que teria vivido na Palestina no século I, cujo nome teria sido João e que teria sido um contemporâneo do apóstolo. Ele acredita, por exemplo, que o fato de a Judéia ser o centro da atenção nesse evangelho é um argumento em favor de que o autor não foi galileu, como o apóstolo João. Ele julga que o vínculo verbal entre "presbítero" em Papias e a mesma expressão em 2 João 1 e 3 João 1 é muito significativa (embora, na realidade, saiba-se que às vezes os apóstolos referiam-se a si mesmos como presbíteros; veja 1 Pedro 5.1).20 Hengel levanta a hipótese de que, em Papias, pode ter havido evidências claras de que esse "presbítero João" escreveu o quarto evangelho e sustenta que deve-se "levar em conta a possibilidade de que, como em outras ocasiões, Eusébio ocultou informações que lhe pareciam desagradáveis ou omitiu-as por descuido";21 desse ponto de vista a igreja primitiva simplesmente repetiu o erro.
Todos esses argumentos são extremamente fracos. Com base nos dados fornecidos por Eusébio, estamos longe de poder dizer que sequer tenha existido um ''presbítero João" que não o apóstolo e, se existiu, é menos certo ainda que ele tenha escrito alguma coisa. Se, contra as evidências, aceitarmos a interpretação que Eusébio faz de Papias, atribuiremos o quarto evangelho ao apóstolo João e o Apocalipse ao presbítero João — enquanto a maioria dos estudiosos da Bíblia não atribui nenhum dos dois livros ao apóstolo. Nesse meio tempo, as objeções de Hengel à identificação do discípulo amado com o apóstolo João não tem absolutamente peso algum. Por girarem em torno de uma avaliação das evidências internas, é a estas que devemos nos voltar.
Evidências Internas
O método clássico de Westcott, atualizado por Morris/2 era demonstrar cinco itens: o autor do quarto evangelho foi (1) um judeu, (2) da Palestina, (3) uma testemunha ocular, (4) um apóstolo (Leum dos Doze), e (5) o apóstolo João. Hoje em dia os dois primeiros fatos raramente são contestados e não precisam tomar nosso tempo, exceto para fazer três observações.
1) A descoberta dos rolos do Mar Morto nos leva a reconhecer que é desnecessário recorrer a um período de expansão do cristianismo dentro do mundo helenístico para explicar as expressões características de João. Ver embaixo estudos adicionais dessa questão na seção "local de origem". Além do mais, o conhecimento detalhado que o evangelista tem da topografia da Palestina e de aspectos do debate judaico conservador provavelmente reflete um envolvimento pessoal e não uma mera dependência de fontes judaicas confiáveis.
2) A isso devemos acrescentar o fato amplamente aceito, a que Lightfoot já recorreu no século passado,23 de que pelo menos em alguns casos as citações feitas por João aproximam-se, na forma, mais do hebraico ou aramaico do que do grego (esp, 12.40; 13.18; 19.37).
3) A tentativa recente de Margaret Pamment de sustentar que o discípulo amado é um crente gentio gira em torno do seu argumento de que 21.1 e ss. diz respeito à missão gentílica (nisso ela está parcialmente correta), e isso, ela diz, "sugere que o discípulo amado (que aparece nesse capítulo) é um gentio".24 Essa é uma falácia clássica. Admitindo-se que todos os primeiros crentes eram judeus, pelo menos algumas das primeiras testemunhas aos gentios tiveram de ser judias!
Todos os outros três itens são, entretanto, contestados e em grande parte giram em torno da identidade do "discípulo amado", que atualmente é o modo padrão de referir-se àquele que a NVI descreve de modo mais prosaico como "o discípulo a quem amava" (e.g., 13.23). A informação geral pode ser examinada rapidamente. O discípulo amado aparece pela primeira vez com essa designação por ocasião da última ceia, quando está reclinado ao lado de Jesus e transmite para o Mestre a pergunta de Pedro (13.23). Ele aparece junto à cruz, onde recebe instruções especiais com respeito à mãe de Jesus (19.26-27) e junto ao túmulo vazio, onde é mais rápido na corrida do que Pedro, mas menos ousado (20.2-9).
No epílogo (cap. 21) lemos que ele é aquele que escreveu "estas coisas", Se "escreveu" significa que ele mesmo escreveu as informações (e não que apenas fez com que fossem escritas, como alguns têm proposto) e se "estas coisas" referese ao livro inteiro e não apenas ao capítulo 21, então o discípulo amado é o evangelista. Se isso está certo, então é natural identificar a testemunha ocular que viu sangue e água verterem do lado de Jesus como o discípulo amado, muito embora não seja assim descrito naquela passagem.
Quem é, porém, o discípulo amado? O ponto de vista tradicional, que ele é João filho de Zebedeu, tem sido proposto por motivos de pesos bem diferentes. Não se questiona que o discípulo amado esteve presente à última ceia (13.23). Os sinóticos insistem em que somente os apóstolos participaram dessa refeição junto com Jesus (Mc 14.17 e trechos paralelos), o que coloca o discípulo amado dentro do grupo dos Doze (e coincidentemente conflita com a hipótese de Hengel, descrita acima). Repetidas vezes ele é distinguido de Pedro (Jo 13.23-24; 20.2-9; 21.20), e pelo mesmo motivo não deve ser confundido com quaisquer dos outros apóstolos mencionados em João 13—16. O fato de ele ser um dos sete que vão pescar no capítulo 21 e, por implicação, não ser Pedro, Tomé nem Natanael sugere que é um dos filhos de Zebedeu ou um dos outros dois discípulos não mencionados pelo nome (21.2). Dos filhos de Zebedeu ele não pode ser Tiago, visto que Tiago foi o primeiro do grupo apostólico a ser martirizado (provavelmente perto do fim do reinado de Herodes Agripa I, 41-44 d.C.; veja At 12.1-2), ao passo que o discípulo amado viveu o suficiente para dar peso ao boato de que não morreria (21.23), O fato de que nem João nem Tiago são mencionados pelo nome no quarto evangelho, o qual, no entanto, tem espaço não apenas para apóstolos proeminentes, tais como Pedro e André, mas também para membros relativamente obscuros do grupo apostólico, tais como Filipe e "Judas, não o Iscariotes" (14.22), é profundamente estranho, a menos que haja algum motivo para isso. O raciocínio tradicional parece o mais plausível: o discípulo amado é ninguém menos do que João e ele evita deliberadamente empregar seu próprio nome, Isso se torna mais provável quando recordamos que o discípulo amado está constantemente em companhia de Pedro, ao passo que os sinóticos (Mc 5.37; 9.2; 14.33 e trechos paralelos) e Atos (3.1—4.23; 8.15-25), para não mencionar Paulo (G1 2.9), vinculam Pedro e João por amizade e experiência em comum. Também já se assinalou que nesse evangelho a maioria dos personagens importantes é designado com o emprego de expressões bem completas: Simão Pedro; Tomé, chamado Dídimo; Judas, filho de Simão Iscariotes; Caifás, sumo sacerdote naquele ano. Estranhamente, porém, João Batista é simplesmente chamado de João, mesmo quando é apresentado pela primeira vez (1.6; cf. Mc 1.4 e trechos paralelos). A explicação mais simples é que João filho de Zebedeu é aquele que não sentiria necessidade de distinguir de si mesmo o outro João.
As evidências não são inteiramente conclusivas. Por exemplo, é bem possível que o discípulo amado seja um dos dois discípulos que aparecem em João 21,2, mas que não são mencionados pelo nome. Mas, uma vez que se tenha avaliado devidamente essa possibilidade lógica, ela parece ser um expediente desesperado que se opõe ao peso de toda a evidência interna e das evidências externas substanciais. Outras identificações têm sido propostas. Alguns, por exemplo, têm sugerido Lázaro, com base no fato de que "discípulo amado" seria uma forma apropriada de aquele de quem se disse que Jesus o amava fazer referência a si mesmo (11.5, 36). Algumas pessoas sugeriram o jovem rico de Marcos 10.21, com base no mesmo argumento. Ainda outros acham que foi o proprietário do cenáculo, alegando que o motivo pelo qual poderia encostar a cabeça no peito de Jesus era que, na condição de anfitrião, foi colocado numa posição de honra ao lado de Jesus; essa pessoa talvez fosse João Marcos.
Nada disso é convincente, e não passa da mais infame especulação. Segundo as evidências dos sinóticas, só os Doze estiveram presentes na última ceia: só ou o jovem rico, a não ser que Jesus os amava; mas, mesmo pressupondo que o círculo daqueles a quem Jesus amava fosse extremamente restrito, certamente isso não oferece bases suficientes para identificar o discípulo amado. Quanto ao proprietário do cenáculo, apelar ao evangelho de Marcos para solucionar o problema da identidade do discípulo amado em João parece ser um procedimento duvidoso. E, se o proprietário do cenáculo esteve presente de alguma forma como anfitrião, por que é que os quatro evangelhos apresentam Jesus tomando a iniciativa à refeição, agindo na verdade como o anfitrião? Além disso, não existem dados patrísticos de que João filho de Zebedeu e João Marcos alguma vez foram confundidos.
Brown, em seu comentário, defende vigorosamente que o discípulo amado é João filho de Zebedeu (embora ele não o identifique com o evangelista), em grande parte seguindo os argumentos acima apresentados. No entanto, à época da publicação de seu livro mais popular, no qual esboça seu entendimento acerca da história da comunidade joanina, Brown havia mudado de idéia,25 sem refutar as evidências que ele mesmo havia apresentado anteriormente. Atualmente ele acredita que o discípulo amado é alguém de fora e não um do Doze, mas um morador da Judéia com acesso ao pátio do sumo sacerdote (18.15-16), possivelmente o discípulo não identificado de 1.35-40. Outros têm proposto listas extensas de motivos pelos quais o discípulo amado não poderia ser João filho de Zebedeu,^ Esses motivos variam consideravelmente em peso, mas incluem alegações tais como; João filho de Zebedeu era um galileu, e no entanto grande parte da narrativa do quarto evangelho acontece na Judéia; João e Pedro são em outro texto bíblico descritos como "homens iletrados e incultos" (At 4.13), de modo que não se pode esperar que João escrevesse um livro sutil e profundo; em outra oportunidade João e Tiago são descritos como "filhos do trovão" (Mc 3.17), presumivelmente sugerindo impetuosidade, destemperança e raiva, mas esse livro é o mais plácido dos evangelhos canônicos, chegando até a ser místico; João foi vingativo contra os samaritanos (Lc 9.54), de modo que é difícil imaginá-lo escrevendo um livro que os trata com tanta bondade (Jo 4).
Parece que nenhum desses argumentos tem muito peso contra o imenso volume de argumentos opostos.
1) Conquanto João filho de Zebedeu fosse galileu, à época em que escreveu seu evangelho ele havia morado não apenas durante anos na Judéia (durante o período inicial da igreja), mas (de acordo com qualquer ponto de vista tradicional) no grande centro metropolitano de Efeso. Parece pouco realista limitar o centro de interesse de João ao lugar de sua origem, quando à época da redação fazia decênios que não morava ali.
2) Há muito tempo tem-se assinalado que a expressão em Atos 4.13 não significa que Pedro e João fossem analfabetos ou profundamente ignorantes, mas, do ponto de vista da capacitação teológica contemporânea, "leigos sem treinamento" (NEB), no que não diferiam do próprio Jesus (Jo 7.15), A surpresa das autoridades foi, de qualquer maneira, ocasionada pela competência de Pedro e João, por esperarem que os dois fossem (relativamente) ignorantes, e não pela ignorância deles, por esperarem que fossem mais competentes. Os meninos judeus aprendiam a ler. Visto que João provinha de uma família que certamente não era pobre (ela possuíam pelo menos um barco [Lc 5.3, 10] e empregava outras pessoas [Mc 1.20]), é bem possível que ele tenha desfrutado uma educação acima da média. E com certeza não seria de surpreender que alguns dos líderes da igreja, decênios depois de ela ser fundada, tivessem se dedicado a estudar seriamente.
3) A sugestão de que um "filho do trovão" não poderia ter-se tornado o apóstolo do amor ou de que um homem dominado por preconceito racial contra os samaritanos não poderia ter escrito João 4 é uma negação implícita do poder do evangelho e da maturidade de anos de liderança cristã num período em que o poder transformador do Espírito era visível de modo tão ostensivo. O argumento é tão convincente quanto o ponto de vista de que Saulo, o perseguidor da igreja, não poderia ter-se tornado o apóstolo aos gentios.
4) Embora não se diga explicitamente que o "outro discípulo" que consegue com que Pedro seja admitido no pátio do sumo sacerdote (18.15-16) é o discípulo amado, podendo ser alguma outra pessoa, assim mesmo há mais evidência em favor da identificação com João do que alguns imaginam. Parece que esse "outro discípulo" estava no grupo daqueles que estavam com Jesus quando ele foi preso e, portanto, era um dos Onze que saíram do cenáculo e acompanharam Jesus, subindo a encosta do Monte das Oliveiras. Sua íntima ligação com Pedro favorece (embora não prove) o ponto de vista de que não é ninguém menos do que João. Freqüentemente se rejeita a idéia de que um pescador galileu pudesse ter acesso ao pátio do sumo sacerdote sob a alegação de que um vendedor de peixes não poderia entrar, sem ser interrogado, na sala de espera do primeiro ministro. Na realidade, o modelo social está totalmente errado. Já vimos que a família de João tinha algumas posses; ela pode ter sido rica, e em muitas sociedades o dinheiro derruba barreiras sociais. De um modo ou de outro, é possível que as barreiras sociais relevantes na Palestina do século I não tenham sido assim tão rígidas; esperava-se que, além de seus estudos, os rabinos adquirissem alguma habilidade profissional (é assim que Paulo trabalhava com couro), de maneira que a estratificação que fazia divisão entre professor e trabalhador braçal no estoicismo e em outros círculos do mundo helenístico não era um fator significativo em boa parte da Palestina. A Galiléia fornecia peixe para todo o país, à exceção do
litoral, que entrava em Jerusalém pela Porta do Peixe (veja Ne 3.3; Sf 1.10).
Conforme Robinson comenta, talvez não seja totalmente fantasiosa a tradição segundo a qual o fato de João conhecer a moça junto à porta e também a casa do sumo sacerdote era resultado de estar familiarizado com o acesso que os comerciantes tinham ao local.27 Ele pode ter tido uma casa na cidade (19,27) e às vezes atuado como um representante de seu pai (um papel que vem à tona no dito de 13.16). Tem-se assinalado que a expressão específica para peixe cozido (.òijjápíov [iopsarionJ), a forma em que boa parte do peixe seria comercializada, ocorre cinco vezes no quarto evangelho (6.9, 11; 21,9, 10, 13) e em nenhum outro texto do Novo Testamento.
5) Embora tenha sido alegado no passado que alguém da Palestina não poderia escrever em grego tão fluente, o argumento já não subsiste. Hoje em dia há um forte consenso de que, pelo menos na Galileia e talvez em outras regiões da Palestina do século I, a massa da população era pelo menos bilíngüe e, em alguns casos, trilingue. O aramaico era usado nas conversas do dia-a-dia, pelo menos nas aldeias. (O hebraico pode ter sido usado em algumas ocasiões formais e de culto público, mas não se sabe ao certo quantas pessoas eram capazes de falar esse idioma.) E, a julgar pelo número de moedas gregas e pela quantidade de inscrições gregas descobertas, o grego era bastante comum como língua alternativa, ligando os judeus não somente ao mundo mediterrâneo em geral, mas à Diáspora judaica e (na Galiléia) à Decápolis em particular, Pessoas cujas atividades as punham em contato bem próximo com o exército também podem ter chegado a um conhecimento de latim que lhes dava condições de se comunicarem nesse outro idioma. De qualquer forma, se João viveu no estrangeiro durante anos antes de escrever, teve tempo suficiente para praticar o seu grego.
Ademais, embora o grego do evangelho de João seja razoavelmente fluente, ele não é elegante, e deixa entrever um bom número de "realces" semitizantes.2* É, "com bem poucas exceções, a linguagem da Septuaginta".29 Esse tipo de evidência está em perfeita consonância com o pouco que conhecemos da formação de João, filho de Zebedeu. Em suma, são muito fortes embora não inquestionáveis, as evidências internas de que o discípulo amado é o apóstolo João, o filho de Zebedeu. Qual é, então, o relacionamento entre o discípulo amado e o quarto evangelista? A resposta tradicional é que são exatamente a mesma pessoa. Hoje em dia isso é comumente negado. Alguns pensam que João, filho de Zebedeu provavelmente acha-se, de alguma maneira, por trás da tradição do quarto evangelho, mas que os dados sofreram extensas adaptações. Esse material foi finalizado pelas mãos do evangelista (cuja identidade é desconhecida — a menos que seja o "presbítero" João), cuja obra foi subseqüentemente retocada por um redator, cuja participação talvez se deixe trair em 21.24-25. Outros pensam que a influência de João filho de Zebedeu é mais imediata e geral; ele não chegou a escrever o livro, mas fez com que fosse escrito, talvez por intermédio de um amanuense que desfrutava de certas liberdades de expressão e que poderia ser apropriadamente chamado de o evangelista. Fatores importantes a serem levados em conta são:
1) Talvez a razão apresentada com maior freqüência para negar que o discípulo amado é o evangelista encontre-se na própria expressão "discípulo amado". Afirma-se que nenhum cristão chamaria a si mesmo de "o discípulo a quem Jesus amava": a expressão tem um quê de exclusivismo e é mais bem interpretada como algo que alguém diria a respeito de outro discípulo e não como algo que um crente diria de si mesmo. De modo semelhante, alega-se que a pessoa que (lit.) escreveu que Jesus estava no seio do Pai (EIS* TÒV KÓXJTOU rov rrarpóç [eis ton kolpon tou patros], 1.18) teria relutância em dizer sobre si mesma que havia reclinado no seio de Jesus (ev rcò KÓÁmo rov lr}aov [en tõ kolpõ tou lesou], 13.23).
Deve-se, porém, abandonar esses argumentos freqüentemente repetidos. Quando um escritor do Novo Testamento pensa em si mesmo como alguém que Jesus ama, isso nunca quer dizer que outros crentes não sejam amados ou que / sejam de alguma forma menos amados. E assim que Paulo, ao descrever a obra salvadora do Filho de Deus, pode repentinamente tornar pessoal essa obra: ele "me amou e a si mesmo se entregou por mim" (G1 2.20). De modo algum isso implica em que Paulo pense que os gálatas sejam menos amados. A sugestão revela uma profunda ignorância da dinâmica psicológica da experiência cristã: aqueles que estão mais profundamente cônscios de seu próprio pecado e necessidade e que, como conseqüência, sentem em maior profundidade as maravilhas da graça de Deus que alcançou e salvou até mesmo a eles9 são aqueles que têm maior probabilidade de falar de si mesmos como objetos do amor de Deus em Cristo Jesus. Aqueles que não pensam em si mesmos dessa maneira deveriam fazê-lo (Ef 3.14-21). Se um "filho do trovão" tornou-se o apóstolo do amor, não é de admirar que ele pense em si mesmo como o objeto especial do amor de Jesus.
Mas dificilmente isso é sinal de arrogância; é, isto sim, sinal de quebrantamento. De modo que, se houvermos de notar vestígios de 1.18 na descrição de João reclinado no peito de Jesus (13,23), isso não passa de um exemplo sugestivo de um padrão que é constantemente proposto no quarto evangelho: Jesus é o mediador do amor do seu Pai, do julgamento do seu Pai, da redenção do seu Pai, do conhecimento do seu Pai, da aliança do seu Pai.
2) O mesmo tipo de raciocínio provavelmente explica por que o evangelista não menciona o seu próprio nome, Ele prefere referir-se indiretamente a si mesmo, com o intuito de concentrar a atenção naquele a quem ele serve: para alcançar seus objetivos redacionais, ele não precisa fundamentar-se explicitamente em sua dignidade apostólica. Ele já é bem conhecido pelo público leitor que pretende alcançar (21.24-25) e, como quando Paulo escreve sem um acentuado objetivo polêmico, ele não precisa chamar a si mesmo de apóstolo (Fp 1.1; cf, G1 1.1). A maioria dos estudiosos concorda que o discípulo amado não é uma mera idealização, mas um personagem histórico; assim mesmo, no entanto, em certos servir de testemunhas da verdade e ressaltar o amor de Jesus em suas vidas.
Mesmo que alguém proteste que esse tipo de raciocínio não parece fornecer um motivo adequado para a recusa de o discípulo amado identificar-se, deve-se com toda certeza reconhecer que, se o evangelista é alguém que não João filho de Zebedeu, é ainda mais difícil explicar por que ele deixa de mencionar o apóstolo João pelo nome, quando faz referência a tantos outros. Pode-se insistir um pouco mais nisso. A hipótese de que a expressão "o discípulo a quem Jesus amava" é algo que uma pessoa dirá com maior probabilidade de outra e não de si mesma não apenas não tem valor como tem suas próprias dificuldades. Deixa implícito que o evangelista (que, de acordo com esse ponto de vista, era alguém que não o discípulo amado) achava que Jesus amava certos discípulos e não a outros. Qualquer que seja o motivo que, de acordo com o testemunho sinótico, tenha levado Jesus a dar mais atenção a um grupo mais íntimo de três (Pedro, Tiago e João), é muito duvidoso que isso tivesse a ver com um amor arbitrariamente dispensado por parte de Jesus.
3) Alguns pensam que "estas coisas" que se diz que o discípulo amado escreveu (21.24) referem-se apenas ao conteúdo do capítulo 21, não ao livro como um todo. Deixando de lado o fato de que isso depende da maneira de ler o capítulo 21, esse ponto de vista é uma anomalia; o discípulo amado, aparentemente o apóstolo João, escreveu apenas esse capítulo, mas alguma outra pessoa escreveu o restante — muito embora a expressão "discípulo amado" ocorra muito antes do capítulo 21.
4) Com freqüência se afirma que, sempre que João aparece com Pedro, ressalta-se a superioridade da capacidade de percepção de João. Em João 13, por exemplo, Pedro simplesmente faz sinal ao discípulo amado, o qual faz a Jesus a pergunta fatídica; em João 20, o discípulo amado não apenas chega ao túmulo antes de Pedro, mas somente dele é que se diz que creu. Será que João teria dito coisas assim sobre si próprio?
Expositores mais cautelosos têm, contudo, corretamente argumentado que não há qualquer questão de inferioridade ou superioridade nessas descrições, mas de dons e personalidades diferentes. Barrett, por exemplo, defende de modo bem convincente que deve-se interpretar 21.24 junto com os versículos que o precedem: Pedro é incumbido de alimentar o rebanho de Deus e glorificar a Deus com sua morte, ao passo que o discípulo amado é incumbido de viver um longo tempo e servir como aquele que escreve esse livro, servindo de testemunha da verdade/0 Se o discípulo amado chega primeiro ao túmulo, é Pedro que entra primeiro, Se afirma-se que o discípulo amado creu, nada se diz que Pedro não o fez; a afirmação faz parte da descrição que caminha na direção da autenticação
do discípulo amado como o autor desse livro.
5) Alguns acham que deve-se interpretar 21.22-23 com o sentido de que o discípulo amado morreu à época em que o quarto evangelho foi publicado e que uma das razões de sua publicação foi minorar a crise que havia surgido com essa morte. Mas é igualmente fácil supor que o boato largamente difundido havia chegado aos ouvidos do idoso apóstolo, que conseqüentemente receou o que poderia acontecer à fé de alguns depois que ele morresse, visto que a fé deles baseava-se numa falsa inferência de algo que Jesus de fato dissera.
6) A hipótese de que o discípulo amado simplesmente fez com que essas coisas fossem escritas, aparentemente por intermédio de um discípulo que servia de, vamos dizer, uma espécie de amanuense (comumente cita-se Tércio; veja Rm 16.22), encontra pouco apoio em João 19.19-22. O próprio Pilatos provavelmente não escreveu o titulus na cruz, mas simplesmente fez com que fosse escrito. Na verdade estamos longe de saber quanta liberdade era concedida a um amanuense no mundo antigo.31 Entretanto, o exemplo de Pilatos sugere que o que ele fez com que fosse escrito foi exatamente o que ele queria que fosse escrito, e o verbo "dar testemunho" em 21,24 sugere que a influência do discípulo amado não é remota. Não quero com isso defender a idéia de que João não poderia ter utilizado um amanuense; também não a idéia de que a única solução que se harmoniza com as evidências internas e externas é a autoria pelo apóstolo João. Quero, isto sim, dizer que esse ponto de vista bastante tradicional harmoniza-se mais facilmente com as evidências e oferece menos explicações tortuosas diante das dificuldades que todas as hipóteses relevantes têm de enfrentar.
De maneira que, em oposição a Brown, que (pelo menos em seu comentário) entende que o discípulo amado é o apóstolo João, mas não o evangelista, e a Cullmann,^ que entende que o discípulo amado é o evangelista, mas não o apóstolo João, as evidências parecem favorecer Robinson, que escreve: "Acredito que ambos estão certos naquilo que afirmam e errados naquilo que negam /5,u Ainda consta, porém que Kümmel (p. 245) insiste em que a autoria joanina está "fora de questão", ao passo que Barrett insiste em que é uma "certeza ry j ' moral" que João filho de Zebedeu não escreveu o quarto evangelho. E de ficar realmente perplexo com o grau de dogmatismo deles. Barrett escreve:
À autoria apostólica tem sido defendida extensamente e com erudição por L. Morris [...] e deve-se considerar cuidadosamente os seus argumentos. Deve-se reconhecer que não é impossível que o apóstolo João tenha escrito o evangelho; é por isso que emprego a expressão "certeza moral", O apóstolo pode ter vivido até idade bem avançada; pode ter achado conveniente basear-se em outras fontes além de sua própria memória; pode ter aprendido a escrever grego corretamente; pode ter aprendido não apenas o idioma, mas o modo de pensar de seu novo ambiente (em Éfeso, Antioquia ou Alexandria); pode ter refletido a respeito das palavras de Jesus por um tempo longo o suficiente para elas tomarem forma num tempo os cristãos ortodoxos deram pouca ou nenhuma atenção à sua obra. Tudo isso é possível, mas, pondo tudo na balança, as probabilidades são contrárias a essas coisas terem acontecido.85
O que se tem aí é uma mistura de argumentos, Além da aquisição de fluência na língua grega, que já foi analisado, os outros obstáculos não parecem insuperáveis.
1) A questão da "idade avançada" gira em torno da data que for atribuída ao livro. Se optar-se por aproximadamente 80 d.C. (veja abaixo a análise na seção "Data"), João precisaria ter, digamos, apenas 75 anos de idade. Dodd publicou Historical tradition in the fourth gospel quando estava na casa dos oitenta; Goodspeed escreveu sua obra sobre Mateus quando tinha 90 anos de idade; Sir Norman Anderson, aos 80 anos, ainda está escrevendo livros. Um dos autores desta Introdução está na casa dos setenta, E, de qualquer forma, não é impossível que o quarto evangelho tenha sido escrito antes do ano 70.
2) E difícil imaginar por que alguém haveria de pensar que é totalmente improvável que um apóstolo viesse a "basear-se em outras fontes além de sua própria memória". De qualquer forma, a questão da identificação de fontes no evangelho de João é extremamente problemática (veja a secção seguinte, "Unidade estilística e a 'comunidade5 joanina").
3) Quanto a levar as palavras de Jesus a ter impacto na linguagem local, essa é a profissão do pregador, especialmente se estiver envolvido em ministério transcultural. Um dos pontos fortes do comentário de Lindars é sua sugestão de que várias partes do quarto evangelho são simplesmente os esboços de sermões burilados e pregados em diversas ocasiões ao longo de anos de ministério j j rt cristão: Não precisamos adotar todas as suas detalhadas sugestões para podermos reconhecer a plausibilidade da tese básica.
4) A sugestão de que o autor do quarto evangelho era alguém obscuro ou desconhecido é um tanto quanto exagerada. Os estudiosos divergem entre si sobre se João é citado na Epístola de Barnabé, na Didaquê e no Pastor de Hermas (todas do início do século II). Provavelmente muitos encontram ecos do quarto evangelho em Inácio (cerca de 110 d.C,). Justino Mártir escreveu: "Cristo verdadeiramente disse: *A menos que nasças de novo, não entrarás no reino dos céus/ E evidente a todos que aqueles que nasceram uma vez não podem tornar a entrar no ventre materno" (1 ApoL 61.4-5). Com quase toda certeza essa é uma referência a João 3.3-5; parece ceticismo indevido achar que Justino simplesmente encontrou essa afirmação como um dito independente na tradição oral, ainda mais à luz da referência ao ventre materno, O modo do reconhecimento do evangelho de João não é tão surpreendente se ele foi publicado perto do final do século L Não deveríamos, então, esperar encontrar vestígios dele em, digamos, Clemente de Roma (cerca de 95 d.C.). O problema é maior caso o quarto evangelho tenha sido publicado antes de 70 (como acreditam Morris e Robinson). Mesmo assim, especialmente se as informações de Ireneu sobre Papias e Policarpo forem interpretadas sem preconceitos, é difícil dar crédito ao ponto de vista de que "os cristãos ortodoxos deram pouca ou nenhuma atenção" a esse evangelho.
Além do mais, tanto hoje como no passado, os cristãos sempre tiveram seus livros prediletos. Mateus foi um predileto logo no início; João não, No caso de João, isso pode ter sido causado pelo fato de o quarto evangelho ter sido, logo no início, usado (e mal-usado) pelos gnósticos. O gnóstico Basilides (cerca de 130 d.C.) cita João 1.9 (embora essa informação esteja baseada em Adv. Haer. 7.22.4, de Hipólito); o primeiro comentário sobre um evangelho de que temos conhecimento é o estudo de João pelo gnóstico Heraclião, Leva um pouco de tempo para se desencadear uma reação polêmica — possivelmente o primeiro sinal disso é encontrado nas epístolas de João, Talvez, no entanto, a maior dificuldade para a aceitação da autoria joanina é a pressuposição não muito clara de que o evangelho foi redigido por uma escola ou círculo ou comunidade joaninos; para isso temos agora de voltar nossa
atenção.
Em geral se afirma que o quarto evangelho não leva o nome do seu autor: à semelhança dos sinóticos, é formalmente anônimo. Até onde temos condições de provar, o título "Segundo João" foi acrescentado a ele assim que os quatro evangelhos começaram a circular juntos como "o quádruplo evangelho", em parte, sem dúvida alguma, para distingui-lo do restante da coleção; mas é possível que seu título tenha sido esse desde o início (veja acima o cap. 2, sobre Mateus). Mas, mesmo se a designação "Segundo João" foi acrescentada dois ou três decênios depois de o livro ter sido publicado, a observação de Bruce é sugestiva: "E digno de nota que, enquanto os quatro evangelhos canônicos podiam se dar ao luxo de serem publicados anonimamente, os evangelhos apócrifos, que começaram a aparecer a partir de meados do século II declaravam (falsamente) terem sido escritos por apóstolos ou outras pessoas ligadas ao Senhor."7
Evidências Externas
Conquanto existam diversos documentos antigos, tanto dentro do cristianismo histórico quanto dentro do gnosticismo, que aludem ao quarto evangelho ou citam-no (veja abaixo um exame do assunto), o primeiro escritor a fazer claras citações do quarto evangelho e a atribuir a obra a João é Teófilo de Antioquia (cerca de 181 d.C.). Mas já antes dessa data vários escritores, inclusive Taciano (um aluno de Justino Mártir), Cláudio Apolinário (bispo de Hierápolis) e Atenãgoro, fazem claras citações do quarto evangelho, tratando-o como fonte com informações existentes procedem basicamente de Ireneu (final do século II) e Eusébio, o historiador da igreja primitiva (século IV). Policarpo foi martirizado em 156, com a idade de 86, Não há, portanto, motivo para negar a veracidade das afirmações de que ele se relacionou com os apóstolos na Asia (João, André, Filipe) e de que "aqueles que foram testemunhas oculares e ministros do Senhor lhe confiaram a supervisão da Igreja em Esmirna" (H,E. 3,36). Ireneu conheceu pessoalmente Policarpo, e é por meio de Policarpo que temos as mais importantes informações a respeito do quarto evangelho. Escrevendo a Florino, Ireneu recorda:
Recordo-me dos acontecimentos daqueles dias com mais clareza do que daqueles que têm ocorrido recentemente, pois aquilo que aprendemos enquanto somos crianças, cresce junto com a alma e fica unido a ela, de modo que posso falar até mesmo do lugar em que o abençoado Policarpo se sentava para os debates, como entrava e como saía, o caráter da sua vida, a aparência do seu corpo, a mensagem que pregava ao povo, como contava suas conversas com João e os outros que haviam visto o Senhor, como se lembrava das palavras deles, quais eram as coisas concernentes ao Senhor que ouvira deles, inclusive os milagres e os ensinos dele,s e como Policarpo havia recebido isso da parte das testemunhas oculares da palavra da vida e relatou todas as coisas de conformidade com as Escrituras (H.fí. 5,20,5-6).
A maioria dos estudiosos reconhece que esse "João", certamente uma referência ao apóstolo João, o filho de Zebedeu, é (no que diz respeito a Ireneu) ninguém menos do que o João que ele enfaticamente insiste que é o quarto evangelista. Para Ireneu, o fato de que o evangelho devia ser quádruplo (no sentido já descrito) era algo tão natural quanto o fato de que era necessário haver quatro ventos. Quanto ao quarto evangelho propriamente dito, ele escreveu: "João, o discípulo do Senhor, que recostou-se em seu peito, publicou o evangelho enquanto / / residia em Efeso, na Asia" (.Adu. Haer. 2,1.2). Em outras palavras, o nome do quarto evangelista é João e deve ser identificado com o discípulo amado referido em João 13.23.
As evidências apresentadas por Papias semelhantemente dependem de fontes secundárias. Papias foi contemporâneo de Policarpo e pode ter sido um aluno de João (Ireneu, Adv. Haer 5.33,4, afirma-o; Eusébio, H.E. 3.39.2, nega-o). É irrelevante que Eusébio não mencione que Papias citou o quarto evangelho: o objetivo declarado de Eusébio foi examinar tanto as partes contestadas do Novo Testamento quanto também algumas daquelas pessoas que vinculavam o século I com aquilo que se seguia, e não apresentar uma lista de citações de livros "reconhecidos".9
Outra evidência que provém de Papias é mais difícil avaliar. Por volta de 140 d,C. um seguidor excêntrico dos escritos de Paulo, de nome Marcião, que se convencera de que só esse apóstolo havia verdadeiramente seguido os ensinos de Jesus enquanto todos os demais haviam recaído no judaísmo, foi a Roma tentar convencer a igreja ali da veracidade de suas idéias. Ele defendeu, sem sucesso, que o cânon correto do Novo Testamento abrangia dez cartas de Paulo e um único evangelho, uma versão mutilada de Lucas. Marcião era tão perigoso que conseguiu provocar reações. Em especial os denominados prólogos antimarcionitas dos evangelhos têm sido entendidos como parte destas reações (embora devase reconhecer que alguns estudiosos acreditam que estes prólogos surgiram num período posterior). O prólogo antimarcionita de João chegou até nós numa versão em latim bastante corrompida. Conta que o evangelho de João foi publicado enquanto João ainda vivia e que João o ditou a Papias, um homem originário de Hierápolis e um dos discípulos mais chegados de João, Quanto a Marcião, ele fora expulso pelo próprio João, O prólogo afirma que essa informação baseia-se nos cinco livros exegéticos do próprio Papias: a referência é à sua Exegese das Logia Dominicais, que sobreviveu até à Idade Média em algumas bibliotecas da Europa, mas que lamentavelmente não mais existe.
Algumas das informações fornecidas pelo prólogo antimarcionita estão _ s claramente errôneas, E extremamente duvidoso que João tenha excomungado Marcião: para isso, seria preciso forçar demais a cronologia, Além disso, uma hipótese levantada tem sido a de que Papias pode ter dito que as igrejas ou certos discípulos "escreveram" aquilo que João disse e que mais tarde ele foi citado erroneamente como tendo dito "escrevi", visto que em grego esta última palavra pode ser formalmente indistinguível de "escreveram".10 Assim mesmo, nesse documento não há qualquer dúvida de que o próprio João foi responsável pelo quarto evangelho.
Não só Ireneu, mas Clemente de Alexandria e Tertuliano fornecem sólidas evidências no século II em favor da convicção de que o apóstolo João escreveu esse evangelho, De acordo com Eusébio (H.E. 6.14.7), Clemente escreveu: "Mas aquele João, por último, cônscio de que os fatos exteriores foram expostos nos evangelhos, foi instado por seus discípulos e, divinamente movido pelo Espírito, escreveu um evangelho espiritual." Uma versão mais enigmática e, em seus detalhes, menos crível da mesma história acha-se preservada no Cânon Muratoriano, a mais antiga lista ortodoxa de livros do Novo Testamento a chegar até nós, elaborada provavelmente em cerca de 170 a 180 d,d Conta não apenas que aqueles que foram discípulos e bispos junto com João instaram-no a escrever, mas também que, por meio de um sonho ou profecia, foi revelado a André que João devia de fato assumir a tarefa, escrevendo em seu próprio nome, mas que os outros iriam rever sua obra e fazer contribuições a ela. A maioria dos estudiosos entende que isto é uma dedução que alguém tirou de João 21.24.
Algumas evidências indiretas são em certos aspectos muito mais notáveis. Taciano, um aluno de Justino Mártir, elaborou a primeira harmonia do evangelho quádruplo: ele dividiu os livros em partes e organizou-os numa única narrativa contínua conhecida como Diatessaron. Escrita inicialmente em grego, essa harmonia exerceu uma enorme influência em sua tradução em siríaco. Mas a lição crucial a observar é que é o evangelho de João que fornece a moldura em que se encaixam os outros três evangelhos. Isso não poderia ter acontecido caso houvesse dúvidas quanto à autenticidade do livro.
Aliás, perto do fim do século II as únicas pessoas que negavam a autoria joanina do quarto evangelho eram os denominados "alogoi" — um adjetivo substantivado que tem o sentido de "os ignorantes", empregado pelos ortodoxos como trocadilho para referirem-se àqueles que rejeitavam o Logos (o "Verbo" de Jo 1.1) revelado no quarto evangelho e, conseqüentemente, rejeitavam o próprio quarto evangelho. (Epifânio deu-lhes esse nome em Haer. 51.3; são provavelmente o mesmo grupo mencionado por Ireneu emAdv. Haer. 3.11,9). Mesmo dentro dos grupos algumas vezes houve forças de mútua concorrência em ação. Por exemplo, Gaio, um ancião da igreja em Roma que era um dos alogoi, defendia a ortodoxia em todos os aspectos, à exceção de sua rejeição do evangelho de João e do Apocalipse. No entanto, pelo menos parte de sua motivação era a oposição virulenta que fazia ao montanismo, um movimento carismático descontrolado que surgiu em meados do século II e que dizia que seu líder, Montano, era o porta-voz do Paracleto prometido, Uma vez que todas as declarações sobre o Paracleto referentes ao Espírito acham-se no evangelho de João (14.16, 26; 15.26; 16.7-15), Gaio não precisou de muita persuasão para, nessa questão, colocar-se ao lado dos alogoi.
É certo que, a partir do final do século II, há na igreja um consenso virtual quanto à autoridade, canonicidade e autoria do evangelho de João. Nesse caso um argumento do silêncio é notável: "É significativo que Eusébio, que teve acesso a muitas obras agora perdidas, fale sem reserva do quarto evangelho como obra indisputável de São João."11 O silêncio é mais significativo justamente porque a preocupação de Eusébio era discutir os casos duvidosos. As evidências externas que sustentam que o quarto evangelista não foi ninguém menos do que o apóstolo João são, portanto, virtualmente unânimes, embora não seja impressionante a sua antiguidade. Mas, mesmo tendo que recorrer a Ireneu, perto do fim do século II, como uma das primeiras testemunhas totalmente claras a respeito, a ligação pessoal este com Policarpo, o qual conheceu João, significa que em termos de lembranças pessoais a distância não é muito grande. Até mesmo Dodd, que rejeita a ideia de que o apóstolo João escreveu o quarto evangelho, considera impressionantes as evidências externas e acrescenta: "Desconheço quaisquer evidências externas contrárias que possam ser tidas como convincentes".12
O fato permanece que, apesar do apoio dado à autoria joanina por uns poucos estudiosos de escol neste século e por muitos escritores populares, uma grande maioria de eruditos contemporâneos rejeita esse ponto de vista. Conforme veremos, grande parte de sua argumentação gira em torno da interpretação que fazem das evidências internas. Assim mesmo, isso exige que praticamente rejeitem as evidências externas. Isso é particularmente lamentável. A exceção de estudiosos do Novo Testamento, a maioria dos historiadores da antiguidade não poderia ignorar assim tão facilmente evidências tão abundantes e tão uniformes.
Uma maneira de contornar a força das evidências externas é apelar às palavras de Papias, relatadas e interpretadas por Eusébio, em apoio à hipótese de que houve dois homens chamados João. Papias escreve (segundo Eusébio): "E se acontecia de vir alguém que tinha sido realmente um seguidor dos antigos, eu indagava acerca dos discursos dos antigos, o que disseram André ou Pedro, ou Filipe, ou Tomé ou Tiago, ou João ou Mateus ou quaisquer outros dos discípulos do Senhor; e coisas que disseram Aristião e o presbítero João, discípulos do Senhor/5 Eusébio então comenta: "Aqui vale assinalar que em sua enumeração ele menciona duas vezes o nome João: ele coloca o primeiro na mesma lista com Pedro e Tiago e Mateus e os outros apóstolos, indicando claramente o evangelista; mas coloca o outro com os demais, numa frase separada, fora do grupo dos apóstolos, colocando Aristião antes dele; e ele claramente o chama de "presbítero5" (HE. 3.39.4-5).13 Com base nessa passagem, muitos têm inferido que foi esse segundo João, um discípulo de João filho de Zebedeu, que escreveu o quarto evangelho. Aliás, é possível que Ireneu e Teófilo e outros Pais antigos tenham feito confusão entre essas duas pessoas.
Estudos recentes, contudo, têm mostrado que, por quatro motivos, esse apelo a Papias é precário:
1) Hoje em dia é amplamente reconhecido que, enquanto Eusébio faz distinção entre apóstolos e presbíteros, entendendo que estes últimos são Papias não faz esse tipo de distinção. Na expressão de Papias, os "discursos dos antigos" significam o ensino de André, Pedro e dos outros apóstolos, É Eusébio quem, em outro trecho, escreve: "Papias, de quem agora estamos falando, reconhece que recebeu os discursos dos apóstolos daqueles que tinham sido seguidores deles" (H.E. 3,39.7). É evidente que não foi isso o que Papias disse.H
2) Na citação de Papias, João é chamado de "presbítero" exatamente porque estão sendo colocado no grupo dos antigos recém-mencionados, ou seja, os apóstolos. Vale a pena notar que "apóstolos" e "anciãos" são chamados de "presbíteros" em 1 Pedro 5.1, Aliás, a sintaxe grega utilizada por Papias favorece a idéia de que "Aristião e o presbítero João" significa algo do tipo "Aristião e o i r* já mencionado presbítero João". Não somente aqui, mas em H.E. 3.39.14 é João e não Aristião quem é chamado de "o presbítero". Ao escolher referir-se aos apóstolos como presbíteros, Papias pode muito bem estar ecoando as palavras de 3 João (pressupondo que Papias entendeu que a epístola foi escrita pelo apóstolo João).
3) Parece que a distinção que Papias está fazendo em suas duas listas não é entre apóstolos e presbíteros da geração seguinte, mas entre testemunhas da primeira geração e que haviam morrido (aquilo que disseram) e testemunhas da primeira geração que ainda viviam (aquilo que dizem). Aristião, então, pode ser vinculado a João não porque ambos não são apóstolos, mas porque são da primeira geração de discípulos do Senhor. E isso dá força ao testemunho de Ireneu, que diz que Papias, e não somente Policarpo, foi um "ouvinte de João".
4) De qualquer modo, Eusébio tinha suas próprias prioridades. Ele tinha uma aversão tão grande à linguagem apocalíptica do Apocalipse que ficou mais do que satisfeito quando viu que era possível atribuir sua autoria a um João que não o apóstolo, aproveitando a menção ao "presbítero João", feita por Papias.lb Recentemente Martin Hengel dedicou toda uma monografia à tese de que foi o presbítero João e não o apóstolo João quem escreveu a penúltima versão do quarto evangelho (a qual então, depois da sua morte, foi ligeiramente editada, com o acréscimo também de 21.24-25).17 Mas o "presbítero" de Hengel não é o discípulo do idoso apóstolo, que teria vivido no século II, conforme reconstrução feita por muitos estudiosos contemporâneos. Hengel defende que "o presbítero João" é ninguém menos do que o "discípulo amado" (13.23; 19.26-27; 20.2-9; 21.24), um judeu palestino que viveu na mesma época de Jesus e foi testemunha ocular de pelo menos alguns eventos da vida de Jesus, mas não o João filho de Zebedeu. O próprio Hengel reconhece que sua "hipótese pode soar incrível",18 Ele é forçado a reconhecer que "João filho de Zebedeu e o professor da escola [Le,, seu
hipotético "presbítero João"] ... estão deliberadamente sobrepostas de forma velada" e, por isso, reconhece que "é admissível que, ao usar a expressão discípulo amado', o 'presbítero João' tenha desejado ressaltar o filho de Zebedeu, que para ele era um discípulo ideal, até mesmo o único discípulo ideal, em contraste com Pedro, ao passo que na conclusão os alunos imprimem neste personagem enigmático o rosto de seu professor ao identificá-lo com o autor, a fim de trazer o evangelho o mais próximo possível de Jesus",É difícil imaginar como alguém poderia chegar mais próximo de afirmar a autoria apostólica e ao mesmo tempo negá-la!
Não está claro por que Hengel prefere ao apóstolo João sua hipótese de um judeu de outra forma desconhecido que teria vivido na Palestina no século I, cujo nome teria sido João e que teria sido um contemporâneo do apóstolo. Ele acredita, por exemplo, que o fato de a Judéia ser o centro da atenção nesse evangelho é um argumento em favor de que o autor não foi galileu, como o apóstolo João. Ele julga que o vínculo verbal entre "presbítero" em Papias e a mesma expressão em 2 João 1 e 3 João 1 é muito significativa (embora, na realidade, saiba-se que às vezes os apóstolos referiam-se a si mesmos como presbíteros; veja 1 Pedro 5.1).20 Hengel levanta a hipótese de que, em Papias, pode ter havido evidências claras de que esse "presbítero João" escreveu o quarto evangelho e sustenta que deve-se "levar em conta a possibilidade de que, como em outras ocasiões, Eusébio ocultou informações que lhe pareciam desagradáveis ou omitiu-as por descuido";21 desse ponto de vista a igreja primitiva simplesmente repetiu o erro.
Todos esses argumentos são extremamente fracos. Com base nos dados fornecidos por Eusébio, estamos longe de poder dizer que sequer tenha existido um ''presbítero João" que não o apóstolo e, se existiu, é menos certo ainda que ele tenha escrito alguma coisa. Se, contra as evidências, aceitarmos a interpretação que Eusébio faz de Papias, atribuiremos o quarto evangelho ao apóstolo João e o Apocalipse ao presbítero João — enquanto a maioria dos estudiosos da Bíblia não atribui nenhum dos dois livros ao apóstolo. Nesse meio tempo, as objeções de Hengel à identificação do discípulo amado com o apóstolo João não tem absolutamente peso algum. Por girarem em torno de uma avaliação das evidências internas, é a estas que devemos nos voltar.
Evidências Internas
O método clássico de Westcott, atualizado por Morris/2 era demonstrar cinco itens: o autor do quarto evangelho foi (1) um judeu, (2) da Palestina, (3) uma testemunha ocular, (4) um apóstolo (Leum dos Doze), e (5) o apóstolo João. Hoje em dia os dois primeiros fatos raramente são contestados e não precisam tomar nosso tempo, exceto para fazer três observações.
1) A descoberta dos rolos do Mar Morto nos leva a reconhecer que é desnecessário recorrer a um período de expansão do cristianismo dentro do mundo helenístico para explicar as expressões características de João. Ver embaixo estudos adicionais dessa questão na seção "local de origem". Além do mais, o conhecimento detalhado que o evangelista tem da topografia da Palestina e de aspectos do debate judaico conservador provavelmente reflete um envolvimento pessoal e não uma mera dependência de fontes judaicas confiáveis.
2) A isso devemos acrescentar o fato amplamente aceito, a que Lightfoot já recorreu no século passado,23 de que pelo menos em alguns casos as citações feitas por João aproximam-se, na forma, mais do hebraico ou aramaico do que do grego (esp, 12.40; 13.18; 19.37).
3) A tentativa recente de Margaret Pamment de sustentar que o discípulo amado é um crente gentio gira em torno do seu argumento de que 21.1 e ss. diz respeito à missão gentílica (nisso ela está parcialmente correta), e isso, ela diz, "sugere que o discípulo amado (que aparece nesse capítulo) é um gentio".24 Essa é uma falácia clássica. Admitindo-se que todos os primeiros crentes eram judeus, pelo menos algumas das primeiras testemunhas aos gentios tiveram de ser judias!
Todos os outros três itens são, entretanto, contestados e em grande parte giram em torno da identidade do "discípulo amado", que atualmente é o modo padrão de referir-se àquele que a NVI descreve de modo mais prosaico como "o discípulo a quem amava" (e.g., 13.23). A informação geral pode ser examinada rapidamente. O discípulo amado aparece pela primeira vez com essa designação por ocasião da última ceia, quando está reclinado ao lado de Jesus e transmite para o Mestre a pergunta de Pedro (13.23). Ele aparece junto à cruz, onde recebe instruções especiais com respeito à mãe de Jesus (19.26-27) e junto ao túmulo vazio, onde é mais rápido na corrida do que Pedro, mas menos ousado (20.2-9).
No epílogo (cap. 21) lemos que ele é aquele que escreveu "estas coisas", Se "escreveu" significa que ele mesmo escreveu as informações (e não que apenas fez com que fossem escritas, como alguns têm proposto) e se "estas coisas" referese ao livro inteiro e não apenas ao capítulo 21, então o discípulo amado é o evangelista. Se isso está certo, então é natural identificar a testemunha ocular que viu sangue e água verterem do lado de Jesus como o discípulo amado, muito embora não seja assim descrito naquela passagem.
Quem é, porém, o discípulo amado? O ponto de vista tradicional, que ele é João filho de Zebedeu, tem sido proposto por motivos de pesos bem diferentes. Não se questiona que o discípulo amado esteve presente à última ceia (13.23). Os sinóticos insistem em que somente os apóstolos participaram dessa refeição junto com Jesus (Mc 14.17 e trechos paralelos), o que coloca o discípulo amado dentro do grupo dos Doze (e coincidentemente conflita com a hipótese de Hengel, descrita acima). Repetidas vezes ele é distinguido de Pedro (Jo 13.23-24; 20.2-9; 21.20), e pelo mesmo motivo não deve ser confundido com quaisquer dos outros apóstolos mencionados em João 13—16. O fato de ele ser um dos sete que vão pescar no capítulo 21 e, por implicação, não ser Pedro, Tomé nem Natanael sugere que é um dos filhos de Zebedeu ou um dos outros dois discípulos não mencionados pelo nome (21.2). Dos filhos de Zebedeu ele não pode ser Tiago, visto que Tiago foi o primeiro do grupo apostólico a ser martirizado (provavelmente perto do fim do reinado de Herodes Agripa I, 41-44 d.C.; veja At 12.1-2), ao passo que o discípulo amado viveu o suficiente para dar peso ao boato de que não morreria (21.23), O fato de que nem João nem Tiago são mencionados pelo nome no quarto evangelho, o qual, no entanto, tem espaço não apenas para apóstolos proeminentes, tais como Pedro e André, mas também para membros relativamente obscuros do grupo apostólico, tais como Filipe e "Judas, não o Iscariotes" (14.22), é profundamente estranho, a menos que haja algum motivo para isso. O raciocínio tradicional parece o mais plausível: o discípulo amado é ninguém menos do que João e ele evita deliberadamente empregar seu próprio nome, Isso se torna mais provável quando recordamos que o discípulo amado está constantemente em companhia de Pedro, ao passo que os sinóticos (Mc 5.37; 9.2; 14.33 e trechos paralelos) e Atos (3.1—4.23; 8.15-25), para não mencionar Paulo (G1 2.9), vinculam Pedro e João por amizade e experiência em comum. Também já se assinalou que nesse evangelho a maioria dos personagens importantes é designado com o emprego de expressões bem completas: Simão Pedro; Tomé, chamado Dídimo; Judas, filho de Simão Iscariotes; Caifás, sumo sacerdote naquele ano. Estranhamente, porém, João Batista é simplesmente chamado de João, mesmo quando é apresentado pela primeira vez (1.6; cf. Mc 1.4 e trechos paralelos). A explicação mais simples é que João filho de Zebedeu é aquele que não sentiria necessidade de distinguir de si mesmo o outro João.
As evidências não são inteiramente conclusivas. Por exemplo, é bem possível que o discípulo amado seja um dos dois discípulos que aparecem em João 21,2, mas que não são mencionados pelo nome. Mas, uma vez que se tenha avaliado devidamente essa possibilidade lógica, ela parece ser um expediente desesperado que se opõe ao peso de toda a evidência interna e das evidências externas substanciais. Outras identificações têm sido propostas. Alguns, por exemplo, têm sugerido Lázaro, com base no fato de que "discípulo amado" seria uma forma apropriada de aquele de quem se disse que Jesus o amava fazer referência a si mesmo (11.5, 36). Algumas pessoas sugeriram o jovem rico de Marcos 10.21, com base no mesmo argumento. Ainda outros acham que foi o proprietário do cenáculo, alegando que o motivo pelo qual poderia encostar a cabeça no peito de Jesus era que, na condição de anfitrião, foi colocado numa posição de honra ao lado de Jesus; essa pessoa talvez fosse João Marcos.
Nada disso é convincente, e não passa da mais infame especulação. Segundo as evidências dos sinóticas, só os Doze estiveram presentes na última ceia: só ou o jovem rico, a não ser que Jesus os amava; mas, mesmo pressupondo que o círculo daqueles a quem Jesus amava fosse extremamente restrito, certamente isso não oferece bases suficientes para identificar o discípulo amado. Quanto ao proprietário do cenáculo, apelar ao evangelho de Marcos para solucionar o problema da identidade do discípulo amado em João parece ser um procedimento duvidoso. E, se o proprietário do cenáculo esteve presente de alguma forma como anfitrião, por que é que os quatro evangelhos apresentam Jesus tomando a iniciativa à refeição, agindo na verdade como o anfitrião? Além disso, não existem dados patrísticos de que João filho de Zebedeu e João Marcos alguma vez foram confundidos.
Brown, em seu comentário, defende vigorosamente que o discípulo amado é João filho de Zebedeu (embora ele não o identifique com o evangelista), em grande parte seguindo os argumentos acima apresentados. No entanto, à época da publicação de seu livro mais popular, no qual esboça seu entendimento acerca da história da comunidade joanina, Brown havia mudado de idéia,25 sem refutar as evidências que ele mesmo havia apresentado anteriormente. Atualmente ele acredita que o discípulo amado é alguém de fora e não um do Doze, mas um morador da Judéia com acesso ao pátio do sumo sacerdote (18.15-16), possivelmente o discípulo não identificado de 1.35-40. Outros têm proposto listas extensas de motivos pelos quais o discípulo amado não poderia ser João filho de Zebedeu,^ Esses motivos variam consideravelmente em peso, mas incluem alegações tais como; João filho de Zebedeu era um galileu, e no entanto grande parte da narrativa do quarto evangelho acontece na Judéia; João e Pedro são em outro texto bíblico descritos como "homens iletrados e incultos" (At 4.13), de modo que não se pode esperar que João escrevesse um livro sutil e profundo; em outra oportunidade João e Tiago são descritos como "filhos do trovão" (Mc 3.17), presumivelmente sugerindo impetuosidade, destemperança e raiva, mas esse livro é o mais plácido dos evangelhos canônicos, chegando até a ser místico; João foi vingativo contra os samaritanos (Lc 9.54), de modo que é difícil imaginá-lo escrevendo um livro que os trata com tanta bondade (Jo 4).
Parece que nenhum desses argumentos tem muito peso contra o imenso volume de argumentos opostos.
1) Conquanto João filho de Zebedeu fosse galileu, à época em que escreveu seu evangelho ele havia morado não apenas durante anos na Judéia (durante o período inicial da igreja), mas (de acordo com qualquer ponto de vista tradicional) no grande centro metropolitano de Efeso. Parece pouco realista limitar o centro de interesse de João ao lugar de sua origem, quando à época da redação fazia decênios que não morava ali.
2) Há muito tempo tem-se assinalado que a expressão em Atos 4.13 não significa que Pedro e João fossem analfabetos ou profundamente ignorantes, mas, do ponto de vista da capacitação teológica contemporânea, "leigos sem treinamento" (NEB), no que não diferiam do próprio Jesus (Jo 7.15), A surpresa das autoridades foi, de qualquer maneira, ocasionada pela competência de Pedro e João, por esperarem que os dois fossem (relativamente) ignorantes, e não pela ignorância deles, por esperarem que fossem mais competentes. Os meninos judeus aprendiam a ler. Visto que João provinha de uma família que certamente não era pobre (ela possuíam pelo menos um barco [Lc 5.3, 10] e empregava outras pessoas [Mc 1.20]), é bem possível que ele tenha desfrutado uma educação acima da média. E com certeza não seria de surpreender que alguns dos líderes da igreja, decênios depois de ela ser fundada, tivessem se dedicado a estudar seriamente.
3) A sugestão de que um "filho do trovão" não poderia ter-se tornado o apóstolo do amor ou de que um homem dominado por preconceito racial contra os samaritanos não poderia ter escrito João 4 é uma negação implícita do poder do evangelho e da maturidade de anos de liderança cristã num período em que o poder transformador do Espírito era visível de modo tão ostensivo. O argumento é tão convincente quanto o ponto de vista de que Saulo, o perseguidor da igreja, não poderia ter-se tornado o apóstolo aos gentios.
4) Embora não se diga explicitamente que o "outro discípulo" que consegue com que Pedro seja admitido no pátio do sumo sacerdote (18.15-16) é o discípulo amado, podendo ser alguma outra pessoa, assim mesmo há mais evidência em favor da identificação com João do que alguns imaginam. Parece que esse "outro discípulo" estava no grupo daqueles que estavam com Jesus quando ele foi preso e, portanto, era um dos Onze que saíram do cenáculo e acompanharam Jesus, subindo a encosta do Monte das Oliveiras. Sua íntima ligação com Pedro favorece (embora não prove) o ponto de vista de que não é ninguém menos do que João. Freqüentemente se rejeita a idéia de que um pescador galileu pudesse ter acesso ao pátio do sumo sacerdote sob a alegação de que um vendedor de peixes não poderia entrar, sem ser interrogado, na sala de espera do primeiro ministro. Na realidade, o modelo social está totalmente errado. Já vimos que a família de João tinha algumas posses; ela pode ter sido rica, e em muitas sociedades o dinheiro derruba barreiras sociais. De um modo ou de outro, é possível que as barreiras sociais relevantes na Palestina do século I não tenham sido assim tão rígidas; esperava-se que, além de seus estudos, os rabinos adquirissem alguma habilidade profissional (é assim que Paulo trabalhava com couro), de maneira que a estratificação que fazia divisão entre professor e trabalhador braçal no estoicismo e em outros círculos do mundo helenístico não era um fator significativo em boa parte da Palestina. A Galiléia fornecia peixe para todo o país, à exceção do
litoral, que entrava em Jerusalém pela Porta do Peixe (veja Ne 3.3; Sf 1.10).
Conforme Robinson comenta, talvez não seja totalmente fantasiosa a tradição segundo a qual o fato de João conhecer a moça junto à porta e também a casa do sumo sacerdote era resultado de estar familiarizado com o acesso que os comerciantes tinham ao local.27 Ele pode ter tido uma casa na cidade (19,27) e às vezes atuado como um representante de seu pai (um papel que vem à tona no dito de 13.16). Tem-se assinalado que a expressão específica para peixe cozido (.òijjápíov [iopsarionJ), a forma em que boa parte do peixe seria comercializada, ocorre cinco vezes no quarto evangelho (6.9, 11; 21,9, 10, 13) e em nenhum outro texto do Novo Testamento.
5) Embora tenha sido alegado no passado que alguém da Palestina não poderia escrever em grego tão fluente, o argumento já não subsiste. Hoje em dia há um forte consenso de que, pelo menos na Galileia e talvez em outras regiões da Palestina do século I, a massa da população era pelo menos bilíngüe e, em alguns casos, trilingue. O aramaico era usado nas conversas do dia-a-dia, pelo menos nas aldeias. (O hebraico pode ter sido usado em algumas ocasiões formais e de culto público, mas não se sabe ao certo quantas pessoas eram capazes de falar esse idioma.) E, a julgar pelo número de moedas gregas e pela quantidade de inscrições gregas descobertas, o grego era bastante comum como língua alternativa, ligando os judeus não somente ao mundo mediterrâneo em geral, mas à Diáspora judaica e (na Galiléia) à Decápolis em particular, Pessoas cujas atividades as punham em contato bem próximo com o exército também podem ter chegado a um conhecimento de latim que lhes dava condições de se comunicarem nesse outro idioma. De qualquer forma, se João viveu no estrangeiro durante anos antes de escrever, teve tempo suficiente para praticar o seu grego.
Ademais, embora o grego do evangelho de João seja razoavelmente fluente, ele não é elegante, e deixa entrever um bom número de "realces" semitizantes.2* É, "com bem poucas exceções, a linguagem da Septuaginta".29 Esse tipo de evidência está em perfeita consonância com o pouco que conhecemos da formação de João, filho de Zebedeu. Em suma, são muito fortes embora não inquestionáveis, as evidências internas de que o discípulo amado é o apóstolo João, o filho de Zebedeu. Qual é, então, o relacionamento entre o discípulo amado e o quarto evangelista? A resposta tradicional é que são exatamente a mesma pessoa. Hoje em dia isso é comumente negado. Alguns pensam que João, filho de Zebedeu provavelmente acha-se, de alguma maneira, por trás da tradição do quarto evangelho, mas que os dados sofreram extensas adaptações. Esse material foi finalizado pelas mãos do evangelista (cuja identidade é desconhecida — a menos que seja o "presbítero" João), cuja obra foi subseqüentemente retocada por um redator, cuja participação talvez se deixe trair em 21.24-25. Outros pensam que a influência de João filho de Zebedeu é mais imediata e geral; ele não chegou a escrever o livro, mas fez com que fosse escrito, talvez por intermédio de um amanuense que desfrutava de certas liberdades de expressão e que poderia ser apropriadamente chamado de o evangelista. Fatores importantes a serem levados em conta são:
1) Talvez a razão apresentada com maior freqüência para negar que o discípulo amado é o evangelista encontre-se na própria expressão "discípulo amado". Afirma-se que nenhum cristão chamaria a si mesmo de "o discípulo a quem Jesus amava": a expressão tem um quê de exclusivismo e é mais bem interpretada como algo que alguém diria a respeito de outro discípulo e não como algo que um crente diria de si mesmo. De modo semelhante, alega-se que a pessoa que (lit.) escreveu que Jesus estava no seio do Pai (EIS* TÒV KÓXJTOU rov rrarpóç [eis ton kolpon tou patros], 1.18) teria relutância em dizer sobre si mesma que havia reclinado no seio de Jesus (ev rcò KÓÁmo rov lr}aov [en tõ kolpõ tou lesou], 13.23).
Deve-se, porém, abandonar esses argumentos freqüentemente repetidos. Quando um escritor do Novo Testamento pensa em si mesmo como alguém que Jesus ama, isso nunca quer dizer que outros crentes não sejam amados ou que / sejam de alguma forma menos amados. E assim que Paulo, ao descrever a obra salvadora do Filho de Deus, pode repentinamente tornar pessoal essa obra: ele "me amou e a si mesmo se entregou por mim" (G1 2.20). De modo algum isso implica em que Paulo pense que os gálatas sejam menos amados. A sugestão revela uma profunda ignorância da dinâmica psicológica da experiência cristã: aqueles que estão mais profundamente cônscios de seu próprio pecado e necessidade e que, como conseqüência, sentem em maior profundidade as maravilhas da graça de Deus que alcançou e salvou até mesmo a eles9 são aqueles que têm maior probabilidade de falar de si mesmos como objetos do amor de Deus em Cristo Jesus. Aqueles que não pensam em si mesmos dessa maneira deveriam fazê-lo (Ef 3.14-21). Se um "filho do trovão" tornou-se o apóstolo do amor, não é de admirar que ele pense em si mesmo como o objeto especial do amor de Jesus.
Mas dificilmente isso é sinal de arrogância; é, isto sim, sinal de quebrantamento. De modo que, se houvermos de notar vestígios de 1.18 na descrição de João reclinado no peito de Jesus (13,23), isso não passa de um exemplo sugestivo de um padrão que é constantemente proposto no quarto evangelho: Jesus é o mediador do amor do seu Pai, do julgamento do seu Pai, da redenção do seu Pai, do conhecimento do seu Pai, da aliança do seu Pai.
2) O mesmo tipo de raciocínio provavelmente explica por que o evangelista não menciona o seu próprio nome, Ele prefere referir-se indiretamente a si mesmo, com o intuito de concentrar a atenção naquele a quem ele serve: para alcançar seus objetivos redacionais, ele não precisa fundamentar-se explicitamente em sua dignidade apostólica. Ele já é bem conhecido pelo público leitor que pretende alcançar (21.24-25) e, como quando Paulo escreve sem um acentuado objetivo polêmico, ele não precisa chamar a si mesmo de apóstolo (Fp 1.1; cf, G1 1.1). A maioria dos estudiosos concorda que o discípulo amado não é uma mera idealização, mas um personagem histórico; assim mesmo, no entanto, em certos servir de testemunhas da verdade e ressaltar o amor de Jesus em suas vidas.
Mesmo que alguém proteste que esse tipo de raciocínio não parece fornecer um motivo adequado para a recusa de o discípulo amado identificar-se, deve-se com toda certeza reconhecer que, se o evangelista é alguém que não João filho de Zebedeu, é ainda mais difícil explicar por que ele deixa de mencionar o apóstolo João pelo nome, quando faz referência a tantos outros. Pode-se insistir um pouco mais nisso. A hipótese de que a expressão "o discípulo a quem Jesus amava" é algo que uma pessoa dirá com maior probabilidade de outra e não de si mesma não apenas não tem valor como tem suas próprias dificuldades. Deixa implícito que o evangelista (que, de acordo com esse ponto de vista, era alguém que não o discípulo amado) achava que Jesus amava certos discípulos e não a outros. Qualquer que seja o motivo que, de acordo com o testemunho sinótico, tenha levado Jesus a dar mais atenção a um grupo mais íntimo de três (Pedro, Tiago e João), é muito duvidoso que isso tivesse a ver com um amor arbitrariamente dispensado por parte de Jesus.
3) Alguns pensam que "estas coisas" que se diz que o discípulo amado escreveu (21.24) referem-se apenas ao conteúdo do capítulo 21, não ao livro como um todo. Deixando de lado o fato de que isso depende da maneira de ler o capítulo 21, esse ponto de vista é uma anomalia; o discípulo amado, aparentemente o apóstolo João, escreveu apenas esse capítulo, mas alguma outra pessoa escreveu o restante — muito embora a expressão "discípulo amado" ocorra muito antes do capítulo 21.
4) Com freqüência se afirma que, sempre que João aparece com Pedro, ressalta-se a superioridade da capacidade de percepção de João. Em João 13, por exemplo, Pedro simplesmente faz sinal ao discípulo amado, o qual faz a Jesus a pergunta fatídica; em João 20, o discípulo amado não apenas chega ao túmulo antes de Pedro, mas somente dele é que se diz que creu. Será que João teria dito coisas assim sobre si próprio?
Expositores mais cautelosos têm, contudo, corretamente argumentado que não há qualquer questão de inferioridade ou superioridade nessas descrições, mas de dons e personalidades diferentes. Barrett, por exemplo, defende de modo bem convincente que deve-se interpretar 21.24 junto com os versículos que o precedem: Pedro é incumbido de alimentar o rebanho de Deus e glorificar a Deus com sua morte, ao passo que o discípulo amado é incumbido de viver um longo tempo e servir como aquele que escreve esse livro, servindo de testemunha da verdade/0 Se o discípulo amado chega primeiro ao túmulo, é Pedro que entra primeiro, Se afirma-se que o discípulo amado creu, nada se diz que Pedro não o fez; a afirmação faz parte da descrição que caminha na direção da autenticação
do discípulo amado como o autor desse livro.
5) Alguns acham que deve-se interpretar 21.22-23 com o sentido de que o discípulo amado morreu à época em que o quarto evangelho foi publicado e que uma das razões de sua publicação foi minorar a crise que havia surgido com essa morte. Mas é igualmente fácil supor que o boato largamente difundido havia chegado aos ouvidos do idoso apóstolo, que conseqüentemente receou o que poderia acontecer à fé de alguns depois que ele morresse, visto que a fé deles baseava-se numa falsa inferência de algo que Jesus de fato dissera.
6) A hipótese de que o discípulo amado simplesmente fez com que essas coisas fossem escritas, aparentemente por intermédio de um discípulo que servia de, vamos dizer, uma espécie de amanuense (comumente cita-se Tércio; veja Rm 16.22), encontra pouco apoio em João 19.19-22. O próprio Pilatos provavelmente não escreveu o titulus na cruz, mas simplesmente fez com que fosse escrito. Na verdade estamos longe de saber quanta liberdade era concedida a um amanuense no mundo antigo.31 Entretanto, o exemplo de Pilatos sugere que o que ele fez com que fosse escrito foi exatamente o que ele queria que fosse escrito, e o verbo "dar testemunho" em 21,24 sugere que a influência do discípulo amado não é remota. Não quero com isso defender a idéia de que João não poderia ter utilizado um amanuense; também não a idéia de que a única solução que se harmoniza com as evidências internas e externas é a autoria pelo apóstolo João. Quero, isto sim, dizer que esse ponto de vista bastante tradicional harmoniza-se mais facilmente com as evidências e oferece menos explicações tortuosas diante das dificuldades que todas as hipóteses relevantes têm de enfrentar.
De maneira que, em oposição a Brown, que (pelo menos em seu comentário) entende que o discípulo amado é o apóstolo João, mas não o evangelista, e a Cullmann,^ que entende que o discípulo amado é o evangelista, mas não o apóstolo João, as evidências parecem favorecer Robinson, que escreve: "Acredito que ambos estão certos naquilo que afirmam e errados naquilo que negam /5,u Ainda consta, porém que Kümmel (p. 245) insiste em que a autoria joanina está "fora de questão", ao passo que Barrett insiste em que é uma "certeza ry j ' moral" que João filho de Zebedeu não escreveu o quarto evangelho. E de ficar realmente perplexo com o grau de dogmatismo deles. Barrett escreve:
À autoria apostólica tem sido defendida extensamente e com erudição por L. Morris [...] e deve-se considerar cuidadosamente os seus argumentos. Deve-se reconhecer que não é impossível que o apóstolo João tenha escrito o evangelho; é por isso que emprego a expressão "certeza moral", O apóstolo pode ter vivido até idade bem avançada; pode ter achado conveniente basear-se em outras fontes além de sua própria memória; pode ter aprendido a escrever grego corretamente; pode ter aprendido não apenas o idioma, mas o modo de pensar de seu novo ambiente (em Éfeso, Antioquia ou Alexandria); pode ter refletido a respeito das palavras de Jesus por um tempo longo o suficiente para elas tomarem forma num tempo os cristãos ortodoxos deram pouca ou nenhuma atenção à sua obra. Tudo isso é possível, mas, pondo tudo na balança, as probabilidades são contrárias a essas coisas terem acontecido.85
O que se tem aí é uma mistura de argumentos, Além da aquisição de fluência na língua grega, que já foi analisado, os outros obstáculos não parecem insuperáveis.
1) A questão da "idade avançada" gira em torno da data que for atribuída ao livro. Se optar-se por aproximadamente 80 d.C. (veja abaixo a análise na seção "Data"), João precisaria ter, digamos, apenas 75 anos de idade. Dodd publicou Historical tradition in the fourth gospel quando estava na casa dos oitenta; Goodspeed escreveu sua obra sobre Mateus quando tinha 90 anos de idade; Sir Norman Anderson, aos 80 anos, ainda está escrevendo livros. Um dos autores desta Introdução está na casa dos setenta, E, de qualquer forma, não é impossível que o quarto evangelho tenha sido escrito antes do ano 70.
2) E difícil imaginar por que alguém haveria de pensar que é totalmente improvável que um apóstolo viesse a "basear-se em outras fontes além de sua própria memória". De qualquer forma, a questão da identificação de fontes no evangelho de João é extremamente problemática (veja a secção seguinte, "Unidade estilística e a 'comunidade5 joanina").
3) Quanto a levar as palavras de Jesus a ter impacto na linguagem local, essa é a profissão do pregador, especialmente se estiver envolvido em ministério transcultural. Um dos pontos fortes do comentário de Lindars é sua sugestão de que várias partes do quarto evangelho são simplesmente os esboços de sermões burilados e pregados em diversas ocasiões ao longo de anos de ministério j j rt cristão: Não precisamos adotar todas as suas detalhadas sugestões para podermos reconhecer a plausibilidade da tese básica.
4) A sugestão de que o autor do quarto evangelho era alguém obscuro ou desconhecido é um tanto quanto exagerada. Os estudiosos divergem entre si sobre se João é citado na Epístola de Barnabé, na Didaquê e no Pastor de Hermas (todas do início do século II). Provavelmente muitos encontram ecos do quarto evangelho em Inácio (cerca de 110 d.C,). Justino Mártir escreveu: "Cristo verdadeiramente disse: *A menos que nasças de novo, não entrarás no reino dos céus/ E evidente a todos que aqueles que nasceram uma vez não podem tornar a entrar no ventre materno" (1 ApoL 61.4-5). Com quase toda certeza essa é uma referência a João 3.3-5; parece ceticismo indevido achar que Justino simplesmente encontrou essa afirmação como um dito independente na tradição oral, ainda mais à luz da referência ao ventre materno, O modo do reconhecimento do evangelho de João não é tão surpreendente se ele foi publicado perto do final do século L Não deveríamos, então, esperar encontrar vestígios dele em, digamos, Clemente de Roma (cerca de 95 d.C.). O problema é maior caso o quarto evangelho tenha sido publicado antes de 70 (como acreditam Morris e Robinson). Mesmo assim, especialmente se as informações de Ireneu sobre Papias e Policarpo forem interpretadas sem preconceitos, é difícil dar crédito ao ponto de vista de que "os cristãos ortodoxos deram pouca ou nenhuma atenção" a esse evangelho.
Além do mais, tanto hoje como no passado, os cristãos sempre tiveram seus livros prediletos. Mateus foi um predileto logo no início; João não, No caso de João, isso pode ter sido causado pelo fato de o quarto evangelho ter sido, logo no início, usado (e mal-usado) pelos gnósticos. O gnóstico Basilides (cerca de 130 d.C.) cita João 1.9 (embora essa informação esteja baseada em Adv. Haer. 7.22.4, de Hipólito); o primeiro comentário sobre um evangelho de que temos conhecimento é o estudo de João pelo gnóstico Heraclião, Leva um pouco de tempo para se desencadear uma reação polêmica — possivelmente o primeiro sinal disso é encontrado nas epístolas de João, Talvez, no entanto, a maior dificuldade para a aceitação da autoria joanina é a pressuposição não muito clara de que o evangelho foi redigido por uma escola ou círculo ou comunidade joaninos; para isso temos agora de voltar nossa
atenção.