Espírito Santo no Evangelho de João

Espírito Santo no Evangelho de João
Merril C. Tenney

No Evangelho de João, muito do material concernente ao Espírito Santo encontra-se no discurso de despedida de Jesus dirigido aos discípulos, registrado nos capítulos 14—17. Aqui, Jesus fala do Espírito como “Paracleto” (paraklêtos). Antes disso, seis passagens do quarto Evangelho incluem declarações relevantes a respeito do Espírito Santo.

O Espírito nos capítulos iniciais do Evangelho de João. A primeira referência ao Espírito Santo no Evangelho de João é o batismo de Jesus realizado por João Batista (1.29-34). A principal diferença entre o relato de João acerca do batismo de Jesus e o dos sinóticos, é que João registra a reação de João Batista. Este disse que viu o Espírito descer como uma pomba e permanecer sobre Jesus (1.32). O ato de batizar, embora esteja totalmente implícito no contexto, não é nem mesmo mencionado. A pomba também é mencionada no relato do batismo de Jesus dos Evangelhos sinóticos. João Batista disse que não reconheceria Jesus se Deus não tivesse revelado a ele que aquEle sobre quem o Espírito descesse batizaria com o Espírito (v. 33). O relato do quarto Evangelho não menciona a voz vinda do céu no batismo de Jesus, como fazem os sinóticos (Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22).21 No entanto, João Batista, como resultado da revelação que recebeu, chega à mesma conclusão apresentada nos sinóticos: “E eu vi e tenho testificado que este é o Filho de Deus” (Jo 1.34). Assim, o relato de João do batismo de Jesus não é uma versão alternativa para a dos sinóticos. Ela sugere uma segunda revelação pessoal e complementar para João Batista. Por isso, ele torna-se uma testemunha da identidade de Jesus como o Messias.[22] João Batista, em seu relato, menciona duas vezes que o Espírito “repous[ou] ” sobre Jesus (1.32,33). Essa é uma descrição de suma importância do relacionamento do Espírito com Jesus, pois envolve permanência. A frase grega, menein en tini, usada aqui, quer dizer “no interior, comunicação pessoal permanente”.[23] O quarto Evangelho usa essa frase em outra passagem para descrever o relacionamento mútuo e duradouro do Pai e do Filho em que um está no outro (Jo 14.10,11, “[...] o Pai, que está em mim”). Esse relacionamento entre o Pai e o Filho torna-se o paradigma do relacionamento do crente com Deus Pai (1 Jo 4.15, “Deus está nele e ele em Deus”), com Jesus (Jo 6.56, “permanece”; 15.6, “estiver”) e, até mesmo, com a palavra de Jesus (8.31, “permanecerdes”). Primeira João 3.24 usa a frase menein en para descrever a habitação de Deus no crente por meio do Espírito, e João 15.4-11 (“permanecei”, etc.) usa-a diversas vezes para descrever o relacionamento de Jesus com os discípulos. E relevante que João 14.17 também use essa frase para descrever a habitação permanente do Espírito da verdade no crente (“habita convosco”). Jesus, como aquEle sobre quem o Espírito reside permanentemente, pode enviar o Espírito para outros (Jo 1.33, “[...] esse é o que batiza com o Espírito Santo”; veja também 15.26; 16.7; 20.22).

Nos capítulos iniciais do Evangelho de João, as referências à permanência do Espírito são apresentadas nos discursos de Jesus. Ele disse a Nicodemos que “aquele que não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (3.5). Embora a referência à água seja debatida (quer ela se refira a nascimento físico quer a batismo), a ênfase da passagem é claramente o poder regenerador que o Espírito exerce nos crentes. Essa noção é reforçada no versículo seguinte, em que Jesus formula uma analogia entre o que é nascido na carne e o que é nascido no Espírito (v. 6). O ponto de Jesus é que semelhante gera semelhante.

Aqui, João, ao contrário de Paulo, não usa a palavra “carne” com conotação moral negativa em oposição a “espírito”. João apenas indica que o nascimento espiritual não acontece por meios humanos.24 Alcança-se a regeneração apenas por intermédio da obra do Espírito Santo, não por meio de qualquer esforço humano. Toda a existência espiritual do crente depende da obra do Espírito Santo. Não é de surpreender que Nicodemos tenha interpretado mal essa asserção radical. Todavia, Jesus esperava que Nicodemos entendesse, pelo menos, parte dessa afirmação, pois disse: “Tu és mestre de Israel e não sabes isso?” (v. 10). A passagem mais importante do Antigo Testamento que relaciona água e espírito é a de Ezequiel 36.25-27, em que “água” indica purificação da impureza, e “espírito” refere-se à habitação do Espírito Santo que capacita a pessoa a seguir Deus e obedecer a Ele de forma mais plena.

Encontramos outra referência ao Espírito nas palavras finais de João 3: “Porque aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, pois não lhe dá Deus o Espírito por medida” (v. 34). A primeira parte do versículo alude de forma clara a Jesus como “aquele que Deus enviou”. As vezes, entende-se que a última parte do versículo refere-se aos crentes como receptores sem medida do Espírito; todavia, é muito mais provável que essas palavras também digam respeito a Jesus. O versículo 34 ocorre quase no final da seção do quarto Evangelho que trata do testemunho de João Batista em relação a Jesus (3.27-36). Não fica totalmente claro se devemos entender as palavras dos versículos 31-36 como pronunciadas por João Batista ou pelo evangelista; mas, em qualquer um dos casos, elas testemunham a respeito de Jesus como Messias e Filho de Deus. Por isso, é preferível entender que a última parte do versículo 34 também se refere a Jesus. Ele recebeu o Espírito sem medida como parte de todas as coisas que o Pai entregou em suas mãos (v. 35).

Em João 4, Jesus, no diálogo com a mulher samaritana, faz uma declaração a respeito da natureza de Deus. “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade” (v. 24). Embora nenhum desses dois usos da palavra “espírito” aludam diretamente ao Espírito Santo, a noção de que a adoração deve acontecer em espírito e verdade pressupõe a atividade do Espírito da verdade que leva o crente à verdadeira adoração.

Jesus, após o discurso do pão da vida, disse a alguns discípulos que murmuravam: “O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita” (6.63). Conforme já visto em João 3, o papel do Espírito é dar vida espiritual. No Antigo Testamento, o Espírito de Deus também está associado com o conceder vida (Gn 1.2; Ez 37.1-14). O próprio Jesus, como aquEle em que o Espírito permanece (Jo 1.32,33) e aquEle a quem Deus concedeu o Espírito sem limite (3.34), agora, diz: “As palavras que eu vos disse são espírito e vida” (6.63). As palavras dEle são produto do Espírito doador de vida e, se aceitas e entendidas da forma adequada, produzem vida eterna em quem as aceita e as entende. Assim, se as palavras de Jesus são entendidas e apropriadas, os ouvintes reconhecem que Ele é o verdadeiro pão do céu que deu sua carne pela vida do mundo (v. 51).

João 7.38,39 apresenta a promessa de envio do Espírito Santo. Após a declaração de Jesus a respeito dos rios de água viva, o evangelista acrescentou um comentário interpretativo: “E isso disse ele do Espírito, que haviam de receber os que nele cressem” (v. 39). A conexão final entre água e Espírito é semelhantemente concedido aos crentes até que Jesus fosse glorificado (cf. 20.22), comentário reflexivo que ilustra o ponto de vista pós-ressurreição do evangelista. A sugestão do comentário de João em 7.39 é que os discípulos não entendiam as declarações de Jesus na hora em que Ele as fazia, mas entenderam-nas depois com o entendimento que receberam após a ressurreição dEle (cf. 12.16). Em geral, concorda-se que os “rios de água viva”, mencionados em 7.38, referem-se ao Espírito Santo (por causa da conexão entre água e Espírito de 3.5). Isso leva à observação adicional de que também se deve entender a “água viva” que Jesus ofereceu à mulher samaritana (4.10) como uma alusão ao Espírito. Isso harmoniza bem com a declaração posterior de Jesus para a mulher sobre a necessidade de a verdadeira adoração acontecer “em espírito e em verdade” (w. 23,24).

E muito mais difícil decidir quem é a fonte da “água viva” que, em João 7.39, representa o Espírito Santo. A pontuação da ARC, nos versículos 37 e 38, sugere que o último “seu” do versículo 38 é o crente: “Quem crê em mim [...], rios de água viva correrão do seu ventre”. Embora seja sugerido, com freqüência, que João 4.14 faz paralelo com essa passagem, em nenhuma outra passagem da literatura joanina do Novo Testamento existe referência ao crente ser a fonte do Espírito derramado nos outros. Entretanto, João retrata Jesus nesse papel (6.35; Ap 22.17). Por isso, é preferível entender Jesus como a fonte da água viva (o Espírito Santo), conforme sugerido pela leitura da Edição Pastoral da Bíblia Sagrada para João 7.37,38: “Se alguém tem sede, venha a mim, e aquele que acredita em mim, beba”.

As passagens sobre o Paracleto no discurso de despedida. Em João 14.16, Jesus prometeu que em resposta ao amor deles demonstrado pela obediência contínua, Ele pediria ao Pai que enviasse “outro Paracleto” (allon paraklêton). Isso sugere que um Paracleto já estivera com os discípulos. Parece preferível entender o Paracleto anterior como uma alusão a Jesus mesmo, desde que “outro Paracleto” deve vir quando Ele partir. Primeira João 2.1 apresenta Jesus como Paracleto em seu papel de Advogado no céu. Aqui, a sugestão é que Jesus, durante seu ministério terreno, também era um Paracleto para seus discípulos.

Exagera-se, com freqüência, o sentido da palavra “outro” (allos) em João 14.16, ao se sugerir que deva ser entendida com o sentido de “outro da mesma espécie’. Nem todos os comentaristas concordam com uma distinção contundente entre as palavras allos e heteros (“outro de espécie distinta”) nesse contexto. No entanto, Jesus, de modo geral, realizou atos para seus discípulos que um Paracleto realizaria, embora não se refira a si mesmo no quarto Evangelho como Paracleto.

E importante observar que, no Evangelho de João, a comparação do Espírito Santo como Paracleto com o papel de Jesus como um Paracleto enquanto Ele esteve com os discípulos sugere vigorosamente que o Espírito deve ser tão pessoal quanto Jesus o é. Além disso, a série de funções que o Espírito Santo realiza para os discípulos após a partida de Jesus (Jo 14.26; 15.26; 16.8-15) apontam para a natureza pessoal do Espírito.

A própria palavra grega paraklétos (“paracleto”) é difícil de traduzir. A tradução por “Consolador” é tradicional; aparentemente, ela remonta a John WyclifFe. A maioria das pessoas concordaria que essa não é a idéia do termo grego, mas não concordaria em relação a como o termo, de fato, deveria ser traduzido. Talvez, a melhor sugestão seja a de Goodspeed que conclui que a palavra se refere à pessoa chamada para prestar auxílio em uma corte, um auxiliador, intercessor, defensor ou testemunha de caráter. As declarações de Jesus a respeito do Paracleto por vir, em seus ensinamentos e lembretes para os discípulos, ultrapassam esse sentido e clamam por uma tradução mais abrangente. Goodspeed sugere a tradução por “Auxiliador” no Evangelho de João e por “Intercessor” em 1 João 2.1.25 Fica claro que o sentido em todos os usos de paraklétos no Evangelho de João se refere ao Espírito Santo (cf. Jo 14.26), enquanto em 1 João 2.1 o sentido se refere a Jesus.

O Espírito Santo, além do título “Paracleto”, é mencionado uma vez de forma direta no discurso de despedida (Jo 14.26), e o título “Espírito da verdade” ocorre três vezes (14.17; 15.26; 16.13). No discurso de despedida, o Espírito Santo, acima de tudo, é retratado como Espírito de testemunha ou testemunho. A principal função dele é testemunhar por Jesus (15.26; 16.13-15). Isso inclui trazer glória para Jesus ao testemunhar por Ele (14.14). Uma apresentação alternativa do Espírito é como testemunha da verdade, pois Jesus é a verdade (14.6). Portanto, pode-se chamar o Espírito de Espírito da verdade (16.13), ou seja, o Espírito que transmite verdade aos discípulos, e sua função é guiar os discípulos a toda a verdade (16.13). Pode-se até mesmo chegar a dizer que o Espírito é a verdade (1 Jo 5.6) da mesma forma que Jesus é a verdade (Jo 14.6).

Para João, a verdade não é só algo a ser conhecido ou crido, mas algo a ser praticado (7.17). Quando o apóstolo escreveu sobre o Espírito guiar os discípulos a toda a verdade (16.13), ele não se referia à verdade no sentido abrangente e completo usado hoje (isto é, as verdades da ciência, medicina, tecnologia, etc. modernas). Ele falava da experiência que os discípulos vivenciaram com o entendimento de quem era Jesus enquanto Ele estivera com eles comparado com o de quem Ele é após sua morte, ressurreição e glorificação. Isto é o que Jesus prometeu aos discípulos: [O Espírito Santo] “vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito” (14.26). Foi exatamente isso que aconteceu aos apóstolos. Apenas após a ressurreição de Jesus, eles entenderam a verdade que Ele lhes ensinara e praticara diante deles (2.22).

O mundo, por sua vez, não pode receber o Espírito nem conhecer nada sobre Ele, o testemunho do Espírito pode vir apenas para os discípulos de Jesus (14.17). Essa verdade faz paralelo com a manifestação de Jesus que acontece apenas para os crentes, não para o mundo (v. 22). O testemunho conjunto com o dos discípulos de Jesus (15.26,27). Esse parece ser o caso até mesmo na passagem a respeito da condenação do mundo pelo Paracleto (16.8-11).

A vinda do Espírito Santo para os seguidores de Jesus depende da partida e retorno dEle para o Pai (16.7). De novo, isso é consistente com o comentário interpretativo feito pelo evangelista em 7.39: “[...] o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado”. Outras passagens apresentam o Espírito como um dom do Pai (14.16,26) enviado pelo Filho (14.26; 15.26; 16.7). Qualquer outro sentido pretendido com a difícil afirmação de que o Espírito “procede do Pai” (15.26), ela sugere que o Espírito compartilha a mesma natureza do Pai. Na verdade, aqui, João indica o paralelismo entre a missão do Filho, enviado por Deus (3.17,34; 5.36-38; 6.29,57; 7.29; 8.42; 10.36; 11.42; 17.3,8,18,21,23,25; 20.21), e a missão do substituto do Filho, o Espírito Santo, que seria “outro Paracleto” para os discípulos e os capacitaria a continuar a missão de Jesus após seu retorno para o Pai. Assim, a passagem tem fortes implicações trinitárias, embora isso não seja afirmado de forma explícita.

Por fim, Jesus, em seu discurso de despedida, mencionou a habitação do Espírito Santo nos crentes: “o Espírito da verdade, [...] habita convosco e estará em vós” (14.17). No versículo anterior, Jesus prometeu a seus seguidores que o Espírito estaria com eles para sempre, o que sugere a natureza permanente da habitação do Espírito nos crentes. Isso é consistente com as afirmações de Jesus sobre a segurança de seus seguidores (10.27-30).

Os presságios joaninos de Pentecostes. No quarto Evangelho, a menção final ao Espírito Santo acontece em 20.22: “E, havendo dito isso, assoprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo”. E comum o entendimento dessa declaração como a versão de João de Pentecostes, ao cumprimento da promessa de Jesus, feita em seu discurso de despedida (16.7), de enviar o Espírito Santo após seu retorno para o Pai. Todavia, é preferível entender o ato de Jesus de assoprar sobre os discípulos como um símbolo do derramamento do Espírito no Pentecostes, em vez de como uma verdadeira concessão do Espírito nessa aparição para os discípulos após a ressurreição. No restante do Evangelho de João, o comportamento dos discípulos não reflete o comportamento confiante e convincente que, de acordo com Atos 2, eles exibiram após o dia de Pentecostes. Na verdade, se, em algum sentido, João 20.22 representa uma verdadeira concessão do Espírito Santo, um dos Doze, Tomé, nem mesmo estava presente para receber o Espírito nessa ocasião (v. 24). Jesus já fizera outras manifestações prolépticas no Evangelho de João, particularmente a respeito da glorificação que seguiria sua morte, ressurreição e retorno para o Pai (17.1-5). Não seria de surpreender que Ele fizesse o mesmo em relação à concessão do Espírito.


[21] Essa omissão não quer dizer que o relato de João contradiz o dos sinóticos. João estava mais interessado na lembrança pessoal de João Batista em relação à revelação que recebera. Desde que a conclusão de João Batista é a mesma transmitida pela declaração vinda do céu (“este é o Filho de Deus”), e, uma vez que a passagem João 1.29-34 não é apresentada como um relato direto do batismo de Jesus, mas como uma reminiscência de João Batista desse fato, a voz do céu não é mencionada.

[22] Observe João 1.31 (“[...] mas, para que ele fosse manifestado a Israel, vim eu, por isso, batizando com água”) e o uso repetido do verbo “testificar” (cf. NVI “testemunho”, 1.32; “testifico”, 1.34).

[23] Walter Bauer, William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon ofthe New Testament and Other Early Christian Literature, 2a ed., rev. F. Wilbur Gingrich e Frederick W. Danker, Chicago: University de Chicago, 1979, p. 504.

[24] Com certeza, o evangelista, na afirmação: “[...] o Verbo se fez carne” (Jo 1.14), não queria
sugerir nada moralmente negativo a respeito de Jesus como o Verbo encarnado.

[25] E. J. Goodspeed, Problems of New Testament Translation, Chicago: University de Chicago, 1945, p. 110-11.